terça-feira, 12 de outubro de 2010

Interceptação das comunicações telefônicas

por Cláudio Ricardo Silva Lima Júnior

O inciso XII, parte final, do art. 5° da Constituição Federal de 1988 é regulamentado pela Lei 9.296, de 24 de julho de 1996. Trata o dispositivo acerca da possibilidade constitucional de quebra do sigilo das comunicações telefônicas, por ordem judicial, exclusivamente nas hipóteses de investigação criminal ou instrução processual penal. Na sequência, breve resumo da legislação em referência.

- A interceptação das comunicações telefônicas ou do fluxo de comunicações em sistemas de informática e telemática somente podem ser deferidas, por autoridade judiciária, no âmbito de investigação criminal (via de regra, inquérito policial) ou de instrução processual penal (ação penal).

- Requisitos para a interceptação telefônica:

a) indícios razoáveis de autoria ou de participação em infração penal;
b) a prova não puder ser obtida por outros meios;
c) o fato constituir infração penal punida, pelo menos, com reclusão.


- A interceptação telefônica pode ser decretada:

a) pelo juiz, de ofício;
b) pela autoridade policial, na investigação criminal (inquérito policial);
c) pelo Ministério Público, na investigação criminal e na instrução processual penal (no inquérito e na ação penal).

- O juiz decide sobre o pedido de interceptação telefônica em 24 horas.

- A decisão indicará a forma de execução da diligência, que não poderá exceder 15 dias, renovada por igual período, uma vez, comprovada a indispensabilidade do meio de prova.

- Sendo autorizada a gravação da comunicação interceptada, será determinada sua transcrição.

- A interceptação é levada a cabo pela autoridade policial, mas esta deverá dar ciência ao Ministério Público, que poderá acompanhar sua realização.

- A autoridade policial poderá requisitar serviços e técnicos especializados das concessionárias de serviço público.

- Cumprida a diligência, a autoridade encaminhará o resultado da interceptação ao juiz, juntamente com auto circunstanciado, com o resumo das operações realizadas.

- A interceptação da comunicação telefônica correrá em autos apartados.

- Recebido o resultado da interceptação, o juiz determinará que sejam apensados aos autos do inquérito ou da ação penal, de forma que:

a) No inquérito policial, serão apensados antes do relatório;
b) Na ação penal, serão apensados antes da conclusão para o despacho:
a. relativo à suspeição, impedimento ou incompetência relativa
b. saneador, que determina as diligências indispensáveis ao esclarecimento da verdade e marca a data da audiência de julgamento;

- A gravação que não interessar à prova será inutilizada, por decisão judicial, em virtude de requerimento do Ministério Público ou da parte interessada. O incidente de inutilização será assistido pelo Ministério Público, sendo facultada a presença do acusado ou de seu representante legal.

- Constitui crime, punido com reclusão, de dois a quatro anos, e multa, realizar interceptação de comunicações telefônicas, de informática ou telemática, ou quebrar segredo da Justiça, sem autorização judicial ou com objetivos não autorizados em lei.

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Teoria da Argumentação

por Cláudio Ricardo Silva Lima Júnior

Foi publicado na edição de hoje da revista Jus Navigandi o artigo "Teoria da Argumentação: a proposta de Robert Alexy para a fundamentação racional da decisão jurídica". De acordo com a NBR/ABNT, a citação pode ser feita da seguinte forma:

LIMA JÚNIOR, Cláudio Ricardo Silva. Teoria da argumentação: a proposta de Robert Alexy para a fundamentação racional da decisão jurídica. Jus Navigandi, Teresina, ano 15, n. 2612, 26 ago. 2010. Disponível em: http://jus.uol.com.br/revista/texto/17268. Acesso em: 26 ago. 2010.

Agradecemos mais uma vez!

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Teoria pluralista do direito: as relações entre os ordenamentos jurídicos na doutrina de Norberto Bobbio

por Cláudio Ricardo Silva Lima Júnior, Bruno Ribeiro de Oliveira Costa, Ecliston de Brito Melo, Érica Pinto Evangelista, Gideane Livramento dos Santos, Gustavo Ramos Gonçalves, Jaílson Guilherme de Melo e Sidraque Antônio da Silva


Sumário: 1. Introdução. 2. Universalismo e pluralismo jurídico. 3. Relações entre ordenamentos: possibilidades. 4. Relações entre o Estado e ordens infraestatais. 5. Relações em espécie. 5.1 Relações temporais. 5.2 Relações espaciais. 5.3 Relações materiais. Conclusão. Referências.


1. INTRODUÇÃO

A concepção pluralista de direito exige o tratamento teórico de questões atinentes ao foro externo do ordenamento. A considerar-se a multiplicidade de sistemas jurídicos autônomos na ordem internacional, bem como, no âmbito de um Estado soberano, a coexistência de diferentes ordens normativas da conduta humana, dotadas – a depender do conceito de direito que se tome – de certa medida de juridicidade, necessário se faz analisar as relações que travam os ordenamentos entre si, ao menos quando se pretenda uma teoria jurídica que se digne. A par dos problemas situados no interior do ordenamento, há que se considerar os que nascem no exterior do sistema jurídico.

Nesse sentido, Norberto Bobbio (Turim, 1909-2004), em sua Teoria do Ordenamento Jurídico, realiza interessante digressão no que tange às possíveis relações que se desenvolvem entre os ordenamentos. Após trabalhar os problemas da unidade, da coerência e da completude do ordenamento jurídico, discorre sobre as relações dos sistemas jurídicos entre si, partindo do pressuposto da inexistência de um direito material único.

Este trabalho se propõe considerar a teoria de Bobbio concernente às relações entre os ordenamentos jurídicos, valendo-se da perspectiva pluralista colocada pelo autor. Concebendo norma jurídica como aquela “cuja execução é garantida por uma sanção externa e institucionalizada” [1], para acompanhar a definição do mestre italiano, adota a postura segundo a qual é “jurídica” toda instituição normativa sancionadora, ainda que diversa do ente estatal.

Após consideração genérica acerca do pluralismo jurídico, são abordadas as diversas possibilidades de relação entre os ordenamentos; como situação específica digna de destaque, é analisada a relação do Estado com as ordens jurídicas infraestatais, denominadas “ordenamentos menores”; na sequência, estuda-se o modelo teórico proposto por Bobbio para as diversas relações entre as ordens jurídicas, trabalhando-se os conceitos e estratégias de solução propostas no âmbito dos confrontos de natureza espacial, temporal e material.

Ciente de que se baseia em tese não imune a críticas, não toma como suas cada uma das afirmações postuladas pelo catedrático de Turim; tem por objetivo, precipuamente, apresentar a teoria proposta, contextualizando os resultados obtidos à luz das especificidades da experiência jurídica contemporânea. Considerando o conteúdo da forma como trabalha o autor a matéria, busca não elaborar um compêndio acerca das relações decorrentes de uma concepção pluralista de direito; espera-se, antes, iniciar uma discussão a ser posteriormente desenvolvida, com vistas a um clareamento ulterior do objeto, em postura própria da adequada metodologia científica.


2. UNIVERSALISMO E PLURALISMO JURÍDICO

Como pressuposto à análise da relação entre os ordenamentos, sustenta Bobbio a existência de uma pluralidade de sistemas jurídicos.

“A idéia de pluralismo jurídico é decorrente da existência de dois ou mais sistemas jurídicos, dotados de eficácia, concomitantemente em um mesmo ambiente espacio-temporal.” [2]

O ideal do ordenamento jurídico único, que remonta ao Direito Romano e às concepções do Jusnaturalismo Teológico e Antropológico, entende necessário à legitimidade do direito positivo fundamentar-se a ordem histórica em um direito natural, universal, que ostentaria a qualidade de justo por decorrer da natureza ou do esforço racional dos homens. Nesse contexto, mais importante que indagar sobre as relações entre ordenamentos distintos era trabalhar as relações dos diversos direitos particulares com o direito único universal. Sob o império da teoria monista, as principais discussões jusfilosóficas diziam respeito à dicotomia entre direito positivo e direito natural, sendo relegado a segundo plano o estudo das relações entre as variadas manifestações históricas do direito positivo.

O Monismo Estatal foi um fenômeno jurídico que floresceu na cultura moderna européia, a partir dos séculos XVII e XVIII. Corresponde à visão de mundo predominante na sociedade moderna, centrada no interesse do Estado e na ética da racionalidade liberal-individualista. O paradigma entrou em crise de esgotamento e estrutura, em razão do não acompanhamento das profundas transformações econômicas e políticas trazidas pelos conflitos coletivos, a não satisfação das demandas sociais e as novas necessidades criadas pela globalização do capitalismo e sua inserção determinante nas estruturas sócio-políticas, dependentes e periféricas. [3]

Dois foram os processos através dos quais decaiu o monismo jurídico: 1) o historicismo jurídico e o 2) institucionalismo.

Por historicismo jurídico entende-se a corrente de pensamento carreada pela escola histórica do direito, segundo a qual o direito natural nada mais é do que o direito positivo universal ou o jus gentium do direito romano, direito comum a todos os povos, constituído pela razão natural (Gustav Hugo) [4]. No dizer de Savigny, o direito natural seria o que se pode extrair da “consciência popular” ou “espírito comum do povo”, razão pela qual a comparação histórica dos diversos direitos nacionais deveria ser a metodologia adotada pela ciência jurídica.

“Essa primeira forma de pluralismo tem caráter estatalista. Há não apenas um, mas muitos ordenamentos jurídicos porque há muitas nações, que tendem a exprimir cada uma num ordenamento unitário (o ordenamento estatal) a sua personalidade, ou, se quisermos, o seu gênio jurídico.” [5]

Com efeito, o Historicismo Casuístico introduz a noção de pluralismo jurídico pela constatação da pluralidade estatal: na medida em que diversos são os Estados nacionais, cada um na exata expressão de seu gênio jurídico, diversos são os ordenamentos existentes em um dado momento histórico, sendo o direito natural, enquanto representação do ideal de justo, o que de permanente se verifique no curso evolutivo das ordens nacionais. No âmbito de uma específica nação juridicamente organizada, contudo, prevalece a concepção monista, sendo entendida a ordem jurídica como produto exclusivo da atividade estatal.

A doutrina de Hugo, Savigny e Puchta acabou por lançar as bases para a teoria predominante no momento seguinte, a saber, o positivismo jurídico. Consoante o juspositivismo, não existe direito além do direito positivo, posto, colocado pelo Estado e por este considerado válido, apto a produzir efeitos. A principal característica do direito positivo é ser criado por uma vontade soberana; logo, onde existir um poder soberano, ali haverá direito. Como cada vontade soberana é, por definição, independente de qualquer outra, cada Direito constitui ordenamento autônomo. A concepção positivista de direito, assim, promove intrinsecamente o pluralismo jurídico estatalista.

Nessa ótica voluntarista, um direito universal somente se produziria na existência de um único poder soberano universal. Com a queda da concepção teológica de mundo na filosofia e nas ciências, rechaçou-se a hipótese de um governo divino representar um poder universal, do qual os singulares poderes estatais fossem manifestações diretas ou indiretas. Ademais, reconhecendo-se como fonte do direito não a razão, mas a vontade, deriva-se, inevitavelmente, o pluralismo jurídico.

O institucionalismo, por sua vez, é a corrente que sustenta haver não apenas diversos ordenamentos jurídicos de uma mesma espécie, mas ordenamentos de muitos e variados tipos. Denominado pluralismo jurídico institucional, tem como tese principal a existência de um ordenamento jurídico onde existe uma instituição, um grupo social organizado.[6]

A expressão “pluralismo” assume, nesse sentido, conteúdo mais pleno. Em verdade, a não se especificar o pluralismo jurídico como estatal ou nacional, entende-se, comumente, traduzir o termo essa perspectiva mais ampla, que concebe como jurídicas ordens normativas diversas da produzida pelo ente estatal formalmente constituído.
“A esta concepção que admite a coexistência de várias ordenações se denomina pluralismo jurídico, e opõe-se ao monismo, teoria que aceita a ordenação do Estado como a maior expressão da normatividade jurídica.” [7]

Tal perspectiva advém das mesmas correntes de pensamento sociológicas, antiestatais, que deram origem à escola do direito livre, que teve como expoente o jurista alemão Eugen Ehrlich e sua obra A lógica dos juristas (Die juristische Logik, Tübingen, 1925). Por considerar o envelhecimento da codificação, sobretudo na França, concluiu-se pela insuficiência do legislador na busca pela solução pacífica dos conflitos, o que promoveu a passagem de uma “jurisprudência exegética” para uma dita “científica”, pautada numa crítica livre em relação ao códigos. [8] Ademais, com as rápidas e profundas transformações introduzidas pela Revolução Industrial do século XIX, acelerou-se o envelhecimento natural da legislação, em um processo que fazia o texto parecer mais antigo e ultrapassado a cada instante, derrubando por terra o dogma da completude do ordenamento. A teoria das lacunas surge, nesse período, como estímulo à criação judicial, de sorte a possibilitar soluções satisfatórias a problemas ignorados pela legislação.

Outro fator que contribuiu para o desenvolvimento da teoria institucional foi o desenvolvimento particular da filosofia social e das ciências sociais do século XX, que, nas diversas correntes em que se manifestaram, apresentaram, como característica comum, a polêmica contra o Estado e o enaltecimento da sociedade abaixo do Estado.

“Tanto o marxismo quanto a sociologia positivista – para limitarmo-nos às duas maiores correntes da filosofia social – foram animadas por uma crítica contra o monismo estatista, que teve a sua expressão mais intransigente na filosofia hegeliana, mas tinha ramificações muito mais antigas. “ [9]

Ante o soerguimento do Estado e sua tentativa de absorver a sociedade como um todo, a luta de classes tendia a romper os limites da ordem estatal. Novos grupos sociais, como sindicatos, associações e partidos políticos, representativos das relações decorrentes das transformações econômicas e sociais, “colocavam em evidência uma vida subjacente ou contrastante com o Estado, que nem o sociólogo e nem o jurista podiam ignorar.”[10] A sociologia do século XIX, imbuída do espírito científico do período, contribuiu para a derrocada do mito do Estado, do qual fazia parte o dogma da completude. Ao lado da descoberta da importância da sociedade em relação ao Estado, formou-se a consciência do descompasso entre o direito estatal e a realidade social, firmando-se a sociologia como instrumento contra a pretensão totalizante do ordenamento jurídico do Estado.

Como consequência da teoria institucionalista, há o enriquecimento do problema da relação entre ordenamentos: por se considerar “jurídica” toda ordem institucional, em lugar de se analisar pura e simplesmente as relações entre diferentes ordens jurídicas estatais, inserem-se no objeto de estudo as relações entre ordenamentos diversos dos estatais.

Segundo Bobbio, há quatro espécies de ordenamentos não-estatais:

a)ordenamentos acima do Estado, como o ordenamento internacional e, segundo algumas doutrinas, a Igreja Católica;
b)ordenamentos abaixo do Estado, propriamente sociais, reconhecidos pelo Estado e por ele limitados ou absorvidos;
c)ordenamentos ao lado do Estado, como a Igreja Católica, conforme determinadas acepções ou a ordem jurídica internacional, na teoria denominada dualista;
d)ordenamentos contra o Estado, como organizações criminosas, seitas secretas ou paramilitares.

O ordenamento jurídico internacional, cuja normatividade decorre da anuência particular de cada Estado soberano, é compreendido pela doutrina ora como acima do Estado, segundo certa corrente do monismo jurídico-internacional, ora como ao lado da ordem nacional, na perspectiva chamada dualista.

A teoria monista sustenta que tanto o Direito Internacional quanto o Interno, Nacional, constituem o mesmo sistema jurídico, havendo apenas uma única ordem jurídica que dá nascimento às normas internacionais e nacionais. [11]

Tal entendimento é corroborado por Kelsen:

"Se esta norma, que fundamenta os ordenamentos jurídicos de cada um dos Estados, é considerada como norma jurídica positiva – e é o caso, quando se concebe o direito internacional como superior a ordenamentos jurídicos estatais únicos, abrangendo esses ordenamentos de delegação – então a norma fundamental – no sentido específico aqui desenvolvido, de norma não estabelecida, mas apenas pressuposta – não mais permite falar em ordenamentos jurídicos estatais únicos, mas apenas em bases do direito internacional". [12]

Com efeito, a se entender a ordem jurídica internacional como superior à nacional, compreende-se a norma nacional de maior hierarquia como norma positiva, portanto, posta e não pressuposta. Sendo a norma fundamental, em Kelsen, o fundamento de validade lógico-transcendental da ordem jurídica – logo, norma pressuposta – teria de situar-se em plano superior à ordem internacional. Nesse sentido, resulta impossível falar em uma “dualidade” de ordens jurídicas, vez que ambas as normas, nacional e internacional, decorrem de um mesmo fundamento de validade. A ordem nacional seria, assim, apenas um assentamento espaço-temporal, tão-somente uma “base” do direito internacional.

Interessante, contudo, que o monismo jurídico internacional permite, no plano teórico, sustentar-se ideia oposta: considerando a origem comum das normas nacionais e internacionais, é possível escaloná-las hierarquicamente de modo diverso. Propugnando-se pela supremacia do direito interno, reconhece-se, no caso concreto, o direito internacional como mero desdobramento da ordem nacional; defendendo a superioridade das normas internacionais, considera-se que a autonomia estatal encontra limite no ordenamento internacional. Terceira corrente ainda monista, propõe equivalência entre as normas nacionais e internacionais, devendo possível conflito ser suprimido mediante critérios próprios, como o da revogação da lei mais antiga pela mais recente. [13]

A teoria dualista, por sua vez, enxerga distinção clara entre as ordens nacional e internacional. Segundo tal concepção, a ordem jurídica interna compreende a Constituição e o direito infraconstitucional vigente em determinado Estado soberano, ao passo que a ordem externa envolve Tratados e Acordos internacionais, bem como as regras costumeiras que regem o relacionamento entre os diversos Estados. A distinção teria por base o fato de que as ordens nacional e internacional têm origens distintas e objetos diversos: a norma externa só teria aplicabilidade no direito interno caso fosse compatível com a Constituição e o descumprimento de uma norma de direito internacional sujeitaria o infrator a sanções internacionais, produzindo efeitos apenas nessa ordem, em nada influindo, do ponto de vista jurídico, no âmbito interno. No sentido de tal teoria, a ordem jurídica internacional é vista ao mesmo nível da ordem estatal interna, não havendo entre o direito nacional e o internacional relação de natureza hierárquica.

Ordenamentos tidos como abaixo do Estado são os tipicamente sociais, como os sindicatos, associações, partidos políticos e pessoas jurídicas em geral. Como mencionado, para Bobbio, tais ordenamentos podem também ser considerados jurídicos, na medida em que implementam normas garantidas por uma sanção institucionalizada. A norma emanada no âmbito de uma empresa pelo empregador a seus funcionários, por exemplo, seria dotada de “juridicidade” na medida em que sujeita o destinatário a uma sanção pelo descumprimento, consequência essa passível de execução pela instituto social que a deu origem. Tais ordenamentos são reconhecidos pelo Estado, regulados na forma da lei e, por vezes, absorvidos pela ordem jurídica estatal que, por “recepção” ou “reenvio”, no dizer de Bobbio, se vale do regramento por eles produzido.

Considera a doutrina ordenamento ao lado do Estado, além da ordem internacional (na teoria dualista), a Igreja Católica e, de modo geral, as religiões tradicionais, reconhecidas socialmente como instituições perenes no curso histórico. Em razão de uma existência de longa data e da reconhecida influência da normatividade por elas emanada na vida prática da população, costuma-se situar tais ordens religiosas como em posição paralela ao Estado, razão pela qual travariam com a ordem jurídico-positiva estatal relações de coordenação e não de subordinação. Diferentemente de religiões de menor expressividade, que se constituem juridicamente na forma de associações – colocando-se, portanto, no plano teórico, como ordenamentos abaixo do Estado – as ordens eclesiásticas tradicionais ocupariam, segundo alguns autores, o mesmo status social da pessoa jurídica do Estado, o que evidentemente influenciaria no teor das relações entre os correspondentes ordenamentos.

A referência que Bobbio faz à ordem Católica, por exemplo, é digna de nota. Sobretudo na Itália, de onde escreve o autor, é a Igreja Católica Romana instituição de tamanha respeitabilidade que se torna confortável situá-la em plano paralelo ao Estado temporal.

Conforme destaca Gustavo Ferreira Ribeiro,

“O Sumo Pontífice, durante a Idade Média, era o chefe dos Estados Pontifícios. Tal situação perdurou até 1870, quando a unificação italiana provocou o desaparecimento dos Estados do Papa. Roma, antiga sede territorial do Estado Pontifício, foi anexada ao Reino Italiano e uma lei italiana de 1871 outorgou à Santa Sé a manutenção do papel espiritual da religião católica, o usufruto de palácios e a imunidade diplomática de seus membros. A soberania territorial, entretanto, havia se esfacelado. A situação foi resolvida em 1929, quando Mussolini assinou os Acordos de Latrão. Os Acordos compreenderam a um tratado político – reconhecimento de Roma como a capital italiana; uma concordata – que regula o Estatuto da Igreja com a Itália; e uma convenção financeira (de acordo com Pellet).” [14]

Como consequência dessa origem, é atualmente o Vaticano caso singular no cenário internacional. Para alguns doutrinadores, apresenta a instituição duas personalidades jurídicas distintas: como pessoa jurídica de direito público internacional, tem a prerrogativa, dentre outras coisas, de assinar tratados e ser membro de organizações internacionais; como sede da religião Católica, seria o território o centro gestor do trabalho espiritual pela Igreja desenvolvido.

Com efeito, alguns autores chegam a sustentar dever haver rígida distinção entre Vaticano e Santa Sé, este sendo a representação do poder espiritual, enquanto aquele a manifestação do poder temporal. Para outros, contudo, a existência de duas personalidades jurídicas não se sustenta: a utilização de um ou outro nome nos tratados seria mera casuística, já que resta resolvida a questão da inconteste soberania no microterritório destinado à Igreja (Cidade do Vaticano).

É em razão dessa peculiar característica que se toma a Igreja Católica como paralela ao Estado, enquanto ordenamento. A despeito de não se verificar situação semelhante em instituição religiosa diversa, é possível situar no mesmo plano teórico do Estado formal ordem outra de natureza religiosa, porquanto se utilize, como critério, não a existência de soberania – posto que muitíssimo restrita – mas a plausibilidade da normativa que promana e a respeitabilidade dos provimentos institucionais no seio social.

Por fim, menciona Bobbio a existência de ordenamentos contra o Estado. Ante o peso da perspectiva jurídico-positiva estatalista torna-se um tanto dificultoso aceitar a existência de uma ordem jurídica contrária ao Estado. Por essa razão, não é demais repetir que, para Bobbio, é jurídica qualquer norma pertencente a um ordenamento que garanta a execução de suas regras por uma sanção institucionalizada. Significa dizer que, para o autor, na medida em que existe um grupamento social organizado, que garante pela previsão de sanção a execução de normas de conduta válidas em seu âmbito de atuação, está-se diante de um ordenamento jurídico, composto por normas, por definição, jurídicas. Assim sendo, jurídica seria a organização criminosa do Primeiro Comando da Capital, de São Paulo; ou a ordem da favela da Rocinha, no Rio de Janeiro; tais ordenamentos são materialmente contrários ao Estado, pois promovem regras de conduta cujo conteúdo é incompatível com o do ordenamento estatal.

Verifica-se, portanto, contemporaneamente, significativo pluralismo. Tanto no âmbito estatal, pela pluralidade de Estados soberanos que emanam ordens jurídicas autônomas, quanto, no interior de cada Estado, pela pluralidade de ordenamentos institucionais, que se relacionam entre si e com o Estado, apoiando-o, sobordinando-o, a ele se conformando ou com ele mantendo franca contradição, constata-se a quebra do monismo estatalista e o avanço para uma concepção de direito cada vez mais comprometida com sua origem social.

O pluralismo institucionalista a que Bobbio faz alusão muito tem a ver com a luta social pela implementação do ideal de justiça. Constatado que é a ordem jurídica do Estado incapaz de regular sistematicamente toda situação passível de verificação prática – ou, ao menos, de fazê-lo satisfatoriamente, para referir ao entendimento de Kelsen – necessária se faz a participação efetiva de instituições sociais na promoção de subsídios à decisão justa.

Nesse sentido, poderosa é a reflexão que induz Lon L. Fuller, em O caso dos exploradores de cavernas. Consoante a fictícia narrativa, cinco exploradores de cavernas ficam presos após um deslizamento de terra que fecha a única saída da gruta em que se encontram os participantes de uma expedição. A despeito do grande esforço despendido pela Sociedade Espeleológica, que exauriu todos os seus fundos, os subvencionados pelo Poder Legislativo e os obtidos em uma campanha de arrecadação, o dispendioso resgate somente chega ao fim decorridos 30 dias do início das buscas – tempo suficiente para todos os envolvidos morrerem de inanição. No vigésimo dia do resgate, após a descoberta de que os exploradores possuíam um rádio transmissor, é a eles informado que o resgate levará, pelo menos, mais dez dias, tempo em que, com absoluta certeza, não sobreviveriam sem alimentação. É dada a informação de que, caso se alimentassem de carne humana, haveria grande chance de sobrevivência. Os exploradores decidem sacrificar um dos cinco para que a sobrevivência dos outros quatro fosse garantida. Roger Whetmore propõe um sorteio para a escolha daquele que seria sacrificado. Antes do sorteio, desiste de participar e sugere que se espere mais uma semana. Os companheiros acusam-no de traição e, quando do sorteio, Whetmore é o escolhido. O explorador foi morto e sua carne serviu de alimento para seus companheiros que sobreviveram e foram salvos no trigésimo dia após o início do resgate. Após o resgate, os sobreviventes vão a julgamento e, em primeira instância, são condenados à pena de morte. Em segunda instância, são analisados por quatro juízes: Foster propõe a absolvição, baseando-se numa posição jusnaturalista; Tatting esquiva-se de decidir, alegando estar muito envolvido emocionalmente, mas acaba por afirmar que entende dever ser mantida a decisão de primeiro grau; Keen condena os réus e acusa Foster de usar lacunas na lei para defender os acusados, além de sugerir que o caso não deveria ser decidido por eles; Handy apresenta uma pesquisa realizada para saber a opinião pública que revela que 90% das pessoas absolvem os réus, votando o juiz com a opinião pública. Ocorrendo empate no julgamento, é mantida a decisão de primeiro grau, sendo os réus condenados à morte e realizada a execução, à forca, às 06h00 de uma sexta-feira. [15]

O caso evidencia a injustiça capaz de decorrer da aplicação cega do direito estatal. O fato típico “matar alguém” certamente se verificou, ao que era cominada, na legislação aplicável, a pena capital. Ocorre que praticaram os agentes a conduta em evidente estado de necessidade, situação prevista de forma expressa como excludente da antijuridicidade na maioria das legislações nacionais – o que conduz à inevitável conclusão de que, a despeito da tipicidade do fato, não houve crime no caso em comento, vez que este, consoante a universal doutrina de Welzel, é o fato típico, antijurídico e culpável. Ademais, no esteio da brilhante argumentação de Foster, independentemente de previsão legal, teriam os réus de ser absolvidos, vez que, isolados da sociedade, encontravam-se em estado de natureza, onde vige a lei do mais forte. É legítima a defesa da própria vida em face do perigo iminente. A situação lastimável em que se encontravam não poderia ser imputada a qualquer deles, mas, uma vez tendo ocorrido, justificou a defesa da individualidade pelo meio violento. Ademais, em apego ao resquício de moral em cada agente, decidiram agir em espírito coletivo, sujeitando a decisão a um resultado aleatório – o que revela honestidade e sentimento humanitário. Evidente, portanto, que o ato foi tomado apenas como última medida, em razão da extrema necessidade. Injusta, absurda e impiedosa foi a decisão relatada, condenando os agentes quando era impossível exigir conduta diversa.

De fato, a consideração estrita do direito estatal pode conduzir a absurdos. Interpretar a lacuna legal como permissivo universal ou desconsiderar especificidades fáticas não reguladas pelo ordenamento levará, inevitavelmente, a resultados insatisfatórios. O pluralismo jurídico desempenha, nesse contexto, papel vital: na medida em que diferentes ordens normativas apresentam soluções para questões não enfrentadas pelo Estado, aumenta-se o leque de opções para o julgador, que pode tomar como subsídio à decisão o conteúdo das variadas ordens normativas aplicáveis. A despeito da necessária fundamentação dogmática, é sempre possível basear a argumentação em uma abertura alopoiética do sistema. Complexo é quando, a par do silêncio na ordem estatal, encontra-se mudez nos demais ordenamentos – ou são estes simplesmente desconsiderados, por tidos inaplicáveis. Uma filosofia social pautada na força do agir infraestatal e uma sociologia reveladora de um universo normativo real, pragmático e efetivo diverso do Estado certamente conduzirão ao reconhecimento da coerência da concepção pluralista do direito, perspectiva essa capaz de impulsionar a prática judicial para uma construção mais justa e satisfatória.

Conquanto seja verdadeiro tudo o que se disse, cabe aqui uma palavra de cautela: a despeito do pluralismo que hoje se verifica, o universalismo jurídico persiste como exigência moral e tendência política. Como tendência, tem-se manifestado não mais na crença de um abstrato direito natural, mas na vontade de construir um direito positivo universal – interesse evidenciado, sobretudo, a partir do pós-guerra do século XX, com a criação da Organização das Nações Unidas e o desenvolvimento do direito internacional. Como ideia-limite do universalismo jurídico contemporâneo, tem-se a noção do Estado mundial único. Diferentemente do universalismo de outrora, contudo, não sustenta um Direito natural revelado à razão; prega um Direito positivo levado ao extremo, em ideal normativo de origem histórica – um Direito positivo universal.

A conclusão que se impõe, portanto, é a de que, a par do reconhecimento crescente das ordens jurídicas extra-estatais, traduzida no denominado pluralismo jurídico institucional, tem-se como tendência – verificável em um futuro não necessariamente próximo – o desaparecer do pluralismo estatalista, com o florescimento de um universalismo jurídico estatal, na forma de um monismo juspostivo universal.


3. RELAÇÕES ENTRE ORDENAMENTOS: POSSIBILIDADES

Em contraposição ao Monismo Jurídico, reconhece Bobbio, na construção de sua teoria, não existir entre os homens um só ordenamento, mas diversos. Aceita, assim, a teoria do pluralismo jurídico, e com base nisso identifica os problemas das relações entre os diversos tipos de ordenamentos.

As normas se manifestam numa hierarquia dentro de um ordenamento; conseqüentemente, as diferentes ordens jurídicas se mostrarão em um relacionamento de superior e inferior, como se dá, por exemplo, segundo determinada concepção, com o direito internacional e o direito estatal. Bobbio, em sua teoria, clarifica, através de três critérios, as diferentes relações que mantêm os ordenamentos. São eles os graus de validade, o âmbito de validade e a validade material das ordens jurídicas.

O primeiro critério de classificação dos relacionamentos entre os ordenamentos, é realizado com base nos diferentes graus de validade, um em relação ao outro. Nesse sentido, podem os ordenamentos travar os seguintes tipos de relacionamento:

a) Relação de coordenação: são os ordenamentos que se apresentam no mesmo plano. É o caso das relações entre ordenamentos estatais ou entre o Estado e ordens jurídicas ditas ao lado do Estado, como o direito internacional – na corrente dualista – e a Santa Sé, segundo alguns autores.

b) Relação de subordinação: como a própria nomenclatura já sugere, é uma relação de dependência ou submissão. Exemplifica tal tipo de relação a que ocorre entre um ordenamento estatal e os ordenamentos sociais (associações, sindicatos, partidos políticos). Há subordinação ao ordenamento estatal porque, para que seus estatutos sejam válidos, é necessário o reconhecimento do Estado pela compatibilidade com sua ordem jurídica.

O segundo critério apontado por Bobbio, para classificar as relações entre os ordenamentos é o âmbito de validade. Sob essa perspectiva, podem-se estabelecer relações de exclusão total, inclusão total e inclusão parcial ou exclusão parcial.

a) Exclusão total: dá-se quando dois ordenamentos não se sobrepõem um ao outro. Dois ordenamentos estatais excluem-se totalmente (salvo algumas exceções). Bobbio exemplifica representando dois aros que não têm nenhum ponto em comum.
Por vezes acontece essa relação de exclusão total entre os ordenamentos da Igreja e do Estado – não em relação à validade espacial, mas no que tange ao âmbito de validade material, o conteúdo das normas válidas em cada ordenamento. De fato, as normas da Igreja e do Estado são válidas no mesmo território, havendo, por vezes, contradição entre o conteúdo material das normas propagadas por cada um dos ordenamentos (como ocorre, por exemplo, quando o Estado faz campanha para o uso de preservativos – o que a Igreja abomina).

b) Inclusão total: quando o âmbito da validade compreende totalmente um no outro. Considerando a validade espacial, tem-se o caso do Estado-membro, cuja ordem jurídica tem âmbito de validade totalmente contido no ordenamento do Estado Federal. É como ilustra a imagem abaixo:



Considerando o âmbito de validade material, partindo de uma concepção de tipo erastiana, que entende haver competência total para o Estado – inclusive em matéria espiritual – é possível identificar o ordenamento da Igreja como incluído totalmente no ordenamento do Estado. É o caso de ações sociais e do apoio a causas beneficentes, que consiste, por vezes, em iniciativa comum à Igreja e ao Estado.

Bobbio cita uma concepção do relacionamento entre Direito e Moral que pode ser representada também como uma relação de inclusão total. Como as regras jurídicas são mais restritas que as morais, então, não há regras jurídicas que não seja também uma regra moral. Sabe-se, contudo, que para outra teoria, Direito e Moral apresenta relação de inclusão parcial, vez que há normas jurídicas alheias à moral, caracterizando-se como amorais (regras de estrutura, normas de trânsito, prazos processuais) ou mesmo imorais (regramentos legais que contrariam a moral objetiva ou subjetiva).
c) Exclusão parcial ou inclusão parcial: quando os ordenamentos têm algo em comum e algo não-comum. Como exemplo disso, citamos o ordenamento estatal que absorve ou assimila um ordenamento diferente.

Uma relação de inclusão parcial e exclusão muito citada pelos autores é a que se verifica entre a Moral e o Direito. Há comportamentos que são obrigatórios tanto para um quanto para o outro; entretanto, existem comportamentos moralmente permitidos e juridicamente obrigatórios, ou o contrário.[16]

“Que não se deva roubar vale tanto em Moral como em Direito; que se devam pagar as dívidas de jogo vale somente em Moral; que se deva cumprir um ato com certas formalidades para que seja válido somente vale em Direito.” [17]

O terceiro e último critério de relação entre os ordenamentos, toma como base na validade atribuída às regras. As relações podem dar-se em:

a) Indiferença - quando um ordenamento considera lícito algo que, em um outro ordenamento, é obrigatório. Um caso típico já citado é o uso de preservativos. Trata-se de indiferença por parte das normas do Estado em relação ao ordenamento da Igreja;
b) Recusa – quando um ordenamento considera proibido, aquilo que, em outro, é obrigatório;
c) Absorção – quando um ordenamento considera obrigatório ou proibido, aquilo que em outro é também obrigatório ou proibido.

Conclui-se portanto, que, entre si, os ordenamentos podem estabelecer relações de coordenação – verificada em geral entre Estados soberanos – e de subordinação, que se dá entre o Estado e as organizações sociais. Além disso, podem se excluir ou incluir total ou parcialmente e apresentar em relação à validade das normas do outro uma postura de indiferença, recusa ou absorção. [18]

As diferentes relações entre os ordenamentos jurídicos, conforme enfatizadas por Bobbio, sugerem confirmação do ideal pluralista jurídico-institucional. Em verdade, à medida que se observa atentamente a realidade prática, conclui-se que a legislação estatal não é a única nem a principal fonte do mundo jurídico, existindo outros numerosos grupos sociais ou sociedades globais, independentes do Estado e capazes de produzir formas jurídicas. Nesse panorama jurídico pluralista, cada grupo possui uma estrutura que engendra sua própria ordem jurídica autônoma, reguladora de sua vida interior.


4. RELAÇÕES ENTRE O ESTADO E ORDENS INFRAESTATAIS

Trataremos neste tópico das relações existentes entre o ordenamento jurídico estatalista e os demais tipos de ordenamentos que se encontram inseridos nele, que são considerados, portanto, como sistemas menores quando comparados à ordem jurídico-estatal em vigor. É bem verdade que estes ordenamentos menores são assim classificados quando de sua comparação com o sistema estatal, que busca satisfazer uma pretensão totalizante quanto às suas contribuições e competências. Nesse sentido, tais ordenamentos menores se mostram parciais, haja vista centrar suas preocupações apenas em casos determinados e situações específicas.

Com efeito, a realidade social ostenta um sem-número de ordenamentos que permeiam o jurídico, podendo ou não apresentar notas distintivas da realidade jurídica – tendo em vista que, para Bobbio, em sua Teoria do Ordenamento Jurídico, pouca importância tem o fato de os outros ordenamentos extra-estatais apresentarem ou não caráter propriamente jurídico. Salienta-se, por outro lado, a matéria e a substância de que é composto o ordenamento jurídico em si, sendo, por conseguinte, inegável a existência de outros ordenamentos na formação daquele, daí falar-se em estratificação do ordenamento jurídico.

“Estratificação” nos transmite a ideia de que outros ordenamentos e sistemas entrelaçam-se e confundem-se com o direito de um povo, e, por fim, termina por se integrar neste direito como parte dele, o que nos esclarece os conceitos de autopoiese e alopoiese no mundo da cultura, do direito. Tais conceitos estão diretamente ligados às noções de complexidade de um ordenamento quando comparado a outros ordenamentos. Daí
João Maurício Adeodato afirmar que:

“Pode-se definir uma sociedade como “complexa” com base na separação entre direito, religião, amizade, moral, política, economia, etiqueta, etc., claro que sem prejuízo de outras diferenciações; tacha-se de primitiva, indiferenciada, entre outros aspectos, aquela sociedade na qual, para dar um exemplo, a prática de um ilícito jurídico é ao mesmo tempo imoral e pecaminosa.” [19]

Tal processo de estratificação do ordenamento estatal através de ordenamentos menores dá-se por várias formas, a saber:
1) a absorção ou recepção;
2) o reenvio; e
3) a indiferença.

Primeiramente, o processo de absorção ou de recepção é um meio de estratificação e formação do ordenamento que pode ser visto tanto nas relações entre ordenamentos estatais e menores quanto entre um mesmo ordenamento estatal que se encontra em fase de mudança, a exemplo da criação de nova legislação que muitas vezes mantém certas matérias intactas que são absorvidas pela legislação recém-criada.

A absorção de ordenamentos menores por parte do sistema jurídico, no entanto, tem suas particularidades, visto que surge como conteúdo ainda não contemplado pelo ordenamento jurídico. Um exemplo claro disto são o direito de navegação e o direito comercial. Ambos que são alicerçados num direito primitivo e consuetudinário que somente com a positivação do direito toma forma de código e é absorvido pelo direito posto.
Ainda no âmbito de processos de estratificação, tem-se o reenvio. Este resulta do fato de o ordenamento jurídico, eventualmente, não prever atribuições a todas as situações possíveis, ocorrendo, desta forma, uma espécie de apropriação da matéria de outros ordenamentos menores por parte do ordenamento estatal, que ainda não se tinha arvorado competência e faculdade quanto à matéria em questão.

Como prova disso tem-se, no ordenamento jurídico brasileiro, um claro exemplo no Estatuto do Índio para o qual o ordenamento jurídico, por não dispor e determinar anteriormente o comportamento diante de certos casos apropria-se do ordenamento e, consequentemente, do costume indígena, aceitando que se faça o que é direito consoante o que prediz o sistema que rege a cultura indígena, determinando também a possibilidade de sanção penal, que, como se sabe, é monopólio estatal, a depender da situação. É o conteúdo literal da Lei 6.001/73, Estatuto do Índio, em seu artigo 57:

“Será tolerada a aplicação, pelos grupos tribais, de acordo com as instituições próprias, de sanções penais ou disciplinares contra os seus membros, desde que não revistam caráter cruel ou infamante, proibida em qualquer caso a pena de morte.” [20]

O último processo de estratificação e, segundo Bobbio, o usado com mais frequência é a indiferença do ordenamento estatal diante das prescrições dos ordenamentos menores. Tal procedimento acontece no ordenamento estatal pelo não reconhecimento de certos preceitos assegurados em outros ordenamentos e, por exclusão, o mesmo acontece a certos comportamentos assegurados por ordenamentos parciais e menores que não o são do ponto de vista do ordenamento jurídico. Daí a máxima de que o que é lícito para um ordenamento não é necessariamente lícito para outro, isto é, o que é obrigatório para um ordenamento não o é para o outro. No ordenamento jurídico brasileiro, tem-se como exemplo de indiferença o jogo do bicho que é ilegal para o ordenamento jurídico, embora o ato de pagar o que se deve esteja consoante com o direito, este mesmo direito não protege e assegura o pagamento de dívida de jogo ilícito.


5. RELAÇÕES EM ESPÉCIE

Quanto às relações entre os ordenamentos jurídicos, diferentes são os âmbitos de validade de um ordenamento. Os mais importantes e merecedores de estudo são os de âmbito temporal, espacial e material. Tais âmbitos de validade proporcionam correspondentes relações temporais, espaciais e materiais. No caso de os ordenamentos se diferenciarem, concomitantemente, em relação aos três âmbitos de validade, certamente não apresentarão qualquer interferência entre si. Nesse caso dizemos que há entre eles uma relação de total exclusão, de forma que não se faz interessante interessante estudar esse caso. Também não é interessante o estudo de dois ordenamentos que se relacionam baseados na inclusão total, como o caso do ordenamento do estado-membro com o ordenamento jurídico da federação no que pertine à validade espacial, pois haverá interferência plena deste em relação àquele.

Entretanto, quando esses ordenamentos jurídicos têm em comum dois desses tópicos e diferem apenas no terceiro, nesse caso o exame desse relacionamento torna-se interessante. Visto que basta apenas diferirem em um desses três tópicos para que sua completa identificação seja excluída, ou seja, não se verifique o relacionamento de total superposição, tem-se que três são os casos de interesse para a modelagem teórica, conforme anteriormente visto.

De fato, ter em comum dois desses tópicos é o suficiente para o início de interferências recíprocas merecedoras de maior atenção. Pois dessa análise do relacionamento entre ordenamentos com dois âmbitos de validade comuns e diferença no terceiro podem resultar as seguintes situações:

a) Dois ordenamentos têm em comum o âmbito espacial e o âmbito material, mas diferem no âmbito temporal, ou seja, pertencem à mesma base territorial e versam sobre a mesma matéria, porém em épocas diferentes. Trata-se da sucessão de um ordenamento estatal por um outro, da instalação de uma nova ordem jurídica formal. Como exemplo, pode-se citar a substituição da Constituição brasileira de 1967 pela de 1988, atualmente em vigência.

b) Dois ordenamentos têm em comum o âmbito temporal e o âmbito material, mas diferem no âmbito espacial. São ordenamentos da mesma época e abrangem a mesma matéria, porém têm sua base territorial distinta. Trata-se de relação entre dois ordenamentos pertencentes a Estados distintos. Ainda tomando como exemplo a Constituição brasileira, em relação à constituição de outras nações, são da mesma época, versam provavelmente sobre a mesma matéria, mas são aplicadas em bases territoriais diferentes. Porém, graças à intensificação das relações internacionais, temos que o Direito Internacional vem eliminando essa limitação do relacionamento espacial. As normas do Direito Internacional propõem um reenvio entre os ordenamentos para maior conveniência na solução de qualquer problema em que se enfrente a limitação do relacionamento espacial entre os ordenamentos.

c) Por fim, dois ordenamentos têm em comum o âmbito temporal e o âmbito espacial, mas diferem no âmbito material, ou seja, são da mesma época, atuam na mesma base territorial, mas abrangem matérias distintas. Aqui o exemplo emblemático é a relação entre o ordenamento estatal e o ordenamento eclesiástico (em especial o da Igreja Católica) os quais atuam no mesmo território e ao mesmo tempo, porém com matérias distintas reguladas por um e por outro. O que distingue os dois ordenamentos é um limite ideal, relativo às ideias por cada um assumidas. Tal limite, porém, por ser assaz confuso ou difícil de determinar, acaba por gerar uma série de conflitos entre os ordenamentos. Para se resolver tais conflitos utilizam-se, geralmente, as seguintes estratégias:

1) Reductio ad unum – consiste em reduzir o ordenamento do Estado ao da Igreja ou vice-versa.
2) Subordinação – consiste em subordinar um ordenamento ao outro (Potestas Indirecta – do Estado sobre a Igreja; Potestas Directa – da Igreja sobre o Estado).
3) Coordenação – reconhecimento recíproco da soberania e independência dos ordenamentos entre si.
4) Separação – o Estado reconhece a liberdade de a Igreja realizar sua missão, desde que não se desobedeça à Lei.

Quanto ao comportamento do Estado em relação ao ordenamento da Igreja, pode este utilizar certas características de determinado fato específico caracterizando o pressuposto (como o batismo) ou relacionar-se através do reconhecimento dos efeitos civis de um comportamento regulado pelo Direito da Igreja que é, então, renunciado de regulação pelo Direito do Estado (temos como exemplo o matrimônio canônico).
Tendo abordado a questão da pluralidade de ordenamentos, os diversos tipos de relacionamentos entre as ordens normativas e as relações do Estado com ordenamentos menores, cabe considerar detidamente cada uma das principais manifestações de relacionamento entre ordenamentos jurídicos. Seguindo a abordagem proposta por Bobbio, analisam-se na sequência as peculiaridades das relações de natureza material, espacial e temporal.

5.1 Relações Temporais

São as relações entre dois ordenamentos que têm em comum o âmbito espacial (mesmo território) e material (matéria reguladora, objeto), mas não o temporal. Trata-se de caso de dois ordenamentos estatais que se sucedem no tempo no mesmo território, ou seja, um relacionamento entre ordenamento velho e ordenamento novo.

Bobbio cita como exemplo para esse tipo de relação, uma revolução que quebra a continuidade de um ordenamento jurídico, um abatimento ilegítimo de um ordenamento preexistente, executado a partir de dentro, e ao mesmo tempo a constituição de um ordenamento jurídico novo. Isso conforme o entendimento jurídico de revolução que causou muitas controvérsias entre os juristas. O autor levanta alguns questionamentos já que estamos falando de relação entre ordenamento velho e ordenamento novo: o ordenamento velho e o novo estão em relação de exclusão recíproca? Como se explica a passagem do velho para o novo?

Para um melhor entendimento recorremos à figura da recepção – procedimento pelo qual um ordenamento incorpora no próprio sistema a disciplina normativa de uma dada matéria assim como foi estabelecida num outro ordenamento. É um ato jurídico com o qual um ordenamento acolhe e torna suas as normas de outro ordenamento, onde tais normas permanecem materialmente iguais, mas não são mais as mesmas com respeito à forma. Em outras palavras, é um fato que, normalmente, parte do velho ordenamento passa para o novo, e apenas alguns princípios se modificam.

Como exemplo vejamos o novo Código Civil de 2002, entre os 2.046 artigos do novo texto, muitos foram mantidos desde a primeira versão elaborada por Clovis Bevilacqua que vigorou por 86 anos (1916) sem mudanças. O Código Civil brasileiro de 1916, escrito sob uma concepção patrimonial-liberalista advinda da revolução Francesa (séc. XVIII), e o Código Civil de 2002, concebido após duas grandes revoluções mundiais e sob uma perspectiva que valoriza a socialidade e a solidariedade, uma vez que a Constituição do Brasil de 1988, considerada cidadã por colocar a dignidade da pessoa humana, a igualdade e a solidariedade em seus fundamentos e objetivos, é a coordenadora do sistema nacional positivado.

Em 1916, no Brasil predominava uma sociedade rural e agrária, com a maior parte da população vivendo no campo. No final do séc. XX, com o êxodo rural diante do desenvolvimento industrial e tecnológico, ocorre o inverso, há predominância da sociedade urbana, que inclusive está sintonizada através dos meios de comunicação. Importante citar que entre 1916 ano de nosso primeiro Código Civil e 2002 ano do lançamento do novo Código Civil, o Brasil teve promulgado cinco Constituições (1934, 1937, 1946, 1967 e 1988).

Algumas mudanças no novo Código Civil podem ser citadas pelas profundas alterações havidas no plano dos fatos e das idéias, tanto em razão do progresso tecnológico como em virtude da nova dimensão adquirida pelos valores da solidariedade social.

Adultério - pelo Código Civil de 1916, o adúltero era considerado o responsável pela separação e perdia o direito à guarda dos filhos e a pensão. Atualmente, quem comete adultério não perde a guarda dos filhos e pode pedir pensão desde que esteja desempregado ou inapto ao trabalho e não tenha a quem recorrer. O adultério continua sendo causa de dissolução do casamento, mas não acarreta impedimentos ao adúltero. A nova lei permite que pessoas casadas, mas separadas de fato, estabeleçam união estável, inclusive com o amante.

Pátrio poder - não existe mais o pátrio poder e sim “poder familiar”, que deve ser exercido pelo pai e pela mãe da mesma forma.

Poder familiar - nesse contexto, o homem deixa de ser o chefe da familia. No antigo Código Civil, cabia ao homem definir o domicílio do casal, prover o sustento e responsabilizar-se pela educação dos filhos, agora o poder familiar e exercido por ambos os conjuges com iguais direitos e responsabilidades.

Família - pelo novo código, a família abrange as unidades familiares formadas por casamento, união estável ou comunidade de qualquer genitor e descendente. No Código Civil de 1916, a familia legitima era aquela formada pelo casamento formal, eixo central do direito de familia.

Código Comercial - o novo código traz disposições do direito comercial, como por exemplo, sobre títulos de créditos, sobre direito de empresa, nome empresarial, estabelecimentos, etc. além disso revoga os artigos 1º até 456 - parte primeira do código comercial em vigor desde 25/ 06 /1850 e a legislação mercantil que ele passa a abranger ou com ele incompatível, e incorpora as disposições das sociedades comerciais, menos a sociedade anônima que continua regida por lei especial.

Não é o objetivo aqui citar todas alterações e/ou incorporações entre os dois códigos, mas sim deixar claro que o formato foi mantido entre o velho ordenamento e o novo, ou seja: Parte Geral (Das Pessoas; Dos Bens; Dos Fatos Jurídicos) e uma Parte Especial (Do Direito das Obrigações; Do Direito das Coisas; Do Direito da Família, etc).

5.2 Relações Espaciais

Dizem respeito a ordenamentos que se relacionam quanto à temporalidade e seus conteúdos, suas matérias, mas não quanto ao Espaço; ou seja, apesar de estarem valendo em mesmo período de tempo e disporem sobre situações ou condutas similares, senão idênticas, encontram distinção devido às limitações territoriais (espaço) entre um Estado e outro.
Devido à intensificação das relações internacionais, temos que o Direito Internacional vem eliminando essa limitação do relacionamento espacial. As normas do Direito Internacional propõem um reenvio entre os ordenamentos para maior conveniência na solução de qualquer problema em que se enfrente a limitação do relacionamento espacial entre os ordenamentos.

Quando se estuda o relacionamento entre ordenamentos que têm validade espacial diferente, verificamos que os mesmos são aplicados, respectivamente, em Estados soberanos, cujas normas valem dentro dos sues limites espaciais (território) [21], uma vez que os Estados consideram-se independentes uns dos outros, dotados de poderes próprios que lhes asseguram a não ingerência nos seus domínios por parte do outro Estado. Entretanto há casos em que o Estado recorre às normas de outro Estado para solucionar algumas controvérsias, as quais são estudadas no Direito Internacional Público.

Com relação à eficácia da lei, no espaço, deverão ser respeitados os limites territoriais traçados pelo legislador. Esse princípio chamado de territorialidade, trata da aplicação da lei, respeitando os limites territoriais de todos os países de modo que se aplique em cada país as regras que estes possuem. Tendo-se como referência o direito internacional a Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro (Decreto-Lei nº 4.657, de 1942) dispõe nos artigos 7º ao 17 sobre Direito Internacional Privado Brasileiro. Tais dispositivos visam evitar os conflitos das leis no espaço, prevendo, basicamente, as exceções quanto ao princípio da territorialidade (eficácia da lei estrangeira sem perda de soberania - extraterritorialidade). Pode-se exemplificar com a questão da prova no direito estrangeiro. Diz a lei:

“Art. 13. A prova dos fatos ocorridos em país estrangeiro rege-se pela lei que nele vigorar, quanto ao ônus e aos meios de produzir-se, não admitindo os tribunais brasileiros provas que a lei brasileira desconheça.
Art. 14 Não conhecendo a lei estrangeira, poderá o juiz exigir de quem a invoca prova do texto e de vigência.” [22]

Sobre estes artigos, Maria Helena Diniz dispõe:

“...a observância do direito estrangeiro, seja ex officio pelo juiz ou quando invocado pela parte litigante, poderá se dar das seguintes formas: a) o magistrado deverá aplicar a lei estrangeira, mesmo sem alegação e prova da parte interessada, sempre que o direito privado (lex fori) julgar competente aquela lei; b) se o juiz não conhecer o direito estrangeiro poderá exigir prova da parte a quem aproveita (CPC, art. 337); c) o interessado, sem a provocação do juiz, poderá alegar a lei que lhe é aplicável, propondo-se a provar sua existência e conteúdo e d) o órgão judicante poderá de ofício investigar a norma estrangeira alegada pela parte, se a prova apresentada não o convencer, não estando o mesmo adstrito às afirmações ou provas produzidas por ela”. [23]

Ainda sobre a LICC, pode-se citar o artigo 17, cuja redação é a seguinte:
“Art. 17 As leis, atos e sentenças de outro país, bem como quaisquer declarações de vontade, não terão eficácia no Brasil, quando ofenderem a soberania nacional, a ordem pública e os bons costumes.”[24]

Observa-se uma restrição ou limitação à aplicação de lei estrangeira no Brasil, pois quando contrária à nossa ordem social, mesmo quando regularmente aplicável a certo caso, terá sua competência normal afastada, acarretando a aplicação da lex fori. Trata da ineficácia das leis estrangeiras no Brasil quando as mesmas forem contrarias à soberania nacional, à ordem pública ou aos bons costumes, submetendo a eficácia dos atos alienígenas aos princípios descritos acima.

Nessa perspectiva ratifica-se o ensinado por Norberto Bobbio:

“Não há dúvida de que as normas de Direito internacional privado põem em vigor não uma recepção, mas um reenvio. Elas, de fato, não têm intenção de se apropriar do conteúdo de normas de outros ordenamentos em determinadas circunstâncias, mas indicam pura e simplesmente a fonte de onde a norma deverá ser tirada, seja qual for o seu conteúdo.” [25]

5.3 Relações Materiais

Existem ordenamentos jurídicos que, vigentes ao mesmo tempo e sobre um mesmo espaço territorial, diferenciam-se um do outro em sua materialidade, isto é, quanto aos aspectos da conduta humana a que ambos pretendem regular. Ora, como o limite entre tais aspectos é sempre “formal”, como seus marcos não se dão concretamente (como ocorre, por exemplo, com os limites territoriais entre dois Estados), mas antes, são definidos em nível formal-abstrato, tais limites – e o que daí deriva para o estabelecimento/solução de conflitos jurídicos – são muitíssimo mais imprecisos e problemáticos que quaisquer questões envolvendo referências espácio-temporais.

O exemplo típico de tal relação se dá no relacionamento jurídico entre o ordenamento estatal e eclesiástico, sobretudo no que diz respeito à Igreja Católica Romana, na medida em que, como já abordado, esta também pode ser compreendida como Estado e possui um ordenamento jurídico complexo, formalmente expresso no código de direito canônico.
Não obstante a “diferença material” – no caso a distinção entre assuntos “mundanos” e “espirituais” – que permeia as relações entre direito “civil” e “eclesiástico”, não raras vezes atritos se tornam perceptíveis. Exemplo clássico é a questão do aborto, o qual, deixando de ser crime “punível” nos casos previstos pelo artigo 140 do Código Penal (basicamente em casos de estupro, riscos graves para a saúde da mulher ou grave doença/má-formação do nascituro), muitas vezes encontra na norma eclesiástica (o aborto é condenado indiscriminadamente pelo cânon 1398 do Código de Direito Canônico) um “impedimento” social que acaba por comprometer a própria “efetividade” da norma estatal.

Na verdade, desde que o cristianismo inaugurou a distinção entre “poder secular” e “poder espiritual”, com as conseqüentes tentativas de delimitação formal entre o que seriam as esferas de atuação jurídica de um e outro, vários foram os conflitos entre a autoridade eclesiástica e estatal no tocante a esta matéria, e várias as propostas de solução. Segundo Bobbio, a solução se dá pelas já mencionadas estratégias de conciliação ante conflitos materiais.

Pela reductio ad unum, realiza-se a fusão dos dois ordenamentos jurídicos em um só. Ocorre a apropriação de um ordenamento por outro, seja do Estado em relação à Igreja (como no cesaropapismo bizantino), seja pela instituição religiosa em face do Estado (como na teocracia calvinista na Genebra do séc. XVI, ou na atual teocracia iraniana).
A subordinação consiste, como o nome sugere, em estabelecer entre ambas as esferas (“civil” e eclesiástica) uma relação de subordinação que, de certa forma, “elimina” a problemática acerca da solução de eventuais conflitos; nestes casos um dos ordenamentos sempre deverá prevalecer sobre o outro. Esta proposta, por sua vez, obedece a duas modalidades, conforme o detentor da primazia jurídica seja o Estado (galicanismo, padroado, etc., nas monarquias absolutas da era moderna) ou a Igreja (teoria tomista da subordinação do poder temporal ao espiritual).

Valendo-se da proposta de coordenação, há o reconhecimento recíproco de ambos os poderes como independentes e soberanos nas questões que lhes dizem respeito, caso, por exemplo, da Itália.

As tentativas de separação, por sua vez, consideram as religiões como associações privadas às quais o Estado oferece liberdade de ação nos limites da lei. Um dos primeiros países a implantar tal sistema foram os Estados Unidos.

O ordenamento jurídico brasileiro parece inserir-se num meio termo entre a terceira e a quarta posições. À primeira vista a Constituição de 1988 parece abonar o “modelo” norte-americano de separação entre Estado e Igreja, na medida em que, no primeiro inciso do artigo 19, define ser vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios “estabelecer cultos religiosos ou Igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público”. Por outro lado, ao definir, nos incisos VII e VIII do artigo 5°, que trata dos direitos e garantias fundamentais, “a proteção aos locais de culto e a suas liturgias” e como “assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva”, ou ainda ao prever o ensino religioso facultativo nas escolas públicas (art. 210, § 1° da CF) parece se alinhar ao modelo “coordenativo” italiano.

Conforme acentuado por Bobbio, sob a ordem jurídico-positiva italiana, Igreja e Estado se relacionam de forma que algumas instituições do direito canônico são referidas pelo Estado e, em contrapartida, algumas instituições estatais são também tratadas pelo direito canônico, no ramo do direito eclesiástico. [26]
A postura dominante entre como deveriam ser classificadas as relações entre a Igreja e o Estado acredita tratarem-se de relações sui generis que, ao lado de posturas comuns, apresentam particularidades.

Entre as figuras analisadas pela doutrina no que tange ao tema das relações entre Estado e Igreja, merecem destaque a figura denominada pressuposto, que não é exclusiva dessas relações, aparecendo também nas relações entre ordenamentos jurídicos estatais diversos, e a figura denominada reconhecimento dos efeitos civis, exclusiva dessas relações entre Estado italiano e Igreja.

Entende-se por pressuposto a postura adotada quando um ordenamento externo (a Igreja, por exemplo) atribui características a um fato especifico que, se fosse regulado pelo ordenamento interno (Estado) não apresentaria, necessariamente, a mesma regulamentação, as mesmas características.

Como exemplo tem-se a figura do batismo. É o batismo fato específico que, ao ser regulado pelo direito da Igreja, não é da mesma forma regulado pelo direito estatal. Considerado pelo Estado como pressuposto, são atribuídas ao batismo as conseqüências jurídicas reguladas pelo direito estatal, quando conseguida a realização do ato segundo as regras da Igreja. É um instrumento regulado por um direito externo ao estatal, mas que pode servir de condição para que sejam atribuídas a seu detentor conseqüências jurídicas reguladas pelo direito interno, estatal. Fato semelhante acontece com a condição de clérigo: quem adquire essa qualidade segundo o direito da Igreja, sujeita-se aos efeitos a ela atribuídos pelo direito estatal, como, por exemplo, a dispensa do serviço militar.

A abordagem do pressuposto difere tanto do reenvio (reenvio formal) quanto da recepção (reenvio material). Como já referido, no reenvio, o ordenamento acolhe a norma da forma como foi estabelecida, regulamentada, pelas fontes normativas pertencentes a um ordenamento diverso, ou seja, reconhece a regulamentação dada à referida disciplina normativa como sendo válida. Na recepção, a disciplina normativa de uma dada matéria é incorporada no ordenamento, porém, da forma como foi estabelecida em um ordenamento diverso daquele em que foi incorporada.

Uma segunda figura, também apontada por Bobbio como característica do relacionamento entre Estado italiano e Igreja Católica, é o reconhecimento dos efeitos civis. Nessa figura o Estado renuncia a sua função de regulamentar determinado fato especifico e limita-se a atribuir efeitos civis à regulamentação desse fato dada pelo ordenamento da Igreja. Exemplo típico, citado por Bobbio, é o do matrimonio canônico, ao qual, segundo o ordenamento estatal italiano (e também o brasileiro, como se depreende da leitura do § 2º do art. 226 da Constituição Federal de 1988), são atribuídos efeitos civis, embora seja celebrado segundo as regras da Igreja e por uma autoridade eclesiástica e não por uma autoridade estatal. Essa figura difere tanto do reenvio e da recepção quanto do pressuposto e, como foi visto, é característica das relações entre o Estado e a Igreja.


CONCLUSÃO

O Monismo Estatal dos séculos XVII e XVIII entrou em crise de esgotamento e estrutura, em razão do não acompanhamento das profundas transformações econômicas e sociais da segunda metade do século XIX. O desenvolvimento de novas perspectivas de direito, aliado a uma concepção lata de norma jurídica possibilitaram o florescimento de uma teoria jurídica significativamente desprendida da teoria do Estado.

A Escola histórica do direito, liderada por Hugo, Savigny e Puchta, contribuiu sobremaneira para o estabelecimento de uma teoria jurídica pluralista na medida em que, desprendendo-se da perspectiva dominante acerca do direito natural, que o identificava na vontade divina revelada ou na abstrata razão humana, concebeu-o como o direito positivo universal, conforme determinado no que de permanente se verificasse na experiência histórica das nações. Uma vez que cada Estado soberano constituía seu direito positivo, não haveria que se falar em uma ordem jurídica universal, mas em tantas ordens quantas vontades soberanas se verificassem.

Por sua vez, a corrente de pensamento institucionalista, pautada na filosofia social e no pensamento sociológico antiestatal, centrado na polêmica contra o Estado e na descoberta da sociedade abaixo do Estado, favoreceu a construção conceitual segundo a qual o grupo social organizado constitui ordenamento de natureza jurídica, independente do Estado. Ademais, as rápidas e profundas transformações introduzidas pela Revolução Industrial do século XIX, acelerando o envelhecimento natural da legislação, fizeram o direito estatal parecer mais antigo e ultrapassado a cada instante, derrubando por terra o dogma da completude do ordenamento. Reconheceu-se, assim, a necessidade de complementação do direito do Estado por ordens sociais de natureza diversa.

Bobbio sustenta, nesse sentido, a existência de quatro espécies de ordens jurídicas não-estatais, a saber 1) ordenamentos acima do Estado, como o ordenamento internacional e, segundo algumas doutrinas, a Igreja Católica e as religiões tradicionais; 2) ordenamentos abaixo do Estado, propriamente sociais, reconhecidos pelo Estado e por ele limitados ou absorvidos; 3) ordenamentos ao lado do Estado, como a ordem jurídica internacional, na teoria denominada dualista, ou a Igreja Católica, conforme determinadas acepções, em face de seu peculiar desenvolvimento histórico; e 4) ordenamentos contra o Estado, como organizações criminosas, seitas secretas ou paramilitares.

A teoria jurídica pluralista exerce importante papel na busca pela implementação do ideal de justiça. Sendo assente na doutrina que o direito estatal é incapaz de regular satisfatoriamente toda possível conduta social, necessária se faz a existência de instâncias que complementem a produção normativa do Estado, subsidiando a tomada de atitude do corpo social e a formulação da decisão pelo órgão judiciário do Estado.

A despeito do verificado pluralismo estatal e institucional da era contemporânea, permanece o universalismo jurídico como exigência moral e tendência política. Como exigência moral, pelo interesse no ideal de uma ordem única, perfeita e completa, que materializasse iguais valores para a totalidade dos homens; como tendência, na vontade, cada vez mais manifesta pela comunidade internacional, da produção de um direito positivo universal, verificada na produção de instâncias regulatórias de nível comunitário, a exemplo do Mercosul e da União Europeia, e de nível internacional, como a Organização das Nações Unidas. Paralelamente ao pluralismo jurídico-institucional, tem-se como tendência, portanto, o universalismo jurídico-estatal.

Nesse contexto, várias são as possíveis relações travadas entre as diferentes ordens jurídicas. Bobbio classifica as relações a partir de três critérios: 1) os graus de validade 2) o âmbito de validade e 3) a validade material dos ordenamentos. Relativamente aos graus de validade, as relações podem ser de coordenação ou de subordinação; no que tange ao âmbito de validade, relacionam-se os ordenamentos em exclusão total, exclusão parcial ou inclusão total; considerando a validade material, as possíveis relações são de indiferença, recusa ou absorção.

No que pertine às relações entre o Estado e ordenamentos infraestatais, menores, tem-se que se dá por um processo de estratificação. A ordem jurídica estatal se estratifica nos demais ordenamentos, com eles se confundindo e integrando em pontos específicos. Mediante as posturas da recepção e do reenvio há verdadeiro imbricamento do direito do Estado com a norma produzida pela ordem infraestatal; pela abordagem da indiferença, um ordenamento ignora o conteúdo do outro, sendo o que é obrigatório em um tido como meramente permitido em outro.

Considerando as relações de interesse para a modelagem teórica, propõe Bobbio que se analisem, em espécie, três diferentes hipóteses: relações espaciais, relações temporais e relações materiais.

Quando dois ordenamentos têm em comum o âmbito espacial e o âmbito material, mas diferem no temporal, ou seja, pertencem à mesma base territorial e versam sobre uma mesma matéria, porém em épocas diferentes, está-se diante de uma relação de ordem temporal. Trata-se da sucessão de um ordenamento estatal por um outro, da instalação de uma nova ordem jurídica. Como exemplo, pode-se citar a substituição da Constituição brasileira de 1967 pela de 1988, atualmente vigente. Nesse tipo de relação, verifica-se a figura da recepção, que consiste no acolhimento, pela nova ordem jurídica instalada, do direito infraconstitucional da ordem anterior.

Relações de natureza espacial ocorrem quando dois ordenamentos têm em comum o âmbito temporal e o âmbito material, mas diferem no âmbito espacial. São ordenamentos da mesma época e abrangem a mesma matéria, porém têm sua base territorial distinta. Em razão da intensificação das relações internacionais, o Direito Internacional tem eliminado limitações ao relacionamento espacial. As normas do Direito Internacional propõem um reenvio entre os ordenamentos para maior conveniência na solução de qualquer problema em que se enfrente a limitação do relacionamento espacial entre os ordenamentos. Nas relações de ordem espacial, vige a prática do reenvio: os diferentes ordenamentos não se apropriam do conteúdo de normas de outros sistemas, mas se limitam a, em determinadas circunstâncias, indicar a fonte de onde a norma deverá ser tirada, seja qual for o seu conteúdo.

Por fim, quando dois ordenamentos têm em comum o âmbito temporal e o âmbito espacial, mas diferem no âmbito material, ou seja, são da mesma época, atuam na mesma base territorial, mas abrangem matérias distintas, está-se diante de relação de natureza material entre ordenamentos. O exemplo emblemático é a relação entre o ordenamento estatal e o eclesiástico e, em especial, o da Igreja Católica. Ambos os ordenamentos atuam no mesmo território e ao mesmo tempo, regulando, porém, matérias distintas. O que distingue os dois ordenamentos é o conjunto das ideias encampadas. Por ser tal limite confuso e de difícil determinação, acaba por gerar uma série de conflitos entre os ordenamentos. Buscam-se solucionar os atritos desse tipo de relação, basicamente, por quatro estratégias.

A reductio ad unum, ou “redução a um”, consiste em reduzir um ordenamento ao outro, o que significa, no mais das vezes, a incorporação do ordenamento do Estado ao da Igreja ou vice-versa. A subordinação consiste em subordinar um ordenamento ao outro (Potestas Indirecta – do Estado sobre a Igreja; Potestas Directa – da Igreja sobre o Estado). Pela estratégia da coordenação, há o reconhecimento recíproco da soberania e independência dos ordenamentos entre si. Exemplo clássico é a relação do Estado Italiano com a Igreja Católica, ou Santa Sé, que contempla, no território da Cidade do Vaticano (a qual está inserida no território da Itália), plena autonomia e independência administrativa, elementos intrínsecos ao moderno conceito de soberania. Com a medida da separação, o Estado basicamente reconhece a liberdade de a Igreja realizar sua missão, desde que não se desobedeça à Lei. Considerando as religiões como associações privadas, oferece-se pelo Estado liberdade de ação, nos limites da lei.

A modelagem das diferentes relações entre os ordenamentos jurídicos é de elevada importância para a teoria do direto. Ante o verificado pluralismo institucional e o atual pluralismo jurídico-estatal, necessário se faz ao operador do direito compreender plenamente as relações travadas entre o direito positivo nacional e as normas jurídicas de ordenamentos de status superior, inferior ou paralelo ao do Estado. A solução dos conflitos normativos e a correta integração das propostas normativas requer profundo entendimento da natureza das relações estabelecidas entre as ordens aplicáveis. Nesse sentido, as reflexões de Bobbio, esposadas neste trabalho, representam iniciativa de imprescindível consideração. Qualquer desenvolvimento ulterior, certamente representará aprofundamento da temática por ele desenvolvida. É possível afirmar, portanto, ser a concepção pluralista de Bobbio inestimável contribuição para a inteira teoria jurídica.


REFERÊNCIAS

ADEODATO, João Maurício. Filosofia do Direito. Ed. Saraiva. São Paulo: 2008.
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. 6 ed. Brasília: EdUNB, 1995.
BOBBIO, Norberto. Teoria Geral do Direito. Tradução de Denise Agostinetti. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
BRASIL. Decreto-lei n.º 4.657, de 04 de setembro de 1942. (Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro). Disponível em: Acesso em: 25 jun. 2010.
BRASIL. Lei federal n.º 6.001, de 19 de dezembro de 1973. (Estatuto do Índio). Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/leis/L6001.htm> Acesso em: 25 jun. 2010.
COELHO, Luís Fernando. Lógica Jurídica e Interpretação das Leis. Apud MEDEIROS, Honório de. Op. cit., 2010.
DINIZ, Maria Helena. Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro Interpretada. 13.ed. São Paulo: Saraiva, 2007.
DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito. 18. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006.
FULLER, Lon. L. O caso dos exploradores de cavernas. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2006.
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Trad. J. Cretella Jr e Agnes Cretella. São Paulo: RT, 2001. Apud TEJO, Joycemar. Op. cit., 2010.
MEDEIROS, Honório de. A respeito do pluralismo jurídico. Disponível em Acesso em: 24 jun. 2010.
RIBEIRO, Gustavo Ferreira. A Santa Sé e a Cidade do Vaticano sob a ótica do Direito Internacional. Disponível em: Acesso em 25 jun. 2010.
SILVA, Cissa Maria de Almeida. Do monismo estatal ao pluralismo jurídico. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 4, no 164. Disponível em: Acesso em: 28 jun. 2010.
TEJO, Joycemar. Teorias monista e dualista do direito internacional. Disponível em: Acesso em 25 jun. 2010.

NOTAS

[1] BOBBIO, Norberto. Teoria Geral do Direito. Tradução de Denise Agostinetti. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 181.
[2] MEDEIROS, Honório de. A respeito do pluralismo jurídico. Disponível em Acesso em: 24 jun. 2010.
[3] SILVA, Cissa Maria de Almeida. Do monismo estatal ao pluralismo jurídico. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 4, no 164. Disponível em: Acesso em: 28 jun. 2010.
[4] DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito. 18. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 98.
[5] BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. 6 ed. Brasília: EdUNB, 1995, p. 162.
[6] “Instituição”, aqui, não assume o sentido cunhado por Durkheim, de conjunto de regras e procedimentos padronizados socialmente, reconhecidos, aceitos e sancionados pela comunidade. Toma o significado mais amplo e corriqueiro de organização, fundação, grupo social estruturado para um determinado fim.
[7] COELHO, Luís Fernando. Lógica Jurídica e Interpretação das Leis. Apud MEDEIROS, Honório de. Op. cit., 2010.
[8] BOBBIO, Norberto. Op. cit., 2007, p. 266.
[9] Idem, p. 267.
[10] Idem, p. 268.
[11] TEJO, Joycemar. Teorias monista e dualista do direito internacional. Disponível em: Acesso em 25 jun. 2010.
[12] KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Trad. J. Cretella Jr e Agnes Cretella. São Paulo: RT, 2001. Apud TEJO, Joycemar. Op. cit., 2010.
[13] TEJO, Joycemar. Op. cit., 2010.
[14] RIBEIRO, Gustavo Ferreira. A Santa Sé e a Cidade do Vaticano sob a ótica do Direito Internacional. Disponível em: Acesso em 25 jun. 2010.
[15] FULLER, Lon. L. O caso dos exploradores de cavernas. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2006.
[16] BOBBIO, Norberto. Op. cit., 1995, p. 168.
[17] Idem, 1995, p. 168.
[18] BOBBIO, Norberto. Op. cit., 1995, p. 165-169.
[19] ADEODATO, João Maurício. Filosofia do Direito. Ed. Saraiva. São Paulo: 2008. p. 214.
[20] BRASIL. Lei federal n.º 6.001, de 19 de dezembro de 1973. (Estatuto do Índio). Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/leis/L6001.htm> Acesso em: 25 jun. 2010.
[21] BOBBIO, Norberto. Op. cit., 1995, p. 179.
[22] BRASIL. Decreto-lei n.º 4.657, de 04 de setembro de 1942. (Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro). Disponível em: Acesso em: 25 jun. 2010.
[23] DINIZ, Maria Helena. Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro Interpretada. 13.ed. São Paulo: Saraiva, 2007.
[24] BRASIL. Op. cit., 1942.
[25] BOBBIO, Norberto. Op. cit., 1995, p. 180.
[26] BOBBIO, Norberto. Op. cit., 1995, p. 183.

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Breves comentários sobre universalismo e pluralismo jurídico

por Cláudio Ricardo Silva Lima Júnior

1. INTRODUÇÃO

Em sua Teoria do Ordenamento Jurídico, Norberto Bobbio sustenta a existência de uma multiplicidade de sistemas jurídicos. A tese é comumente denominada de “pluralismo” e se contrapõe ao chamado “monismo” ou “universalismo” jurídico-normativo.

“A idéia de pluralismo jurídico é decorrente da existência de dois ou mais sistemas jurídicos, dotados de eficácia, concomitantemente em um mesmo ambiente espacio-temporal.”[1]

O ideal do ordenamento jurídico único, que remonta ao Direito Romano e às concepções do Jusnaturalismo Teológico e Antropológico, entende necessário à legitimidade do direito positivo fundamentar-se a ordem histórica em um direito natural, universal, que ostentaria a qualidade de justo por decorrer da natureza ou do esforço racional dos homens. Nesse contexto, mais importante que indagar sobre as relações entre ordenamentos distintos era trabalhar as relações dos diversos direitos particulares com o direito único universal. Sob o império da teoria monista, as principais discussões jusfilosóficas diziam respeito à dicotomia entre direito positivo e direito natural, sendo relegado a segundo plano o estudo das relações entre as variadas manifestações históricas do direito positivo.

Perspectivas específicas de direito, aliadas a uma concepção dilargada de norma jurídica, porém, possibilitaram crescente desprestígio da teoria monista em favor do desenvolvimento de uma visão pluralista do fenômeno jurídico. Manifestando-se enquanto reconhecimento da diversidade das ordens estatais ou das instituições de natureza tida como jurídica no âmbito de um determinado Estado, a teoria pluralista, possibilita a aceitação da produção de normas jurídicas a partir de ordenamentos não-estatais.
Sem a pretensão de esgotar o tema, o desenvolvimento do pensamento pluralista e seus efeitos na teoria do direito é o que se propõe considerar o presente texto.

2. PLURALISMO ESTATALISTA E INSTITUCIONALISTA

O Monismo Estatal foi um fenômeno jurídico que floresceu na cultura moderna européia, a partir dos séculos XVII e XVIII. Corresponde à visão de mundo predominante na sociedade moderna, centrada no interesse do Estado e na ética da racionalidade liberal-individualista. O paradigma entrou em crise de esgotamento e estrutura, em razão do não acompanhamento das profundas transformações econômicas e políticas trazidas pelos conflitos coletivos, a não satisfação das demandas sociais e as novas necessidades criadas pela globalização do capitalismo e sua inserção determinante nas estruturas sócio-políticas, dependentes e periféricas. [2]

Dois foram os processos através dos quais decaiu o monismo jurídico: 1) o historicismo jurídico e o 2) institucionalismo.

Por historicismo jurídico entende-se a corrente de pensamento carreada pela escola histórica do direito, segundo a qual o direito natural nada mais é do que o direito positivo universal ou o jus gentium do direito romano, direito comum a todos os povos, constituído pela razão natural (Gustav Hugo). [3] No dizer de Savigny, o direito natural seria o que se pode extrair da “consciência popular” ou “espírito comum do povo”, razão pela qual a comparação histórica dos diversos direitos nacionais deveria ser a metodologia adotada pela ciência jurídica.

“Essa primeira forma de pluralismo tem caráter estatalista. Há não apenas um, mas muitos ordenamentos jurídicos porque há muitas nações, que tendem a exprimir cada uma num ordenamento unitário (o ordenamento estatal) a sua personalidade, ou, se quisermos, o seu gênio jurídico.” [4]

Com efeito, o Historicismo Casuístico introduz a noção de pluralismo jurídico pela constatação da pluralidade estatal: na medida em que diversos são os Estados nacionais, cada um na exata expressão de seu gênio jurídico, diversos são os ordenamentos existentes em um dado momento histórico, sendo o direito natural, enquanto representação do iedal de justo, o que de permanente se verifique no curso evolutivo das ordens nacionais. No âmbito de uma específica nação juridicamente organizada, contudo, prevalece a concepção monista, sendo entendida a ordem jurídica como produto exclusivo da atividade estatal.

A doutrina de Hugo, Savigny e Puchta acabou por lançar as bases para a teoria predominante no momento seguinte, a saber, o positivismo jurídico. Consoante o juspositivismo, não existe direito além do direito positivo, posto, colocado pelo Estado e por este considerado válido, apto a produzir efeitos. A principal característica do direito positivo é ser criado por uma vontade soberana; logo, onde existir um poder soberano, ali haverá direito. Como cada vontade soberana é, por definição, independente de qualquer outra, cada Direito constitui ordenamento autônomo. A concepção positivista de direito, assim, promove intrinsecamente o pluralismo jurídico estatalista.

Nessa ótica voluntarista, um direito universal somente se produziria na existência de um único poder soberano universal. Com a queda da concepção teológica de mundo na filosofia e nas ciências, rechaçou-se a hipótese de um governo divino representar um poder universal, do qual os singulares poderes estatais fossem manifestações diretas ou indiretas. Ademais, reconhecendo-se como fonte do direito não a razão, mas a vontade, deriva-se, inevitavelmente, o pluralismo jurídico.

O institucionalismo, por sua vez, é a corrente que sustenta haver não apenas diversos ordenamentos jurídicos de uma mesma espécie, mas ordenamentos de muitos e variados tipos. Denominado pluralismo jurídico institucional, tem como tese principal a existência de um ordenamento jurídico onde existe uma instituição, um grupo social organizado. [5]

A expressão “pluralismo” assume, nesse sentido, conteúdo mais pleno. Em verdade, a não se especificiar o pluralismo jurídico como estatal ou nacional, entende-se, comumente, traduzir o termo essa perspectiva mais ampla, que concebe como jurídicas ordens normativas diversas da produzida pelo ente estatal formalmente constituído.

“A esta concepção que admite a coexistência de várias ordenações se denomina pluralismo jurídico, e opõe-se ao monismo, teoria que aceita a ordenação do Estado como a maior expressão da normatividade jurídica.” [6]

Tal perspectiva advém das mesmas correntes de pensamento sociológicas, antiestatais, que deram origem à escola do direito livre, que teve como expoente o jurista alemão Eugen Ehrlich e sua obra A lógica dos juristas (Die juristische Logik, Tübingen, 1925). Por considerar o envelhecimento da codificação, sobretudo na França, concluiu-se pela insuficiência do legislador na busca pela solução pacífica dos conflitos, o que promoveu a passagem de uma “jurisprudência exegética” para uma dita “científica”, pautada numa crítica livre em relação ao códigos. [7] Ademais, com as rápidas e profundas transformações introduzidas pela Revolução Industrial do século XIX, acelerou-se o envelhecimento natural da legislação, em um processo que fazia o texto parecer mais antigo e ultrapassado a cada instante, derrubando por terra o dogma da completude do ordenamento. A teoria das lacunas surge, nesse período, como estímulo à criação judicial, de sorte a possibilitar soluções saftisfatórias a problemas ignorados pela legislação.

Outro fator que contribuiu para o desenvolvimento da teoria institucional foi o desenvolvimento particular da filosofia social e das ciências sociais do século XX, que, nas diversas correntes em que se manifestaram, apresentaram, como característica comum, a polêmica contra o Estado e o enaltecimento da sociedade abaixo do Estado.

“Tanto o marxismo quanto a sociologia positivista – para limitarmo-nos às duas maiores correntes da filosofia social – foram animadas por uma crítica contra o monismo estatista, que teve a sua expressão mais intransigente na filosofia hegeliana, mas tinha ramificações muito mais antigas."[8]

Ante o soerguimento do Estado e sua tentativa de absorver a sociedade como um todo, a luta de classes tendia a romper os limites da ordem estatal. Novos grupos sociais, como sindicatos, associações e partidos políticos, representativos das relações decorrentes das tranformações econômicas e sociais, “colocavam em evidência uma vida subjacente ou contrastante com o Estado, que nem o sociólogo e nem o jurista podiam ignorar.” [9] A sociologia do século XIX, imbuída do espírito científico do período, contribuiu para a derrocada do mito do Estado, do qual fazia parte o dogma da completude. Ao lado da descoberta da importância da sociedade em relação ao Estado, formou-se a consciência do descompasso entre o direito estatal e a realidade social, firmando-se a sociologia como instrumento contra a pretensão totalizante do ordenamento jurídico do Estado.

Como consequência da teoria institucionalista, há o enriquecimento do problema da relação entre ordenamentos: por se considerar “jurídica” toda ordem institucional, em lugar de se analisar pura e simplesmente as relações entre diferentes ordens jurídicas estatais, inserem-se no objeto de estudo as relações entre ordenamentos diversos dos estatais.

3. ORDENAMENTOS JURÍDICOS NÃO-ESTATAIS

Segundo Bobbio, há quatro espécies de ordens jurídicas não-estatais:

a) ordenamentos acima do Estado, como o ordenamento internacional e, segundo algumas doutrinas, a Igreja Católica;
b) ordenamentos abaixo do Estado, propriamente sociais, reconhecidos pelo Estado e por ele limitados ou absorvidos;
c) ordenamentos ao lado do Estado, como a Igreja Católica, conforme determinadas acepções ou a ordem jurídica internacional, na teoria denominada dualista;
d) ordenamentos contra o Estado, como organizações criminosas, seitas secretas ou paramilitares.

O ordenamento jurídico internacional, cuja normatividade decorre da anuência particular de cada Estado soberano, é compreendido pela doutrina ora como acima do Estado, segundo certa corrente do monismo jurídico-internacional, ora como ao lado da ordem nacional, na perspectiva chamada dualista.

A teoria monista sustenta que tanto o Direito Internacional quanto o Interno, Nacional, constituem o mesmo sistema jurídico, havendo apenas uma única ordem jurídica que dá nascimento às normas internacionais e nacionais. [10]

Tal entendimento é corroborado por Kelsen:

"Se esta norma, que fundamenta os ordenamentos jurídicos de cada um dos Estados, é considerada como norma jurídica positiva – e é o caso, quando se concebe o direito internacional como superior a ordenamentos jurídicos estatais únicos, abrangendo esses ordenamentos de delegação – então a norma fundamental – no sentido específico aqui desenvolvido, de norma não estabelecida, mas apenas pressuposta – não mais permite falar em ordenamentos jurídicos estatais únicos, mas apenas em bases do direito internacional". [11]

Com efeito, a se entender a ordem jurídica internacional como superior à nacional, compreende-se a norma nacional de maior hierarquia como norma positiva, portanto, posta e não pressuposta. Sendo a norma fundamental, em Kelsen, o fundamento de validade lógico-transcendental da ordem jurídica – logo, norma pressuposta – teria de situar-se em plano superior à ordem internacional. Nesse sentido, resulta impossível falar em uma “dualidade” de ordens jurídicas, vez que ambas as normas, nacional e internacional, decorrem de um mesmo fundamento de validade. A ordem nacional seria, assim, apenas um assentamento espaço-temporal, tão-somente uma “base” do direito internacional.

Interessante, contudo, que o monismo jurídico internacional permite, no plano teórico, sustentar-se ideia oposta: considerando a origem comum das normas nacionais e internacionais, é possível escaloná-las hierarquicamente de modo diverso. Propugnando-se pela supremacia do direito interno, reconhece-se, no caso concreto, o direito internacional como mero desdobramento da ordem nacional; defendendo a superioridade das normas internacionais, considera-se que a autonomia estatal encontra limite no ordenamento internacional. Terceira corrente ainda monista, propõe equivalência entre as normas nacionais e internacionais, devendo possível conflito ser suprimido mediante critérios próprios, como o da revogação da lei mais antiga pela mais recente. [12]

A teoria dualista, por sua vez, enxerga distinção clara entre as ordens nacional e internacional. Segundo tal concepção, a ordem jurídica interna compreende a Constituição e o direito infraconstitucional vigente em determinado Estado soberano, ao passo que a ordem externa envolve Tratados e Acordos internacionais, bem como as regras costumeiras que regem o relacionamento entre os diversos Estados. A distinção teria por base o fato de que as ordens nacional e internacional têm origens distintas e objetos diversos: a norma externa só teria aplicabilidade no direito interno caso fosse compatível com a Constituição e o descumprimento de uma norma de direito internacional sujeitaria o infrator a sanções internacionais, produzindo efeitos apenas nessa ordem, em nada influindo, do ponto de vista jurídico, no âmbito interno. No sentido de tal teoria, a ordem jurídica internacional é vista ao mesmo nível da ordem estatal interna, não havendo entre o direito nacional e o internacional relação de natureza hierárquica.

Ordenamentos tidos como abaixo do Estado são os tipicamente sociais, como os sindicatos, associações, partidos políticos e pessoas jurídicas em geral. Como mencionado, para Bobbio, tais ordenamentos podem também ser considerados jurídicos, na medida em que implementam normas garantidas por uma sanção institucionalizada. A norma emanada no âmbito de uma empresa pelo empregador a seus funcionários, por exemplo, seria dotada de “juridicidade” na medida em que sujeita o destinatário a uma sanção pelo descumprimento, consequência essa passível de execução pela instituto social que a deu origem. Tais ordenamentos são reconhecidos pelo Estado, regulados na forma da lei e, por vezes, absorvidos pela ordem jurídica estatal que, por “recepção” ou “reenvio”, no dizer de Bobbio, se vale do regramento por eles produzido.

Considera a doutrina ordenamento ao lado do Estado, além da ordem internacional (na teoria dualista), a Igreja Católica e, de modo geral, as religiões tradicionais, reconhecidas socialmente como instituições perenes no curso histórico. Em razão de uma existência de longa data e da reconhecida influência da normatividade por elas emanada na vida prática da população, costuma-se situar tais ordens religiosas como em posição paralela ao Estado, razão pela qual travariam com a ordem jurídico-positiva estatal relações de coordenação e não de subordinação. Diferentemente de religiões de menor expressividade, que se constituem juridicamente na forma de associações – colocando-se, portanto, no plano teórico, como ordenamentos abaixo do Estado – as ordens eclesiásticas tradicionais ocupariam, segundo alguns autores, o mesmo status social da pesssoa jurídica do Estado, o que evidentemente influenciaria no teor das relações entre os correspondentes ordenamentos.

A referência que Bobbio faz à ordem Católica, por exemplo, é digna de nota. Sobretudo na Itália, de onde escreve o autor, é a Igreja Católica Romana instituição de tamanha respeitabilidade que se torna confortável situá-la em plano paralelo ao Estado temporal. Conforme destaca Gustavo Ferreira Ribeiro,

“O Sumo Pontifície, durante a Idade Média, era o chefe dos Estados Pontifícios. Tal situação perdurou até 1870, quando a unificação italiana provocou o desaparecimento dos Estados do Papa. Roma, antiga sede territorial do Estado Pontifício, foi anexada ao Reino Italiano e uma lei italiana de 1871 outorgou à Santa Sé a manutenção do papel espiritual da religião católica, o usufruto de palácios e a imunidade diplomática de seus membros. A soberania territorial, entretanto, havia se esfacelado. A situação foi resolvida em 1929, quando Mussolini assinou os Acordos de Latrão. Os Acordos compreenderam a um tratado político – reconhecimento de Roma como a capital italiana; uma concordata – que regula o Estatuto da Igreja com a Itália; e uma convenção financeira (de acordo com Pellet).” [13]

Como consequência dessa origem, é atualmente o Vaticano caso singular no cenário internacional. Para alguns doutrinadores, apresenta a instituição duas personalidades jurídicas distintas: como pessoa jurídica de direito público internacional, tem a prerrogativa, dentre outras coisas, de assinar tratados e ser membro de organizações internacionais; como sede da religião Católica, seria o território o centro gestor do trabalho espiritual pela Igreja desenvolvido.

Com efeito, alguns doutrinadores chegam a sustentar dever haver rígida distinção entre Vaticano e Santa Sé, este sendo a representação do poder espiritual, enquanto aquele a manifestação do poder temporal. Para outros autores, contudo, a existência de duas personalidades jurídicas não se sustenta: a utilização de um ou outro nome nos tratados seria mera casuística, já que resta resolvida a questão da inconteste soberania no microterritório destinado à Igreja (Cidade do Vaticano).

É em razão dessa peculiar característica que se toma a Igreja Católica como paralela ao Estado, enquanto ordenamento. A despeito de não se verificar situação semelhante em instituição religiosa diversa, é possível situar no mesmo plano teórico do Estado formal ordem outra de natureza religiosa, porquanto se utilize, como critério, não a existência de soberania – posto que muitíssimo restrita – mas a plausibilidade da normativa que promana e a respeitabilidade dos provimentos institucionais no seio social.

Por fim, menciona Bobbio a existência de ordenamentos contra o Estado. Ante o peso da perspectiva jurídico-positiva estatalista torna-se um tanto dificultoso aceitar a existência de uma ordem jurídica contrária ao Estado. Por essa razão, não é demais repetir que, para Bobbio, é jurídica qualquer norma pertencente a um ordenamento que garanta a execução de suas regras por uma sanção institucionalizada. Significa dizer que, para o autor, na medida em que existe um grupamento social organizado, que garante pela previsão de sanção a execução de normas de conduta válidas em seu âmbito de atuação, está-se diante de um ordenamento jurídico, composto por normas, por definição, jurídicas. Assim sendo, jurídica seria a organização criminosa do Primeiro Comando da Capital, de São Paulo; ou a ordem da favela da Rocinha, no Rio de Janeiro; tais ordenamentos são materialmente contrários ao Estado, pois promovem regras de conduta cujo conteúdo é incompatível com o do ordenamento estatal.

4. A IMPORTÂNCIA DA CONCEPÇÃO PLURALISTA

Contemporaneamente, verifica-se, assim, significativo pluralismo. Tanto no âmbito estatal, pelo reconhecimento da pluralidade de Estados soberanos que emanam ordens jurídicas autônomas, quanto, no interior de cada Estado, pela autoridade de uma multiplicidade de ordenamentos institucionais, que se relacionam entre si e com o Estado, apoiando-o, sobordinando-o, a ele se conformando ou com ele mantendo franca contradição, constata-se a quebra do monismo estatalista e o avanço para uma concepção de direito cada vez mais comprometida com sua origem social.

O pluralismo institucionalista a que Bobbio faz alusão muito tem a ver com a luta social pela implementação do ideal de justiça. Constatado que é a ordem jurídica do Estado incapaz de regular sistematicamente toda situação passível de verificação prática – ou, ao menos, de fazê-lo satisfatoriamente, para referir ao entendimento de Kelsen – necessária se faz a participação efetiva de instituições sociais na promoção de subsídios à decisão justa.

Nesse sentido, poderosa é a reflexão que induz Lon L. Fuller, em O caso dos exploradores de cavernas. Consoante a ficticia narrativa [14], cinco exploradores de cavernas ficam presos após um deslizamento de terra que fecha a única saída da gruta em que se encontram os participantes de uma expedição. A despeito do grande esforço despendido pela Sociedade Espeleológica, que exauriu todos os seus fundos, os subvencionados pelo Poder Legislativo e os obtidos em uma campanha de arrecadação, o dispendioso resgate somente chega ao fim decorridos 30 dias do início das buscas – tempo suficiente para todos os envolvidos morrerem de inanição. No vigésimo dia do resgate, após a descoberta de que os exploradores possuíam um rádio transmissor, é a eles informado que o resgate levará, pelo menos, mais dez dias, tempo em que, com absoluta certeza, não sobreviveriam sem alimentação. É dada a informação de que, caso se alimentassem de carne humana, haveria grande chance de sobrevivência. Os exploradores decidem sacrificar um dos cinco para que a sobrevivência dos outros quatro fosse garantida. Roger Whetmore propõe um sorteio para a escolha daquele que seria sacrificado. Antes do sorteio, desiste de participar e sugere que se espere mais uma semana. Os companheiros acusam-no de traição e, quando do sorteio, Whetmore é o escolhido. O explorador foi morto e sua carne serviu de alimento para seus companheiros que sobreviveram e foram salvos no trigésimo dia após o início do resgate. Após o resgate, os sobreviventes vão a julgamento e, em primeira instância, são condenados à pena de morte. Em segunda instância, são analisados por quatro juízes: Foster propõe a absolvição, baseando-se numa posição jusnaturalista; Tatting esquiva-se de decidir, alegando estar muito envolvido emocionalmente, mas acaba por afirmar que entende dever ser mantida a decisão de primeiro grau; Keen condena os réus e acusa Foster de usar lacunas na lei para defender os acusados, além de sugerir que o caso não deveria ser decidido por eles; Handy apresenta uma pesquisa realizada para saber a opinião pública que revela que 90% das pessoas absolvem os réus, votando o juiz com a opinião pública. Ocorrendo empate no julgamento, é mantida a decisão de primeiro grau, sendo os réus condenados à morte e realizada a execução, à forca, às 06h00 de uma sexta-feira.

O caso evidencia a injustiça capaz de decorrer da aplicação cega do direito estatal. O fato típico “matar alguém” certamente se verificou, ao que era cominada, na legislação aplicável, a pena capital. Ocorre que praticaram os agentes a conduta em evidente estado de necessidade, situação prevista de forma expressa como excludente da antijuridicidade na maioria das legislações nacionais – o que conduz à inevitável conclusão de que, a despeito da tipicidade do fato, não houve crime no caso em comento, vez que este, consoante a universal doutrina de Welzel, é o fato típico, antijurídico e culpável. Ademais, no esteio da brilhante argumentação de Foster, independentemente de previsão legal, teriam os réus de ser absolvidos, vez que, isolados da sociedade, encontravam-se em estado de natureza, onde vige a lei do mais forte. É legítima a defesa da própria vida em face do perigo iminente. A situação lastimável em que se encontravam não poderia ser imputada a qualquer deles, mas, uma vez tendo ocorrido, justificou a defesa da individualidade pelo meio violento. Ademais, em apego ao resquício de moral em cada agente, decidiram agir em espírito coletivo, sujeitando a decisão a um resultado aleatório – o que revela honestidade e sentimento humanitário. Evidente, portanto, que o ato foi tomado apenas como última medida, em razão da extrema necessidade. Injusta, absurda e impiedosa foi a decisão relatada, condenando os agentes quando era impossível exigir conduta diversa.

De fato, a consideração estrita do direito estatal pode conduzir a absurdos. Interpretar a lacuna legal como permissivo universal ou desconsiderar especificidades fáticas não reguladas pelo ordenamento levará, inevitavelmente, a resultados insatisfatórios. O pluralismo jurídico desempenha, nesse contexto, papel vital: na medida em que diferentes ordens normativas apresentam soluções para questões não enfrentadas pelo Estado, aumenta-se o leque de opções para o julgador, que pode tomar como subsídio à decisão o conteúdo das variadas ordens normativas aplicáveis. A despeito da necessária fundamentação dogmática, é sempre possível basear a argumentação em uma abertura alopoiética do sistema. Complexo é quando, a par do silêncio na ordem estatal, encontra-se mudez nos demais ordenamentos – ou são estes simplesmente desconsiderados, por tidos inaplicáveis. Uma filosofia social pautada na força do agir infraestatal e uma sociologia reveladora de um universo normativo real, pragmático e efetivo diverso do Estado certamente conduzirão ao reconhecimento da coerência da concepção pluralista do direito, perspectiva essa capaz de impulsionar a prática judicial para uma construção mais justa e satisfatória.

Conquanto seja verdadeiro tudo o que se disse, cabe aqui uma palavra de cautela: a despeito do pluralismo que hoje se verifica, o universalismo jurídico persiste como exigência moral e tendência política. Como tendência, tem-se manifestado não mais na crença de um abstrato direito natural, mas na vontade de construir um direito positivo universal – interesse evidenciado, sobretudo, a partir do pós-guerra do século XX, com a criação da Organização das Nações Unidas e o desenvolvimento do direito internacional. Como ideia-limite do universalismo jurídico contemporâneo, tem-se a noção do Estado mundial único. Diferentemente do universalismo de outrora, contudo, não sustenta um Direito natural revelado à razão; prega um Direito positivo levado ao extremo, em ideal normativo de origem histórica – um Direito positivo universal.

A conclusão que se impõe, portanto, é a de que, a par do reconhecimento crescente das ordens jurídicas extra-estatais, traduzida no denominado pluralismo jurídico institucional, tem-se como tendência – verificável em um futuro não necessariamente próximo – o desaparecer do pluralismo estatalista, com o florescimento de um universalismo jurídico estatal, na forma de um monismo juspostivo universal.

CONCLUSÃO

O Monismo Estatal dos séculos XVII e XVIII entrou em crise de esgotamento e estrutura, em razão do não acompanhamento das profundas transformações econômicas e sociais da segunda metade do século XIX. O desenvolvimento de novas perspectivas de direito, aliado a uma concepção lata de norma jurídica possibilitaram o florescimento de uma teoria jurídica significativamente desprendida da teoria do Estado.

A Escola histórica do direito contribuiu sobremaneira para o estabelecimento de uma teoria jurídica pluralista na medida em que, desprendendo-se da perspectiva dominante acerca do direito natural, que o identificava na vontade divina revelada ou na abstrata razão humana, concebeu-o como o direito positivo universal, conforme determinado no que de permanente se verificasse na experiência histórica das nações. Uma vez que cada Estado soberano constituía seu direito positivo, não haveria que se falar em uma ordem jurídica universal, mas em tantas ordens quantas vontades soberanas se verificassem.

Por sua vez, a corrente de pensamento institucionalista, pautada na filosofia social e no pensamento sociológico antiestatal, centrado na polêmica contra o Estado e na descoberta da sociedade abaixo do Estado, favoreceu a construção conceitual segundo a qual o grupo social organizado constitui ordenamento de natureza jurídica, independente do Estado

A sociologia do século XIX, imbuída do espírito científico do período, contribuiu para a derrocada do mito do Estado, do qual fazia parte o dogma da completude. Ao lado da descoberta da importância da sociedade em relação ao Estado, formou-se a consciência do descompasso entre o direito estatal e a realidade social, firmando-se a sociologia como instrumento contra a pretensão totalizante do ordenamento jurídico do Estado.


REFERÊNCIAS

BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. 6 ed. Brasília: EdUNB, 1995, p. 162.
COELHO, Luís Fernando. Lógica Jurídica e Interpretação das Leis. Apud MEDEIROS, Honório de. Op. cit., 2010.
DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito. 18. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 98.
FULLER, Lon L. O caso dos exploradores de cavernas. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2006.
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Trad. J. Cretella Jr e Agnes Cretella. São Paulo: RT, 2001. Apud TEJO, Joycemar. Op. cit., 2010.
MEDEIROS, Honório de. A respeito do pluralismo jurídico. Disponível em Acesso em: 24 jun. 2010.
RIBEIRO, Gustavo Ferreira. A Santa Sé e a Cidade do Vaticano sob a ótica do Direito Internacional. Disponível em: Acesso em 25 jun. 2010.
SILVA, Cissa Maria de Almeida. Do monismo estatal ao pluralismo jurídico. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 4, no 164. Disponível em: Acesso em: 28 jun. 2010.
TEJO, Joycemar. Teorias monista e dualista do direito internacional. Disponível em: Acesso em 25 jun. 2010.

NOTAS

[1] MEDEIROS, Honório de. A respeito do pluralismo jurídico. Disponível em Acesso em: 24 jun. 2010.
[2] SILVA, Cissa Maria de Almeida. Do monismo estatal ao pluralismo jurídico. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 4, no 164. Disponível em: Acesso em: 28 jun. 2010.
[3] DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito. 18. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 98.
[4] BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. 6 ed. Brasília: EdUNB, 1995, p. 162.
[5] “Instituição”, aqui, não assume o sentido cunhado por Durkheim, de conjunto de regras e procedimentos padronizados socialmente, reconhecidos, aceitos e sancionados pela comunidade. Toma o significado mais amplo e corriqueiro de organização, fundação, grupo social estruturado para um determinado fim.
[6] COELHO, Luís Fernando. Lógica Jurídica e Interpretação das Leis. Apud MEDEIROS, Honório de. Op. cit., 2010.
[7] BOBBIO, Norberto. Op. cit., 2007, p. 266.
[8] BOBBIO, Op. cit., 2007, p. 267.
[9] Idem, p. 268.
[10] TEJO, Joycemar. Teorias monista e dualista do direito internacional. Disponível em: Acesso em 25 jun. 2010.
[11] KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Trad. J. Cretella Jr e Agnes Cretella. São Paulo: RT, 2001. Apud TEJO, Joycemar. Op. cit., 2010.
[12] TEJO, Joycemar. Op. cit., 2010.
[13] RIBEIRO, Gustavo Ferreira. A Santa Sé e a Cidade do Vaticano sob a ótica do Direito Internacional. Disponível em: Acesso em 25 jun. 2010.
[14] FULLER, Lon L. O caso dos exploradores de cavernas. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2006.