sexta-feira, 2 de abril de 2010

Comentários a uma teoria da construção retórica do direito

por Cláudio Ricardo Silva Lima Júnior

Sumário: 1. Introdução. 2. A concepção tradicional do direito. 2.1. Evolução histórica do conceito de direito: “descendo do céu para a terra”. 2.1.1. Indiferenciação. 2.1.2. Jusnaturalismo antigo: o conflito entre physis e nomos. 2.1.3. Jusnaturalismo teológico. 2.1.4. Jusnaturalismo racionalista. 2.1.5. Jusnaturalismo democrático (historicismo casuístico). 2.1.6. Juspositivismo. 3. Teoria crítica do direito: “Três confusões”. 3.1. Texto e norma. 3.2. O conteúdo do ordenamento jurídico. 3.3. A aplicação da semiótica moderna para a construção de uma teoria retórica do direito. 4. Conclusão.

1. INTRODUÇÃO
Este texto se propõe a analisar a concepção de direito apresentada pelo Prof. João Maurício Adeodato no artigo “A construção retórica do ordenamento jurídico – três confusões sobre ética e direito”. A teoria proposta sustenta a realidade jurídica como resultado mais de um esforço retórico dos operadores do direito que da produção legislativa propriamente dita. Compreende o fenômeno linguístico à luz da teoria semiótica moderna, segundo a qual não existe uma única interpretação possível para um texto determinado. Nessa ótica, por se valerem de significantes linguísticos capazes de exprimir uma multiplicidade de significados, os textos jurídicos não têm o condão de encerrar a “norma jurídica” suscetível de solucionar um conflito concreto. De fato, se múltiplas são as legítimas interpretações acerca do texto que objetiva traduzir a norma, múltiplias são as possíveis “normas” para o caso concreto. A ser assim, somente pelo critério da autoridade se definirá a norma: a última palavra sobre o direito, emanada do Estado, será seu verdadeiro conteúdo – a concepção do juiz sobre o texto legal ante o caso concreto. Nesse sentido, o direito se constrói retoricamente, como fruto da experiência dialética dos tribunais. A participação dos litigantes na formação do convencimento do juiz seria a verdadeira “luta pelo direito”, o real processo de formação da norma.
O autor esboça a teoria a partir de três afirmações: (1) a norma não se encontra no ordenamento jurídico; (2) o direito não é um conjunto de normas de conduta e (3) não existe um limite ético para as escolhas do direito bem como não há um único sentido juridicamente aceitável para o texto legal positivado. Visto que representa desconstrução da teoria clássica do direito, conforme compreendido até a primeira metade do século XX, faz-se necessária a análise da visão tradicional para a correta compreensão do alcance da nova abordagem. Com esse intuito, este texto discorrerá sobre as diferentes noções de direito concebidas ao longo da história, com destaque às teorias juspositivistas que tomaram vulto a partir do século XIX. Em seguida, o estudo retoma a teoria sub oculi para estabelecer comparação com o positivismo tradicional e aprofundar a temática proposta.

2. A CONCEPÇÃO TRADICIONAL DO DIREITO

2.1. EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO CONCEITO DE DIREITO: “DESCENDO DO CÉU PARA A TERRA”1
A experiência demonstra que, no decurso do tempo, a noção de direito esteve relacionada, indissociavelmente, às estruturas da sociedade na qual o conceito foi elaborado. Assim é que, quanto mais indiferenciada foi a sociedade, no sentido de menos subsistemas sociais apresentasse, mais difuso e menos diferenciado de outras ordens normativas foi o direito. Da mesma forma que a sociedade passou por um processo de diferenciação, em que se tornou cada vez mais complexa, o direito evoluiu no sentido de especificar-se em relação à religião, à moral e aos bons costumes. Partindo de uma visão nebulosa em que se confundia com a ordenação divina ou com a intuição racional até alcançar a noção de sistema autônomo respaldado na força laica Estado, o direito acompanhou as variadas formas de organização social vislumbradas ao longo da história, sendo sua concepção traduzida à luz dos fundamentos filosófico-existenciais da ordem social verificada. “Descendo do céu para a terra”, o direito foi visto como ordem direta da divindade, lei divina incognoscível, revelação divina, inspiração racional, lei natural da vontade geral, norma posta pelo critério da competência, vontade livre do julgador. Da completa indiferenciação à moderna teoria da linguagem, o conceito de direito foi tecido no sentido de uma humanização constante do objeto. O panorama que se segue não se pretende exaustivo, por não descer a minúcias conceituais e não abranger cada um dos movimentos verificáveis nos interstícios das escolas jurídicas mencionadas. Trata-se de visão macro, satisfatória aos objetivos deste estudo.

2.1.1. Indiferenciação
Nas sociedades primitivas, o direito se mostra indissociado da religião e da moral. A regulação da conduta sugere a noção de um justo natural, condizente com a essência primeira das coisas, decorrente da vontade divina ou da razão humana da liderança ilustrada. O conhecimento do direito não se distingue de sua prática2 e apresenta-se, em grande parte, transmitido pela tradição oral e estruturado tendo por base o poder familiar.
“Ora, em sociedades primitivas, esse poder está dominado pelo elemento organizador, fundado primeiramente no princípio do parentesco. Todas as estruturas sociais, que aliás não se especificam claramente, deixam-se penetrar por esse princípio, valendo tanto para relações políticas como para as econômicas e para as culturais, produzindo uma segmentação que organiza a comunidade em famílias, grupos de famílias, clãs, grupos de clãs. [...]
No horizonte do direito arcaico, só há lugar para uma única ordem: a existente, que é a única possível, a querida pela divindade e, por isso, sagrada. [...]
Nesse sentido, o direito confunde-se com as maneiras características de agir do povo (folkways) – por exemplo, o sentar-se em cadeiras ou no chão, o comer com as mãos, só ou em grupo, o uso de roupas – tomadas como particularmente importantes para a vida do grupo (mores) e manifestadas na forma de regras gerais. [...]
Essa forma maniqueísta de manifestação do direito é atenuada pela intervenção de sacerdotes ou de juízes esporádicos que, como guardas do direito, regulam sua aplicação. No entanto, essa regulação não se separa do próprio direito, de tal modo que não podemos falar do conhecimento do direito como algo dele separado. Esse “conhecimento” e sua prática (de aplicação) não se distinguem: a existência, a guarda, a aplicação e o saber do direito confundem-se.”3

Nessa fase, não há sequer o conceito de direito como objeto autônomo. Trata-se de status anterior à própria idéia de direito natural, concebida na era clássica e aperfeiçoada no período medieval, sob a autoridade do cristianismo. De fato, o período nebuloso de completa indiferenciação não ostenta pensadores que suscitem a problemática do conflito entre o justo e o posto. O titular do poder político, por vezes, era tido como a própria divindade, sendo o direito por ela emanado dotado de positividade e justiça inquestionável.

A estrutura do Egito Antigo é bastante exemplificativa:

“A sociedade e a economia eram dirigidas por um governo teocrático, baseado na união entre a Igreja e o Estado. A teocracia era um regime no qual a religião e a política estavam interligadas e se influenciavam reciprocamente. O poder religioso fornecia as bases ideológicas que explicavam e justificavam o poder político. O faraó era, a um só tempo, deus e rei: encarnação de Hórus e Rá e expressão do poder e do Estado. Considerado o “senhor de todos os homens e dono de todas as terras”, o faraó exercia a função de comandante-em-chefe, supremo juiz e grão-sacerdote.”4

Na civilização grega, vislumbra-se um direito fortemente indiferenciado no período Homérico (1700 – 800 a.C.), em que a mitologia prevalecia como modo de explicação da realidade e a religião fundamentava as relações de poder.

Leonel Itausssu e Luís César destacam:

“A religião grega surgiu no período Homérico, com a fusão de cultos e divindades de origem indo-européia, cretense e oriental. A religião era politeísta e antropomórfica [...]. Além dos deuses, existiam também os heróis ou semideuses que, através dos mitos, dominavam a imaginação popular. [...]
Os heróis estavam numa posição hierárquica intermediária entre os deuses e os homens. Segundo a mitologia, eram filhos de deuses e mortais, possuindo uma natureza parcialmente divina e parcialmente humana. Os heróis eram seres superiores aos homens e inferiores aos deuses, por isso eram chamados também de semi-deuses. Autores de façanhas épicas ou vítimas da fatalidade do destino, eram amados pelo povo grego. Sua força física sobre-humana ou sua inteligência extraordinária fascinavam a imaginação popular.”5

E acrescentam:

“O particularismo das cidades-estados e a diversidade de seus regimes políticos tinham sua contrapartida na unicidade social e cultural cimentada pela religião grega. A religião era o traço de união entre os gregos e sua unidade, conhecida como pan-helenismo, expressava-se concretamente nos oráculos, nos mistérios e nos jogos.”6
Somente por volta do século VII e início do século VI a.C., nas colônias gregas da Ásia Menor, com o surgimento das reflexões pré-socráticas de cunho cosmológico, a partir de Tales de Mileto7, inicia-se um processo de racionalização da compreensão da realidade que possibilita a discussão quanto à distinção entre direito justo e posto, aprofundada na fase jusnaturalista antiga do direito.

2.1.2. Jusnaturalismo antigo: o conflito entre physis e nomos
O raio de racionalismo que surge com a filosofia pré-socrática possibilita a reflexão ulterior quanto ao conteúdo das leis, se efetivamente justas ou não. A teoria dominante é da existência de um direito natural, justo por excelência, inerente à natureza material e humana, ainda que não manifestado no regramento positivo.

“O idealismo jurídico traduz-se, de forma geral, nas doutrinas do direito natural. Nessa vertente, há pontos em comum com o fato de o direito emanar da natureza, de existirem princípios legais não escritos que se superpõem ao direito posto. Nesse ponto, há primazia dos ideais mais elevados de justiça. O que é justo está de acordo com a ordem natural. As leis injustas devem ser subjugadas pelo ideal maior de justiça. ”8

O sentido básico dessa fase do naturalismo jurídico é a noção de que o direito positivo (nomos), o conjunto de regras postas pelo poder político dominante, deve fundamentar-se no direito que emana da Natureza (physis), esse perfeitamente justo, porque decorrente do equilíbrio natural do universo.

“O que é a natureza do naturalismo antigo? Duas coisas ao mesmo tempo, sem dúvida, que não se deve confundir: uma representação racional particular da natureza (uma “física”), que não poderia evidentemente ser confundida por nós com a própria natureza (em si), e que varia consideravelmente conforme se liga à física de Demócrates ou de Aristóteles, arrastando em seu sulco um ou outro tipo de jusnaturalismo; e a ideia geral, partilhada além das diferenças entre os físicos particulares, de que se pode colocar um outro ponto de vista sobre o direito positivo, que seria aquele de um conhecimento perfeito do que é perfeitamente justo: esse ponto de vista não seria aquele de Deus, como será no caso da teologia cristã e na metafísica clássica, mas aquele da Natureza.”9

De fato, por ser a Natureza objeto incognoscível por definição, no sentido conferido por Kant na Crítica da razão pura, uma vez que conhecer é fazer uma representação e que é definitivamente impossível comparar nossa representação com o objeto real10, realiza-se no naturalismo antigo a referência a uma física particular, a uma representação da natureza à luz da compreensão do pensador. Essa “natureza” específica emana princípios de um direito perfeitamente justo, que deve ser levado a confronto com o direito positivo para a verificação da legitimidade do último.

Tal conflito entre physis e nomos é idéia inteiramente nova:
“[..] um ponto de vista perfeito sobre o imperfeito, natural sobre o positivo. Fazê-lo em nome da natureza e não dos deuses ou de Deus, é em si uma invenção inédita: eis algo que prefigura o ponto de vista transcendental kantiano (o que torna possível o direito positivo é o direito natural, quer dizer, a própria idéia de direito), mas que se produz pela física e não pela teologia.”11

Apresenta-se o direito, nessa época, como “ciência da divisão e da repartição”12, tendo como objetivo básico atribuir a cada um o que lhe é devido, restabelecendo a divisão equilibrada das coisas à luz dos princípios normativos da natureza. A noção de justiça, aqui, é eminentemente distributiva, muito próxima da idéia de Aristóteles, para quem o direito ou o justo é uma proporção, ou o efeito de uma divisão que é proporcional. Ressalte-se que a “distribuição” realizada pelo juiz não consiste, necessariamente, na efetivação de um igualitarismo, idéia que tem sentido na justiça dita “comutativa”. No domínio da justeza, busca-se o equilíbrio mais justo das divisões, o que não necessariamente se identificará com uma igualdade matemática. É o direito, portanto, no entender de então, técnica de decisão com vistas à efetivação da justiça natural. Contudo, sendo o direito natural, em sua plenitude, incognoscível, por uma impossibilidade de apreensão de seu conteúdo por parte do ser racional, que o percebe de forma parcial por meio dos sentidos, a justiça perfeita permanece como um ideal a ser alcançado.

2.1.3. Jusnaturalismo teológico

Devendo a rigor ser compreendido como jusnaturalismo teológico de base racionalista, porque se valia da filosofia para uma concepção teológica do direito, na busca de um equilíbrio entre fé e razão, essa corrente teve desenvolvimento medieval.

“Desde as representações primitivas de uma ordem legal de origem divina, até a moderna filosofia do direito natural de Stammler e Del Vecchio, passando pelos sofistas, estóicos, padres da Igreja, escolásticos, ilustrados e racionalistas dos séculos XVII e XVIII, a longa tradição do jusnaturalismo se vem desenvolvendo, com uma insistência e um domínio ideológico que somente as idéias grandiosas e os pensamentos caucionados pelas motivações mais exigentes poderiam alcançar.”13

Na Idade Média, os fundamentos do direito natural eram a inteligência e a vontade divina, vez que a sociedade e a cultura se mostravam profundamente marcadas pela vigência de um credo religioso e pelo predomínio da fé. Sob o império da patrística e da escolástica, a teoria jusnaturalista apresentava conteúdo teológico, porquanto a filosofia medieval, de acentos notadamente cristãos, surgiu “da necessidade de responder às exigências da fé, ensinada pela Igreja, considerada então como a guardiã dos valores espirituais e morais de toda a Cristandade.”14

Prevalecia a concepção do direito natural objetivo e material, que estabelecia o valor moral da conduta pela consideração da natureza do respectivo objeto, conteúdo ou matéria, tomada como base de referência a natureza do sujeito humano, considerado na sua realidade empírica, reveladora de seu dever-ser real e essencial15.
Como observa Van Acker, não se tratava de um direito natural puramente objetivo, mas objetivo-subjetivo, pois tomava o objeto como ponto de partida e o sujeito como termo da relação de convivência ou do valor moral;16 da mesma forma, não era direito natural puramente material, mas material e formal, por ser a matéria da conduta carregada de sentido ou valor humano, positivo ou negativo – o que faz com que a dita “essência” da matéria seja particular, variando ao sabor da compreensão de quem especifica o direito natural.

A tese, contudo, persistente, é idealista: a lei natural é imutável em seus primeiros princípios. O direito natural, imanente à natureza humana, independe do legislador humano. As demais normas, construídas pelos legisladores, são aplicações dos primeiros princípios naturais às contingências da vida, mas não são naturais, embora derivem do direito natural.17
Conforme bem esclarece Montejano:

“Direito natural, em sentido estrito, é o justo natural e, em sentido derivado, são os princípios e normas jurídicas que regulam a vida social do homem, ainda que na ausência de toda ordenação positiva.”18

A escolástica, assim, concebia o direito natural como um conjunto de normas ou de princípios morais, que são imutáveis, consagrados ou não na legislação da sociedade, resultantes da natureza das coisas e do homem, segundo a essência conferida pelo Criador. Seus princípios mais próximos, por essa razão, são apreendidos imediatamente pela inteligência humana como verdadeiros, dada a identidade natural que se verifica no espírito. Deveras, os primeiros princípios da moralidade correspondem ao que há de permanente e universal na natureza humana, por isso perceptíveis, de imediato, pela razão comum da generalidade dos homens, independentemente de sua cultura ou civilização.19

O jusnaturalismo teológico, respaldado no cristianismo medieval, encontra seu maior expoente na obra de Tomás de Aquino (1225 – 1274). Para a concepção aristotélico-tomista, o direito natural abrange todas as normas de moralidade, inclusive as normas jurídico-positivas, enquanto aceitáveis ou toleráveis pela moral.20 A ética consiste em agir de acordo com a natureza racional, que orienta o homem pela consciência e permite ao sujeito captar, intuitivamente, os ditames da ordem moral. O primeiro postulado da ordem moral é: faz o bem, evita o mal.21 Classificando as leis em eternas, naturais e humanas, fixou o direito natural como base do conceito de direito.

“A lex aeterna, incognoscível, é a lex divina por essência, a qual, quando revelada de modo ínfimo, difuso, o que ele denomina “participação” ou “irradiação”, constitui a lex naturalis, em grande parte acessível à natureza racional do homem, iluminada pela revelação da Santa Madre Igreja, embora seus últimos princípios, radicados na lei eterna, permaneçam incognoscíveis. A lex humana explicita a lei natural, a fim de capacitá-la à regulação jurídica da sociedade, mediante processos como a conclusão (dedução silogística do conteúdo da lex naturalis) e a determinação (fixação dos princípios práticos de atualização do direito natural, como a determinação das penas).”22

A concepção tomista de direito, pressupõe, assim, uma impossibilidade da compreensão do direito natural em sua plenitude, vez que, emanado do Deus cristão, é eterno, ao passo que a percepção racional do homem, por mais elevado que seja em sentido espiritual, é sempre terrena, limitada, finita. A lei eterna é manifestada ao homem mediante brilhos de ilustração, em que a revelação de origem divina faz o homem “ver” parte da lei eterna, perfeita e infinita, do Criador. Tal revelação ínfima, difusa, constitui a lei natural, dada por Deus à Santa Igreja. Seus últimos princípios permanecem incompreendidos, porque radicados na lei eterna, de onde emanou em primeiro plano. A lei humana, por sua vez, é a que, explicitando a lei natural, traduz o sentido do direito revelado para as situações práticas da vida cotidiana, valendo-se das técnicas da dedução silogística e da determinação de princípios associados à lei revelada.

Note-se que, a despeito de teológico, o direito natural medieval tem base racionalista: fundamentada na metafísica de Aristóteles – “o filósofo” – a teoria pregava a construção da lei natural a partir do olhar racional sobre a revelação, que em sua maior parte se encontrava na Bíblia. O “irracionalismo” da fase, quando em confronto com o jusnaturalismo antropológico posterior, consiste na indefinição quanto aos critérios distintivos do direito justo. Dado que a lei divina é eterna, infinita, perfeita, imarcescível, apresenta-se, em sua plenitude, como objeto incognoscível à razão humana, que apreende tão-somente uma fração da parte da lei eterna que é revelada. Assim sendo, o perfeitamente justo permanece um mistério – não mais porque decorre da natureza, da essência da matéria, mas porque está em Deus, a fonte de todas as coisas.

2.1.4. Jusnaturalismo racionalista

Trata-se de acepção do direito natural de base antropológica, fundada na razão humana autônoma. De clareza solar é a descrição de Maria Helena Diniz:
“A concepção de direito natural objetivo e material (século XIII), foi, paulatinamente, substituída, a partir do século XVII, pela doutrina jusnaturalista do tipo subjetivo e formal, devido ao processo de secularização da vida, que levou o jusnaturalismo a arredar suas raízes teológicas, buscando seus fundamentos de validade na identidade da razão humana.”23

Com efeito, o século XVII introduziu mudanças significativas na forma de compreensão da realidade. A revolução científica, que apresentou concepções mecanicistas da natureza, com destaque aos estudos de Isaac Newton, forneceram a base para o surgimento do Iluminismo que, por volta do fim do século XVII, representou uma retomada da busca da razão como forma de explicação da natureza e dos fundamentos do homem e da sociedade. Iniciou-se um processo de afastamento das concepções teológicas de mundo, ante o surgimento de teorias de cunho puramente racional. O enfraquecimento do poder da Igreja, frente às transformações sociais, políticas e culturais introduzidas pelo Renascimento dos séculos XIV a XVI, o fim do Império Romano do Oriente, no século XV e a Reforma Protestante, do século XVI, possibilitaram a proliferação de discussões de teor cientificista, elidindo o monopólio do saber teológico como base para a estruturação da sociedade e do direito.
Nesse contexto, o jusnaturalismo racionalista “procura eliminar a vontade de Deus como elemento exterior ao direito, buscando uma base racional independente.”24 Mas não apresenta identidade com o naturalismo grego pautado em uma physis particular.

Tal jusnaturalismo “moderno” diferencia-se do antigo pela definição que coloca para o direito natural:

“O “direito natural” do modelo antigo é baseado na ordem da natureza: há nisso uma prioridade ontológica atribuída à natureza sobre as criações jurídicas de ordem positiva [...]. Quando o modelo puramente físico do mundo se apaga em benefício de um modelo metafísico, a problemática permanece inalterada: trata-se sempre de inscrever o paradigma da justiça no “ser do mundo”. Paralelamente, essas concepções atribuem igualmente uma prioridade à comunidade sobre o indivíduo, este último não podendo em nenhum caso ser o depositário de direitos “naturais”, que seriam anteriores a toda inscrição do estado político. Desde então, compreende-se que o direito natural moderno, cuja origem se situa por volta do século XIV como nominalismo de Ockham, é o contrário do modelo antigo: ele se baseia no indivíduo até a obsessão. O desabamento é total: os modernos deduzirão o direito natural da natureza no sentido da essência do sujeito humano, e não da natureza das coisas. Em suma, pode-se designar a primeira forma de direito natural como um direito “objetivo” e a segunda como um direito “subjetivo”.”25

O direito natural tornou-se “subjetivo” quando radicou-se na regulação do sujeito humano, individualmente considerado, cuja vontade cada vez mais assumiu um sentido subjetivo e autônomo. Nessa concepção jusnaturalista, a natureza do homem é uma realidade imutável e abstrata, por ser-lhe a forma inata, independente das variações materiais de conduta.26 Nesse momento racional jusnaturalista, a natureza do ser humano foi concebida 1) como genuinamente social, por Grotius, Pufendorf e Locke; 2) como originariamente não-social ou “individualista”, por Hobbes, Spinoza e Rousseau.27

Para essa teoria do direito natural subjetivo, os preceitos do justo e do injusto continuam válidos, mesmo se suposta a inexistência de Deus, por terem seu fundamento nas leis imanentes à razão humana (Grotius).28 Noutros termos, o direito natural, justo e distinto do posto, pode ser identificado por qualquer homem (rico e livre, segundo a realidade da época), com fundamento exclusivo na essência da natureza humana conforme definida pela razão, sem necessidade do intermédio da Igreja ou de ilustrados. Mais uma vez, impactante inovação no cenário teórico do direito. Surge, contudo, com essa tese, sério problema: se o direito justo pode ser dito por qualquer um, como solucionar os conflitos em justiça? Como solver as divergências verificáveis ante as distintas concepções de justo? Essa foi a temática perseguida palas teorias que se seguiram.

2.1.5. Jusnaturalismo democrático (historicismo casuístico)

Propugna essa teoria a idéia de que o direito natural repousa na “vontade geral do povo” ou “consciência popular (Volksgeist)”, no dizer de Savigny. É representada principalmente pelos jusfilósofos alemães Gustav Hugo, Friedrich Carl von Savigny e George Friedrich Puchta. Gustav Hugo, em seus estudos, rejeitou a moderna teoria jusnaturalista como sistema de princípios morais e racionais, estabelecendo as bases para a revisão do racionalismo histórico do direito natural, acentuando a dimensão histórica da relação jurídica. Para ele, o direito natural nada mais é do que o direito positivo universal, direito comum a todos os povos, criado pela razão natural, da qual o direito positivo ou o jus naturalis são um desenvolvimento histórico e particularizado.29

Tomando por base a obra de Gustav Hugo, a escola histórica encontra seu expoente em Savigny. A contribuição maior para o conceito de direito encontra-se na exigência de positividade como pressuposto fundamental, reagindo às concepções idealistas do jusnaturalismo.

A ciência jurídica, segundo Savingy e Hugo, deveria se valer do método histórico, em estudo comparativo e metódico dos direitos internacionais, para chegar a uma história do direito universal.

A sistematização histórica, entretanto, acabou se dissolvendo numa estilização sistemática da tradição, como seleção abstrata das fontes históricas, sobretudo romanas. O valor dado à intuição do jurídico fez com que a pesquisa histórica cedesse lugar a uma construção conceitual do direito, à luz de uma concepção de sistema lógico dotado de completude. O justo, portanto, seria o direito positivo verificado na constância da história, concebido como “direito natural”. Essa noção dá origem à Escola Positivista que a segue.

2.1.6. Juspositivismo

A partir do século XIX, o direito passa a ser visto pelos doutrinadores como a norma posta, fato que se deve, em grande parte, à noção introduzida pelos que advogavam uma metodologia histórica para a análise jurídica.
Razões outras há, contudo: a experiência jurídica entre os séculos XVI e XVIII revela que o direito se tornou cada vez mais escrito, o que ocorreu pelo rápido crescimento da quantidade de leis emanadas do poder constituído, pela decretação e redação oficial da maior parte das regras costumeiras.30
“O fato de o direito tornar-se escrito contribuiu para importantes transformações na concepção de direito e seu conhecimento. A fixação do direito na forma escrita, ao mesmo tempo em que aumenta a segurança e a precisão de seu entendimento, aguça também a consciência dos limites.”31

A tese perfilhada é de que não existe um direito natural, imanente à natureza ou à essência humana. O que existem são concepções éticas, muitas vezes compartilhadas no cenário internacional e verificadas ao longo da história. Em verdade, o direito é um fato social, associado ao poder político e garantido pela força. É direito o propugnado pelo poder dominante. Não se pode considerar direito aquilo que o detentor do poder não o considera.

Em verdade, acerca do conceito de direito, na linha juspositivista, uma multiplicidade de orientações surgiu, nos séculos XIX e XX, tendo por base a noção de direito legislado. Em linhas gerais, as diferentes escolas podem ser organizadas em três grandes grupos, a saber, legalismo exegético, o normativismo e o realismo jurídico.

O Empirismo exegético, que compreendeu a Escola da exegese, o Pandectismo e a Escola analítica, consistiu na identificação do direito positivo com a lei escrita, entendendo que a função do jurista era ater-se com rigor absoluto ao texto legal e revelar seu sentido. Intérprete e julgador tinham função meramente mecânica, devendo aplicar o texto legal segundo os princípios da lógica dedutiva. Seguida por Proudhon, Melville, Blondeau, Demolombe, Baudry-Lacantinerie, Laurent, Mercadé e outros. O direito, aqui, é a lei, pura e simplesmente.

O Normativismo ou racionalismo dogmático tem como base a doutrina de Hans Kelsen (1881 – 1973), jurista austríaco preocupado com a ausência de rigor técnico no tratamento das questões jurídicas, notadamente as relativas ao direito público e à teoria do Estado. Reagindo à anarquia conceitual que a má consciência científica do jurista tinha produzido, Kelsen submeteu o direito a uma dupla depuração, que restou em completo esvaziamento ético do direito, retirando de seu âmbito qualquer conteúdo valorativo. Para essa teoria, a ciência do direito “deve expor ordenadamente as normas, mediante o emprego no método normológico, que, pela imputação, liga um fato condicionante a um fato condicionado.”32 Para Kelsen, o direito é a norma posta da conduta humana. A teoria estática estuda o direito como um sistema de normas e a dinâmica o considera tendo em vista os atos de produção e aplicação, o processo jurídico em que é criado e aplicado. A questão primordial a que se deve ater o jurista é a da validade da norma. A ciência do direito é normativa porque tem a função de conhecer e descrever normas (proposições normativas, a saber, enunciados hipotéticos sobre a norma jurídica). A norma fundamental, situada no plano lógico-jurídico, é pressuposto gnoseológico do sistema, fundamento de validade de todo o ordenamento jurídico.

O Realismo jurídico norte-americano, representado por Gray, Llewellyn, Frank, Walter Cook, Charles Clark e outros, distinguiu o direito efetivo aplicado pelos tribunais das fontes jurídicas, que são os fatores que inspiram juízes e tribunais no estabelecimento das sentenças, que constituem o direito real e efetivo. Toda a tese gira em torno da pessoa do juiz e dos fatores reais que condicionam a decisão. O realismo jurídico escandinavo, de Alf Ross, preconiza uma interpretação antijusnaturalista dos ideais jurídicos, na descoberta dos princípios gerais do direito e dos ideais jurídicos empíricos, que resultam da experiência concreta da coletividade. Para ele, “o direito vigente é conjunto abstrato de idéias normativas que servem como esquema de interpretação para os fenômenos jurídicos em ação.”33

De fato, somente a partir do século XX, com concepções de cunho político e sociológico, associadas às idéias introduzidas pelo realismo norte-americano e escandinavo, questiona-se a autoridade do texto normativo enquanto materialização própria do direito. O juspositivismo clássico rege-se pelo império da lei – o texto é o direito e cabe ao jurista, tão-somente, compreendê-lo e aplicá-lo. Na linha realista, contra a concepção tradicional juspositivista, insere-se a teoria ora em estudo.

3. TEORIA CRÍTICA DO DIREITO: “TRÊS CONFUSÕES”

Conforme apresentado na introdução deste trabalho, a teoria proposta por João Maurício Adeodato, de cunho eminentemente realista, pauta-se em três afirmações: (1) a norma não se encontra no ordenamento jurídico; (2) o direito não é um conjunto de normas de conduta e (3) não existe um limite ético para as escolhas do direito bem como não há um único sentido juridicamente aceitável para o texto legal positivado. Consideremos cada uma das assertivas individualmente.
3.1. TEXTO e NORMA

A primeira noção trazida pela teoria crítica de Adeodato é a distinção entre textos e normas. “Os leigos e muitos profissionais do direito parecem crer que o chamado ‘ordenamento jurídico’ compõe-se de um conjunto de ‘normas’. Este é um primeiro equívoco, confundir normas com textos”34, coloca.
Discorre o autor que o ordenamento jurídico é um dado empírico, composto de fontes do direito. Para Venosa, “entendem-se como fontes formais [do direito] os modos, meios, instrumentos ou formas pelos quais o Direito se manifesta na sociedade, tal como a lei e o costume.”35

Adeodato sustenta:

“Falando em termos da semiótica contemporânea, as fontes do direito são significantes, enquanto as normas jurídicas são significados, cujos alcance e sentido só se podem determinar diante do caso concreto. As fontes são textos (podem também ser gestos ou palavras oralmente pronunciadas) que procuram expressar, significar, simbolizar normas jurídicas. O ordenamento jurídico é o conjunto dessas fontes; apenas em um sentido metafórico, metonímico e impreciso pode-se dizer que compõe-se de normas.”36

Trata-se de idéia inovadora em relação ao conceito de direito vigente até o início do século XX. Aqui, o direito não decorre de uma ordem natural das coisas, da ilustração divina ou da razão subjetiva. Tampouco está no ordenamento, como se as palavras tivessem o condão de encerrá-lo. O direito, sob uma ótica positiva, advém do ordenamento, mas com ele não se confunde. É o significado da ordem jurídico-positiva e não a própria ordem formal. Os textos jurídicos (leis, decretos, portarias, instruções normativas, instrumentos contratuais, etc.), compreendem uma tentativa de expressão da norma, criada tão-somente no caso concreto.

Com o fito de ilustrar a distinção entre significante e significado, o autor invoca a relação entre algarismo e número. Assim como o número “dois” é o significado, que pode ser expresso por diferentes significantes (gestuais, orais e textuais como a simbologia romana, indo-arábica ou a escrita por extenso nos mais diversos idiomas), assim a norma jurídica é o significado do texto que a tenta expressar.
Ante o conflito, os participantes do discurso jurídico devem se valer das fontes do ordenamento que fazem referência ao problema. Tendo em vista a “inegabilidade dos pontos de partida”37, para usar a expressão cunhada por Tércio Sampaio, há que se reportar o jurista, no embate dogmático, às fontes formais vigentes, construindo a argumentação à luz dos princípios positivados, na tentativa de fazer valer sua leitura sobre a ordem formal.

De fato, na primeira metade do século XX, Kelsen já afirmava que há normas jurídicas gerais e individuais, sendo estas as produzidas pelo Judiciário. Aprofundando a temática, Friedrich Müller, em 1994, chega a afirmar que não se pode separar “a norma” de sua interpretação, de sorte que somente diante do caso concreto é criada a norma jurídica. A generalidade, propugnada pelos exegetas como intrínseca à lei, é característica do texto e não da norma. “O decididor do caso concreto é quem cria a norma jurídica, da qual o texto é uma pequena parte, um dado de entrada”, afirma38. Sobre essa conclusão, serão tecidos maiores comentários à frente.

3.2. O CONTEÚDO DO ORDENAMENTO JURÍDICO
A segunda questão sensível, colocada como “confusão” propagada pelas anteriores concepções de direito é sobre do que é formado o ordenamento jurídico. Sabe-se, da afirmação anterior, que, na visão moderna, é o conjunto de textos e não de normas jurídicas. Utilizando a expressão imprecisa e metonímica, contudo, para favorecer a explanação, simplificando a exposição, tome-se que o ordenamento é formado por normas. O equívoco “é pensar que o ordenamento jurídico é composto por normas que procuram tratar de conflitos da conduta humana.”39

Em verdade, quis o professor da Faculdade de Direito do Recife sustentar que a ordem jurídica não é composta apenas por normas da conduta humana.
Que o direito regula a conduta, assim como as demais ordens éticas sociais, tais como a moral e a religião, não se questiona. A inovação é trazer a lume o fato de que o complexo de normas jurídicas contém regras outras que não as direcionadas ao agir humano.

“[...] o ordenamento também se compõe de fontes sobre fontes, fontes que intentam tratar conflitos entre fontes e não conflitos de conduta. Claro que mediatamente também essas têm por objeto a conduta humana, mas diretamente dirigem-se a fontes, é como um segundo nível, daí serem aqui chamadas de metarregras. E as regras expressas por essas fontes fazem parte do ordenamento jurídico e do direito dogmático.”40

Discutindo a questão da metodologia da disciplina jurídica, o autor coloca que se o estudo do direito se limitar à compreensão das regras de conduta do ordenamento, corre o risco de tornar-se obsoleto em curto espaço de tempo. Citando Kirchmann, para quem “três penadas do legislador transformam bibliotecas inteiras em lixo”41, Adeodato sustenta que essa parte do direito muda muito e vertiginosamente, razão pela qual é, até certo ponto, inútil, dedicar-se o operador do direito ao desenvolvimento de habilidades mnemônicas sobre os textos jurídicos.

“Essas regras de primeiro nível (“de conduta”), que determinam diretamente os procedimentos, são importantes e precisam ser circunstancialmente conhecidas, mas é impossível e também inútil memorizá-las, já que são muito numerosas, mudam constantemente e cada caso exige um conjunto diferente delas. O estudo do direito não se pode reduzir a essas regras de primeiro nível, tal como vem ocorrendo na educação jurídica brasileira. É preciso conhecer, sobretudo, as metarregras de conduta, as regras sobre regras, aquelas que resolvem os conflitos entre quais regras serão aplicadas àqueles conflitos de conduta e procedimentos.”42

De fato, o sistema jurídico é composto, além das regras de conduta, por regras de segundo nível, denominadas “metarregras”. Tais regras sobre regras definem critérios de validade para textos e como solucionar conflitos entre regras, situação presente em toda seleção dogmática de fontes do direito para a apreciação de um caso concreto. Algumas positivadas no sistema jurídico, outras não, tais metarregras encontram-se presentes em todos os ramos do direito; são em menor quantidade que as regras de conduta e dependem muito mais do que se acorda sobre elas que do que se pode extrair de sua expressão linguística.

Em passagem lapidar, sustenta:
“Esse tipo de conhecimento não se tornará inútil com mudanças legislativas ou jurisprudenciais, pois ele não se compõe de relatos descritivos sobre como o direito está agora, mas sim procura compreendê-lo e ensinar a lidar com ele. Não cabe à ciência do direito relatar o que está na lei ou como os juízes estão decidindo, mas sim ensinar legisladores e juízes a desempenhar melhor o seu trabalho e seu poder.”43

3.3. A APLICAÇÃO DA SEMIÓTICA MODERNA PARA A CONSTRUÇÃO DE UMA TEORIA RETÓRICA DO DIREITO

O autor coloca que o “terceiro equívoco” apresenta-se sob dois aspectos:

“O primeiro lado é achar que há e inclusive que se podem determinar quais são os limites para as escolhas éticas do direito. Ora todo direito faz opções éticas. Se existe uma regra jurídica em dada sociedade, qualquer que seja o seu teor, é porque o conteúdo valorativo dessa regra é querido pelos poderes constituídos daquela sociedade. [...]
O segundo lado é achar que os textos legais positivados têm um sentido correto ao qual devem ser subsumidos os casos concretos, ou seja, que há uma interpretação apropriada à qual a decisão do caso deve necessariamente se curvar.”44

Consideremos a primeira assertiva. O direito, como subsistema social normativo, apresenta indubitavelmente conteúdo ético. As opções que faz o legislador representam valores de uma parcela da sociedade que se mostrou vencedora em uma primeira etapa da “luta pelo direito”. Como fato social, o direito é o discurso dos poderosos. Não é possível estabelecer, a priori, um limites éticos para as escolhas do direito. A norma jurídica, conceitual, no sentido kelseniano, é vazia de conteúdo ético; tão jurídica coma regra que proíbe matar no atual Código Penal Brasileiro foi a ordem de Hittler para que se exterminassem os judeus na Alemanha nazista. O poder constituído diz o direito. Qualquer limitação ao poder normativo do detentor da força será política e não jurídica, partindo da massa revolta da sociedade inconformada com o direito posto. Como coloca o autor:

“O equívoco é achar que, acima das regras de segundo nível (metaregras) mencionadas acima, há regras de terceiro nível (todos os seres humanos devem ser iguais perante a lei), independentes de positivação, como defendem os chamados anti-positivistas. Os positivistas se recusam a aceitar que haja normas acima do ordenamento positivo, que pretendem valer por si mesmas. Essas regras já não fazem parte do ordenamento jurídico, não são dogmáticas. Elas constituem os fundamentos éticos e ideológicos do direito em conflito e são aquelas que apresentam caráter mais retórico: é impossível afirmar que determinadas percepções éticas são as “verdadeiras”.”45

O segundo aspecto discutido traz ao campo da definição do direito os resultados da moderna teoria da linguagem. Afirma João Maurício que não há uma única interpretação apropriada à qual devem ser levados os textos jurídicos; não há um sentido único, juridicamente aceitável, para os textos que pretendem traduzir a norma jurídica.
Segundo Charles Morris, filósofo norte-americano, a semiótica é a disciplina que se ocupa dos sinais ou signos; o uso de sinais é conhecido como semiose. A semiótica seria, portanto, uma teoria geral dos signos.46 A parte da semiótica que se ocupa da linguagem é a Linguística.

As modernas concepções linguísticas afirmam que, invariavelmente, todo significante pode assumir múltiplos significados. Assim sendo, como o direito necessita valer-se da linguagem para implementar sua função comunicativa, encontra-se fadado a uma multiplicidade de interpretações possíveis – todas linguisticamente legítimas e corretas. De fato, transmitir uma mensagem escrita com 0% de chance de ser incompreendido é absolutamente impossível. Como não é possível verificar com “o legislador” sua intenção comunicativa, vez que a lei é fruto de verdadeiro embate entre representantes de segmentos socais por vezes com interesses contraditórios, haverá sempre a possibilidade de o comando jurídico ser havido de forma distinta da que vinha sendo concebido; de fato, seu único critério fixador é um texto, que não limita absolutamente nada.

Em verdade, a norma jurídica somente se produz no caso concreto. Não tanto devido a uma impossibilidade quanto à regulação normativa em generalidade, mas pela possibilidade da definição de uma norma diversa a cada caso. Tantas vezes quantas seja olhado o texto normativo, tantas normas jurídicas podem corretamente existir. Com efeito, se todo significante tem múltiplos significados legítimos, múltiplas são as possíveis normas decorrentes de um mesmo texto jurídico. O direito, assim, é o fruto do esforço retórico das partes envolvidas no litígio, palco da verdadeira “luta pelo direito”, no sentido de Jhering.

O direito se forma a cada caso porque se faz necessária a presença de um terceiro, representando o Estado-juiz, para solucionar o conflito, sujeito a quem foi dada competência para analisar a matéria de fato e dizer o que entende ser o conteúdo do texto. O direito é o dito pelo juiz porque assim diz a lei – e é consenso entre Estado e sociedade que seja dessa forma. O conteúdo do direito, assim, é definido pelo critério da autoridade, justificado pela argumentação lógica e influenciado pela postulação retórica. Eis a tese da construção retórica do direito: no moderno estágio da civilização, o direito positivo é mero dado de entrada – a verdadeira norma é o fruto da construção retórica do direito em conflito, sustentado na busca da satisfação do ideal de justiça.

4. CONCLUSÃO

A tese de um direito fruto da construção retórica dos litigantes faz sentido porquanto a moderna teoria da linguagem assume ser impossível conceder a um texto qualquer uma única interpretação válida, correta, legítima. Assim sendo, no campo da investigação jurídica, é razoável compreender o direito como produzido caso a caso, vez que a interpretação do juiz de maior autoridade é o que vale no caso concreto. Jurídica ou não, baseada no texto legal ou não, a decisão judicial transitada em julgado será o direito, cujo limite somente a sociedade, na forma de um controle político, pode imprimir. Juridicamente não há limites ao julgador. Nem poderia haver, pois, se é dado a alguém dizer sua leitura sobre determinado texto, sendo sabido que há – sempre – múltiplas “leituras” possíveis, é necessário conferir liberdade a quem se enfronhe nessa tarefa. O conceito de direito, assim, apresenta-se como eminentemente retórico, porquanto fruto da construção dos litigantes na experiência dialética dos tribunais.

Que dizer, então, das diferentes concepções de direito tomadas ao longo da história? Trata-se de visões necessariamente distorcidas do fenômeno jurídico? Em verdade, o direito é um fenômeno social. Seu estudo é a análise de um objeto em constante mutação. Em que pese o sentido tautológico, em rigor, a resposta à pergunta “o que é o direito?”, tendo em mente a mutabilidade do conceito, deveria ser que o direito é tudo o que já foi e tudo o que será. As teorias são tentativas de explicação do que foi o direito ao longo do tempo. Ocorre que o que vem a ser o direito, como resultado da opção dos detentores do poder, sofre influência das teorias dominantes no campo da filosofia, da sociologia e do próprio direito. Assim sendo, estudar a teoria do direito não é perder-se em um emaranhado de concepções sobre um objeto indefinido. É observar os diferentes conteúdos que assumiu o direito ao longo do tempo e as diferentes propostas para o que assumirá no futuro. De fato, uma teoria sedutora do direito pode fazê-lo vir a ser o que afirma ser.

Nesse sentido, conclui-se este trabalho com a proposta de que o direito contemporâneo, encerrado em textos e traduzido pela autoridade judicial, é fruto de uma construção eminentemente retórica. É a explicação que se busca dar – ou a noção que se deseja formar.

NOTAS

1 Expressão utilizada pelo Prof. João Maurício Adeodato na Faculdade de Direito do Recife.
2 FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação.
3 FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Op. cit., 2008, p. 29, 30.
4 MELLO, Leonel Itausssu A.; COSTA, Luís César Amad. História Antiga e Medieval: da comunidade primitiva ao Estado Moderno. 3. ed. São Paulo: Scipione, 1995, p. 36.
5 MELLO, Leonel Itausssu A.; COSTA, Luís César Amad. Op. cit., 1995, p. 122.
6 Idem, 1995, p. 122.
7 CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 2000, p. 28.
8 VENOSA, Sílvio de Salvo. Introdução ao estudo do direito: primeiras linhas. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 20.
9 BILLIER, Jean-Cassien; MARYIOLI, Aglaé. História da Filosofia do Direito. Tradução de Maurício de Andrade. Barueri, SP: Manole, 2005, p. 43.
10 BILLIER, Jean-Cassien; MARYIOLI, Aglaé. Op. cit., 2005, p. 43.
11 Idem, 2005, p. 43, 44.
12 Idem, 2005, p. 45.
13 MACHADO NETO, A. L. Teoria da ciência jurídica. Apud DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito. 18. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 36.
14 ESCOLÁSTICA. In: WIKIPEDIA, a enciclopédia livre. Disponível em: Escol%C3%A1stica>. Acesso em: 28 mar. 2010, 10:25:37
15 DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito. 18. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 36.
16 VAN ACKER, Leonardo. Curso de filosofia do direito. Apud DINIZ, Maria Helena. Op. cit., 2006, p. 36, 37.
17 DINIZ, Maria Helena. Op. cit., 2006, p. 37.
18 MONTEJANO, Bernardino. Curso de derecho natural. Apud VENOSA, Sílvio de Salvo. Op. cit., 2006, p. 20.
19 DINIZ, Maria Helena. Idem, 2006, p. 37.
20 Idem, 2006, p. 37.
21 TOMÁS DE AQUINO. In: WIKIPEDIA, a enciclopédia livre. Disponível em: . Acesso em: 28 mar. 2010, 11:45:23
22 ADEODATO, João Maurício. Ética e retórica: para uma teoria da dogmática jurídica. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 112.
23 DINIZ, Maria Helena. Op. cit., 2006, p. 38.
24 ADEODATO, João Maurício. Op. cit., 2009, p. 112.
25 BILLIER, Jean-Cassien; MARYIOLI, Aglaé. Op. cit., 2005, p. 47.
26 DINIZ, Maria Helena. Op. cit., 2006, p. 38.
27 Idem, 2006, p. 38, 40.
28 Idem, 2006, p. 38, 41.
29 Idem, 2006, p. 98.
30 FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Op. cit., 2008, p. 48.
31 Idem, 2008, p. 48.
32 DINIZ, Maria Helena. Op. cit., 2006, p. 119, 120.
33 DINIZ, Maria Helena. Op. cit., 2006, p. 123.
34 ADEODATO, João Maurício. A construção retórica do ordenamento jurídico – três confusões sobre ética e direito. Em edição, p. 01.
35 VENOSA, Sílvio de Salvo. Op. cit., 2006, p. 119.
36 ADEODATO, João Maurício. Op. cit., Em edição, p. 01.
37 FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Op. cit., 2008, passim.
38 ADEODATO, João Maurício. Op. cit. Em edição, p. 04.
39 Idem, p. 04.
40 Idem, p. 05.
41 KIRCHMANN, Julius Hermann von. Die Wertlosigkeit der Jurispru¬denz als Wissenschaft. Apud ADEODATO, João Maurício. Op. cit., em edição, p. 04.
42 ADEODATO, João Maurício. Op. cit., em edição, p. 07.
43 Idem, p. 08.
44 ADEODATO, João Maurício. Op. cit. Em edição, p. 09.
45 Idem, p. 10.
46 DINIZ, Maria Helena. Op. cit., 2006, p. 165.


REFERÊNCIAS

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