quarta-feira, 30 de junho de 2010

O Direito como instrumento de dominação: Nicos Poulantzas e o papel da lei na delimitação das relações de poder

por Cláudio Ricardo Silva Lima Júnior

Sumário: 1. Introdução. 2. Poder e realidade jurídica. 2.1. Conceito de Poder. 2.2. Direito e Poder . 3. A lei: violência simbólica e material. 4. Capitalismo e direito opressor. Conclusão. Referências.

1. INTRODUÇÃO

O A tradicional concepção jurídico-legalista do Estado, pautada na filosofia política do Estado burguês do século XVIII, presume oposição entre o arbítrio e os abusos do príncipe e os ditames da lei, entendida como instrumento regulatório do exercício do poder. Tal concepção de lei como limite ao poder estabelecido é duramente criticada nos trabalhos de Karl Marx e de Max Weber, que a compreendem como mero instrumento de organização da violência, cujo monopólio avoca o Estado moderno.

De fato, apenas tardiamente a lei se apresentou como limitação ao arbítrio estatal, criando o que se convencionou chamar de “Estado de Direito”, concebido como oposto ao poder ilimitado. Toda constituição do poder presenciou o instituto da lei e da regra, sem que esta representasse uma limitação à magnitude da força ou ao modo de exercício do poder. Desde as primeiras manifestações históricas de centralização do poder social, que remontam aos Estados teocráticos orientais, passando pela Antiguidade Clássica greco-romana e o Estado feudal da Idade Média, até alcançar o Estado absolutista do início da Idade Moderna, o poder, a despeito de ilimitado, era fundamentado na lei e no direito.

Com efeito, “toda forma estatal, mesmo a mais sanguinária, edificou-se sempre como organização jurídica, representou-se no direito e funcionou sob forma jurídica”. [1] Nada mais falacioso, portanto, que compreender a lei tão-somente como limite ao poder estatal.

Em interessante trabalho (O Estado, O Poder, O Socialismo – A Lei), Nicos Poulantzas, conceituado filósofo e sociólogo grego, considera essas questões. Marxista e membro do Partido Comunista da Grécia, exilou-se em Paris, onde lecionou a partir de 1960. Foi aluno de Louis Althusser, do qual herdou uma interpretação do marxismo inovadora e controversa chamada de althusserianismo. Suas obras resumem-se em uma complexa análise funcional das Estruturas ou Instâncias - o Econômico, o Político e o Ideológico - do Modo de Produção Capitalista, sobretudo no que diz respeito à forma como essas estruturas determinam as práticas sociais que as sustentam. Essa forma de conceber a realidade social foi denominada de Marxismo Estruturalista. Poulantzas, a partir disso, empreende um rico estudo do funcionamento do Estado Capitalista, tanto de suas instituições (Burocracia, Poder Executivo, Poder Legislativo, etc) quanto da base ideológica que o sustenta (em torno, principalmente, do conceito de Vontade Geral), observando cuidadosamente sua relação com as Classes Sociais. A rica conexão entre as instâncias em uma formação social a partir de uma interessante interpretação dos clássicos do marxismo – Marx, Engels, Lenin e Gramsci – fizeram de suas idéias referências nos campos da Ciência Política e da Sociologia. [2]

Este texto analisa a visão do autor, discorrendo sobre as relações entre direito e poder e abordando a teoria sociológica que considera o direito instrumento de dominação no seio social – tese perfilhada pela Sociologia Crítica na análise dos efeitos do sistema de produção capitalista. Prefacialmente, realiza consideração genérica sobre o poder, para fins de determinação do objeto de estudo e enqudramento da matéria no plano conceitual apresentado. Ao final, apresenta-se o sentido da teoria de Poulantzas à luz da fenomelogia moderna do direito e a concepção do autor quanto ao impacto, na realidade jurídica do Estado, do sistema político-econômico que se adota.

2. PODER E REALIDADE JURÍDICA

2.1. Conceito de Poder

A palavra “poder”, em nossa sociedade, está por vezes revestida de um caráter pernicioso, fruto do acúmulo das mais variadas teorias políticas e filosóficas que exerceram influência na determinação do conceito no decorrer do tempo. Em seu sentido mais geral, a palavra designa a capacidade ou possibilidade de agir, de produzir efeitos, ora com referência a grupos ou indivíduos, ora em alusão a objetos ou fenômenos naturais. Para os efeitos desta análise, contudo, interessa-nos o estudo do Poder no âmbito das relações sociais, denominado Poder social, entendido como “a capacidade do homem em determinar o comportamento do homem: poder do homem sobre o homem.” [3]

Essa faculdade de modificar o comportamento de outro indivíduo ou grupo, que se pode manifestar no círculo familiar, na hierarquia corporativa e, sob a forma de Poder político, na figura do Estado frente a seus jurisdicionados, é a noção de Poder que apresenta relevância para uma consideração que se propõe discutir o reflexo do elemento no fenômeno do Direito.

A compreensão do conceito de Poder social pressupõe a noção de Potência e de Força. Gèrard Lebrun, citando Weber, define potência como “toda oportunidade de impor a sua própria vontade, no interior de uma relação social, até mesmo contra resistências, pouco importando em que repouse tal oportunidade.” [4]

A potência, nesse sentido, pode ser entendida tanto como a capacidade de tornar-se, designando a virtualidade em relação à determinação do comportamento alheio, como a possibilidade de exercer-se, de realizar-se num momento específico qualquer no sentido de impor sua vontade. Força, por sua vez, pressupõe a posse dos meios que permitam influir no comportamento de outra pessoa. É a determinação ou canalização da potência, representando seu estágio mais avançado, a situação em que existe, a qualquer tempo, a iminência da realização desejada. A força é, contudo, uma situação não da potência, mas do sujeito potente. O sujeito possui potência se tiver capacidade de tornar-se ou exercer-se enquanto agente das relações sociais. Surge a força quando o sujeito toma posse de meios que permitam influir, efetivamente, no comportamento alheio.

Nesse panorama conceitual, como se define Poder? Lebrun doutrina:

“Poder possui um elemento suplementar que está ausente de potência. Existe poder quando a potência, determinada por uma certa força, se explicita de uma maneira muito precisa. Não sob o modo da ameaça, da chantagem, etc..., mas sob o modo da ordem dirigida a alguém que, presume-se, deve cumpri-la. É o que Max Weber chama chama de Herrschaft – e podemos acompanhar Raymond Aron traduzindo este termo como dominação, pois assim conservamos a raiz alemã (Herr = dominus = senhor).” [5]

Poder, portanto, exige algo além da potência: a determinação, mediante uma força, da esfera específica de sua aplicação. Quando a potência se manifesta da maneira específica, em virtude de determinado conjunto de forças, verifica-se o Poder, a dominação, seja pela imposição efetiva do resultado desejado, seja pela realização espontânea, tendo em vista a superioridade de quem exerce. Assim, o Poder social, resultante da potência canalizada por uma força específica e manifestado numa esfera identificada, muito precisa, apresenta-se como o domínio do homem sobre o homem.

De modo geral, diferencia-se o Poder sobre o homem do Poder que o homem exerce sobre as coisas. A capacidade de sujeitar a natureza e as coisas inanimadas, porém, muitas vezes, é condição para a existência do Poder social. De fato, tal necessidade é, em certos casos, tão evidente que Hobbes, tal como se lê no Leviatã, chega a ignorar o caráter relacional entre as distintas formas de poder e acaba por identificar o Poder social com a simples posse dos instrumentos aptos à consecução dos fins almejados (tais como dinheiro, popularidade, armas).

Notadamente, resulta malograda tal conclusão. Em verdade, não existe Poder se não existe, de um lado, um indivíduo ou grupo que o exerce e, de outro, um indivíduo ou grupo que se sujeita ao exercício do primeiro, sendo induzido a comportar-se da maneira como aquele deseja. Logo, no contato com indivíduo ou grupo que não se sujeita ao interesse alheio, ainda que em face da morte, inexiste poder. A posse do mais preparado exército ou da arma de maior potencial destrutivo, diante de um indivíduo ou grupo que prefere a morte à sujeição, mostra-se inútil para fins de determinação do comportamento.

De fato, o Poder social não é algo que se possui em absoluto; é uma relação que se estabelece entre indivíduos. O Poder flui entre os dois pólos da relação, verificando-se, de um lado, quem exerce a dominação e, de outro, quem se submete ao desejo alheio (em posição, portanto inferior ao pólo determinante do comportamento). “Está no poder” ou “detém o poder” são expressões legítimas utilizadas no discurso filosófico político, mas que designam não o possuidor estanque de algo que se confere em definitivo, mas o pólo da relação que está no exercício da dominação naquele momento específico. [6]

Note-se, portanto, o quanto difere o Poder social do Poder sobre as coisas. O Poder sobre as coisas é sua posse, seu controle, em absoluto. O Poder social é a relação, que pode resultar na verificação do que se deseja por parte de quem exerce a dominação. A posse dos meios conducentes ao exercício do Poder (por exemplo, armas), pode influenciar, como influencia, no resultado da dominação (a pessoa se rende, preferindo obedecer ao sujeito armado a perder a vida), mas não é tudo quanto suficiente para haja por garantida a dominação (o indivíduo pode resistir, optando pela morte ante a rendição). Logo, a tese hobbesiana de que o Poder de um homem consiste nos meios de alcançar alguma aparente vantagem cai, diante de uma reflexão mais aprofundada.

2.2. Direito e Poder

Múltiplos são os resultados que obtêm as especulações doutrinárias a respeito da estrutura da ordem jurídico-política do Estado. Sociólogos como Durkheim, não recorrendo às noções de poder e de soberania, buscam explicar a moral e o direito por fundamentar as obrigações sociais na solidariedade subjetivo-objetiva decorrente da divisão do trabalho.

Por sua vez, Léon Duguit, separando as noções de Direito e Estado, afirma que a regra de direito surge numa dada sociedade, “quando a massa dos homens compreende que ela é necessária à solidariedade e é justo que ela seja sancionada”, de sorte que “uma regra econômica ou moral torna-se jurídica quando na consciência da massa dos indivíduos, que compõem um grupo social dado, penetra a idéia de que o grupo ou os detentores da maior força podem intervir para reprimir as violações dessa regra”. Nesse sentido, “os laços de solidariedade, que mantêm a integração social, ficariam partidos se o respeito a uma determinada regra moral ou econômica não fosse sancionada pelo direito”. [9]

Sustentando a tese da formação espontânea do direito, Duguit almejou ter eliminado a ideia de poder do conceito de direito.

“Para ele, a soberania é fato do poder, expressão da existência de homens que se fazem obedecer por outros. O fato do poder se desenvolve paralelamente ao processo de formação jurídica até este se impor àquele por uma necessidade expressa pelo sentimento da massa dos espíritos.” [10]

Em contrapartida à teoria sociológica, situta-se a tese técnico-formal, que é a doutrina kelseniana sobre a soberania como expressão da positividade jurídica.
A identificação kelseniana entre direito e Estado, que resulta na tese de que não há outro direito além do direito positivo, exacerba o alcance do direito por compreender não haver qualquer poder que não seja coação como conteúdo da norma jurídica. Nesse contexto, a soberania se situa não como a própria expressão do poder, mas como tão-somente como instrumento da unidade e validade do sistema, em decorrência lógica da norma fundamental hipotética suposta pelo jurista como condição teórica do sistema. Em verdade, para Kelsen, não é a soberania sequer necessária para garantir a atualização do direito, vez que não a validade formal da norma jurídica prescinde de um poder preexistente que a sancione.

A par do reducionismo sociológico de Duguit e do formalismo positivista kelseniano, como terceira vertente, há que se referir à tese dos que dispensam o poder por considerá-lo “violador da liberdade individual e dos princípios da própria consciência religiosa, de todo dispensável à positivação do direito.” [11]Trata-se da concepção de cunho anarquista, que remonta à Grécia antiga, com os filósofos chamados cínicos, dos séculos IV e V a.C., dentre os quais se destaca Diógenes.

Posteriormente, o anarquismo se converte no dever cristão de obediência a Deus, que teria concedido aos homens autoridade sobre a natureza irracional, mas não sobre seu semelhante. Santo Agostinho, em sua obra Da Cidade de Deus, seria o mais importante representante dessa corrente que sustenta a ilegitimidade do poder social estabelecido.

Semelhante anarquismo persiste na filosofia de Proudhon e Bakunin, defendendo o último que a destruição do Estado e das instituições burguesas abriria caminho para o estabelecimento e desenvolvimento de relações sociais livres, baseadas na solidariedade, favorecendo o surgimento de uma sociedade igualitária e fraternal, que permita aos indivíduos gozar dos frutos do seu próprio trabalho, formando associações produtivas locais e mais amplas, até se alcançar a unificação internacional, com a total exclusão de explorações e injustiças.

A expressiva maioria dos que têm estudado o poder, contudo, reconhece-o como necessário à vida social e à estrutura do Estado. Em que pese variem significativamente as justificativas para sua existência, concordam, de modo geral, os autores, na necessidade da verificação de estruturas de poder para a manutenção da vida coletiva – ao menos da forma como é conhecida modernamente.

Sábia, portanto, é a conclusão de Dalmo de Abreu Dallari, que afirma:

“em todas as épocas e lugares, nas sociedades mais prósperas e bem ordenadas, ocorrem conflitos, que reclamam solução, tornando-se indispensável a intervenção de uma vontade preponderante para preservar a unidade.” [12]

De fato, somente uma vontande predominante, que se faça valer por meio da força, é capaz de solucionar conflitos persistentes, cujo potencial é a destruição da vida em sociedade. Evidente, portanto, que se faz necessária uma parcela de poder social, para a efetividade da função jurídica de manutenção da ordem.

3. A LEI: VIOLÊNCIA SIMBÓLICA E MATERIAL

Do que se considerou acerca do poder enquanto fenômeno social e de suas relações com a realidade jurídica, salta aos olhos que a suposta cisão entre lei e violência, trazida pela doutrina legalista que sucede a Revolução Francesa, constitui afirmativa falsa, sobretudo no Estado Moderno. Segundo Poulantzas, o Estado de Direito, ao contrário dos Estados pré-capitalistas que o antecedem, detém o “monopólio da violência e do terror supremo” – o monopólio da guerra [13].
Com efeito, a lei, longe de constituir conceito antagônico à violência, é parte integrante da ordem repressiva e da organização da coação, exercida por todo o Estado. Por organizar o funcionamento da repressão física, constitui a lei, no dizer do autor, verdadeiro “código da violência pública organizada”.

Há, contudo, corrente teórica que ignora o papel da repressão física no funcionamento do Estado. Concebe essa tese a ideia de que o Estado manipula o comportamento social por meio diverso da violência física, valendo-se de técnicas de dominação que se fundam na estrutura psicológica do indivíduo, tais como o hábito inconsciente ou considerações racionais, pautadas na tradição, no carisma ou na própria noção de legalidade.

Foucault se enquadra nessa categoria. Assevera o autor que conceber legalidade e terror como fenômenos contrapostos é um erro, vez que a lei sempre acompanhou o exercício da violência e da repressão física. Apesar disso, entende o o catedrático francês que, nas sociedades modernas, o exercício do poder se baseia muito menos na violência e na repressão que nos mecanismos mais sutis, heterógenos à violência, das “disciplinas”.

“Se é verdade que o jurídico pode servir para representar de maneira sem dúvida não exaustiva um poder essencialmente baseado na antecipação e na morte, é totalmente heterógeno aos novos processos de poder, que funcionam não para o direito, mas para a técnica, não para a lei, mas para a normalização, não para o castigo e sim para o controle, e que se exercem em níveis e formas que ultrapassam o Estado e seus aparelhos.” [14]

Afirma o autor, assim, o caráter “heterógeno”, ou diverso, do direito, em relação ao aos novos processos de dominação que se verificam no Estado moderno, mecanismos tais que ultrapassam a figura do Estado, inserindo-se no contexto da própria materialidade histórica da sociedade.

Convencionou-se denominar “interiorização da repressão” o que Foucault sustenta ser a moderna fenomenologia da dominação. Citando Robert Castel, entende Poulantzas que o exercício do poder nos moldes de Foucault pressupõe uma mudança de paradigma: em lugar da técnica estatal de imposição da autoridade, pelo uso da coerção, valer-se-ia o Estado de uma metodologia de persuasão, com vistas à manipulação social. Depreende-se dessa afirmação que há em Foucault uma subestimação do papel da lei e do Estado, ao menos no exercício do poder no seio das sociedades modernas, sendo o aparato repressivo material (exército, polícia, Judiciário, etc.) apenas dispositivo “retórico”, que molda a interiorização da repressão.

Poulantzas afirma que a tese de Foucault relativa à convivência entre lei e violência é correta, mas discorda da teoria segundo a qual o Estado não se vale, primordialmente, da repressão material, física, para o alcance de suas consecuções.
Segundo o filósofo grego, a teoria de Foucault se baseia em uma concepção de poder que o toma não como resultante de uma violência física organizada, mas da manipulação ideológico-simbólica que organiza o consentimento, interiorizando a repressão. Tal tese teria origem na filosofia jurídica burguesa, que enxerga o Estado de direito como intrinsecamente associado à limitação da violência, tomando esta como oposta à lei.

“Essa concepção teve, sob formas variadas, prolongamentos atuais: as análises da escola de Frankfurt – as famosas análises de substituição da família à polícia como instância autoritária – e de Marcuse e de P. Bourdieu sobre a chamada violência simbólica; o tema da interiorização da repressão e, em geral, de uma “diminuição”, digamos assim, da violência física no exercício do poder, tornaram-se lugar comum.” [15]

Construiu-se, assim, uma filosofia do poder pautada em uma axiomática dupla: a noção subestimada do papel da repressão física e a concepção de que, no exercício do poder, ideologia e violência representam grandezas inversamente proporcionais, de sorte que um aumento da inculcação ideológica produziria, necessariamente, uma retração da violência física e vice-versa.

Nesse sentido, o poder seria fruto de um consenso. O desejo popular seria o elemento primordial da gênese do poder, desejo esse, por sua vez, resultante de um processo de manipulação ideológica que prescinde do uso da violência. A repressão psicológica, sob a técnica da violência simbólica, produziria uma identidade – ainda que essencialmente maculada – entre as vontades de dominante e dominado, conduzindo a um consenso legitimante das relações de subordinação. A lei seria, nesse contexto, um símbolo representativo do ente carismático/tradicional, induzindo à obediência espontânea de quem a ela se sujeita. Não se considera a violência na base do poder; em seu lugar, buscam-se as razões do consentimento.

Segundo Poulantzas, a problemática dessa concepção está no fato de que, ao lado da repressão ideológica, razões materiais, positivas, desempenham um papel decisivo na obtenção do consenso. De fato, a par da violência simbólica, vale-se o Estado da violência física, material, real, efetiva, organizada e mantida pela lei. Não se trata de mera consciência do potencial lesivo da sanção; é o caso da efetiva utilização da cominação legal, como atestam os fatos contínuos da execução da pena no direito criminal (que em determinados Estados abrange inclusive o poder de morte), a excussão do patrimônio na execução civil e a suspensão de direitos ante o exercício do poder de polícia.

Apesar disso, a corrente predominante na filosofia do poder, da qual se aproxima Foucault, subestima constantemente o papel da violência física aberta, afirmando a submissão dos dominados decorrer de técnicas psicológicas de manipulação, que acabam por organizar materialmente a submissão dos dominados. Foucault denomina tal processo de “normalização”, concebendo “norma” como a regra psicologizada que decorre não da repressão material, mas da consciência da disciplina potencial:

“Que, atualmente, o poder se exerça ao mesmo tempo através desse direito e dessas técnicas, que essas técnicas da disciplina, que esses discursos nascidos da disciplina invadam o direito, que os procedimentos de normalização colonizem cada vez mais os procedimentos da lei, é isso, acho eu, que pode explicar o funcionamento global daquilo que eu chamaria uma ‘sociedade de normalização’.” [16]

Nesse sentido, a lei teria função predominantemente simbólica, o que conduziria, com o decurso do tempo, a uma “regressão” do jurídico:

“Por referência às sociedades que conhecemos até o século XVIII, nós entramos em uma fase de regressão jurídica; as Constituições escritas no mundo inteiro a partir da Revolução francesa, os Códigos redigidos e reformados, toda uma atividade legislativa permanente e ruidosa não devem iludir-nos: são formas que tornam aceitável este poder essencialmente normalizador.” [17]

A subestimação do papel da lei, em Foucault, é apenas um indício de sua principal tese: a subestimação do papel da violência aberta, considerada não efetiva em face do uso de diferentes técnicas de exercício do poder, como as disciplinas de normalização.

Poulantzas destaca que, a despeito do afirmado “consenso” existente nas relações de poder mantidas pela ordem jurídica, a História atesta uma sucessão de lutas no seio social, conflitos – por vezes sangrentos – tanto pela alteração da formatação jurídica do poder como pela própria posição privilegiada de “governo”. Se o conhecimento da potencial disciplina fosse suficiente à submissão, por que permitiria a existência de lutas? Revela-se, assim, a falha na tese de Foucault, que não apresenta explicação satisfatória para as famosas “resistências” ao poder.

A razão básica do uso da violência física por parte do Estado é assim trazida à tona pelo autor:

“De fato, se deve haver violência física organizada, é pela mesma razão que deve haver consentimento: porque há de início e sempre lutas baseadas em primeiro lugar na exploração. Se essa realidade primeira e incontornável, que faz que as lutas sejam sempre o fundamento do poder, for esquecida [...] somos levados, ora a derivar o consentimento do amor ou do desejo do poder, ora a ocultar o consentimento como problema. Nos dois casos escamoteia-se o papel da violência.” [18]

É o conflito, assim, a própria razão do uso da força. Em face do “dissenso” de parcela da comunidade, necessária se faz a intervenção efetiva, material, ante o fracasso dos instrumentos de repressão puramente ideológica. Sob o peso da espada, o poder dominante se impõe sobre quem subjuga, fazendo uso efetivo do aparato material que exerce função meramente “retórica” no âmbito da repressão simbólica. Em verdade, por uma necessidade de natureza prática, a saber, a manutenção forçada da posição privilegiada na relação de poder, o Estado hoje – como sempre – materializa contra quem se opõe, sob a égide da ordem jurídica, não apenas uma violência simbólica, mas também violência efetiva, física, material.

4. CAPITALISMO E DIREITO OPRESSOR

Diferentemente dos Estados que o precederam, o Estado capitalista detém o monopólio da violência legítima. De fato, ao caráter de Estado de direito verifica-se a acumulação prodigiosa de meios de coação corporal pelo Estado capitalista, que concentra a força organizada fundado em uma legitimidade racional-legal (Weber). A violência física aberta, exercida em situações de poder privado, exteriores ao Estado, é nitidamente reduzida com o advento do capitalismo, na medida em que o Estado calcado nessa doutrina político-econômica se reserva o monopólio da força física legítima.

Em verdade, os Estados capitalistas europeus se formaram quase sempre pela pacificação de territórios devastados pelas guerras feudais. Com o poder político institucionalizado na figura de um Rei, que, contudo, detém o monopólio da violência, nas circunstâncias normais de dominação é a agressividade aberta menos utilizada do que nos Estados pré-capitalistas.

Ocorre que diversas constatações temperam essa conclusão. Em primeiro lugar, a forma de exercício do poder, por vezes, se dá mediante regimes autoritários, que encerram elevada violência física em sua manifestação cotidiana. Ademais, sob a forma autocrática, a repressão ideológica é aberta, o que pode produzir violência em níveis que beiram o insuportável. Segundo, o terror supremo da guerra, sobre cuja viabilidade a decisão repousa exclusivamente nas mãos do detentor do poder político, revela que o poder moderno, a despeito de pautado no direito, pode funcionar para a morte, restando aos cidadãos apenas a submissão ao ato de violência perpetrado pelo Estado. Por fim, a exacerbação das lutas de classe, que se manifesta sob as mais diversas formas (v.g. a elevação da criminalidade, em verdadeira cruzada de pobres contra ricos), verificada com constância no regime capitalista, revela a fragilidade do conceito que enxerga na lei o oposto à violência do Estado. [19] De fato, a chancela da desigualdade econômica que realiza o direito no Estado capitalista nada mais é que pura violência, na medida em que considera ilegítima a busca pela igualdade material (criminalizando condutas como o roubo ou o furto) e aprova atos de exploração da pessoa humana (permitindo institutos de típica opressão, como a mais-valia do trabalho subordinado).

Sem dúvida, portanto, está a violência na base do agir do Estado capitalista. Como afirma o mestre grego:

“Concluir que o poder e o domínio modernos não mais se baseiam na violência física é a ilusão atual. Mesmo que essa violência não transpareça no exercício cotidiano do poder, como no passado, ela é mais do que nunca determinante. Sua monopolização pelo Estado induz a formas de domínio nas quais os múltiplos procedimentos de criação do consentimento desempenham o papel principal.” [20]

A monopolização pelo Estado da violência legítima está em perfeita consonância com o ideal capitalista que encerra o poder na titularidade dos meios de produção (atualmente, na posse de capital capaz de subsidiar a produção). Com a desmilitarização dos setores privados e a concentração da força armada na pessoa do Estado, desloca-se a luta de classes de uma guerra civil permanente, com conflitos armados e periódicos, para um conflito político-ideológico estruturado em novas formas de organização social, como sindicatos, associações e partidos políticos. Nesse novo panorama, a violência física aberta é de eficiência relativa e a luta passa a ser pelo poder de Estado, vez que é ele quem detém o monopólio da força.
A lei atua, nesse contexto, como organizador da repressão, da violência física organizada, em função tanto negativa, quanto positiva. Além de um complexo de interditos e censura, o direito obriga a ações positivas em vista do poder, a exemplo do que se tem a obrigação tributária, o dever de pagar uma prestação pecuniária ao Estado, para cuja inadimplência se comina a execução fiscal.

De fato, detém a lei papel importante na organização da repressão, mas a esse não se limita: é igualmente eficaz nos dispositivos de criação do consentimento.

“A lei-regra, por meio de sua discursividade e textura, oculta as realidades político-econômicas, comporta lacunas e vazios estruturais, transpõe essas realidades para a cena política por meio de um mecanismo próprio de ocultação-inversão. Traduz assim a representação imaginária da sociedade e do poder da classe dominante.” [21]

Poulantzas afirma que é possível constatar a especificidade do Estado capitalista a partir do direito por ele produzido. A noção de sistema axiomatizado, composto por normas abstratas e gerais, formais e estritamente regulamentadas é tipicamente capitalista, havendo razões lógicas para tanto.

A abstração, universalidade e formalidade do direito capitalista, que encobre a monopolização da violência legítima pelo Estado, opõe-se ao particularismo jurídico revelador das diferenças intersubjetivas. A ideia de indivíduos formalmente “livres” e “iguais” atende às necessidades de uma doutrina segundo a qual há igualdade de oportunidades e liberdade de ação. A relativa separação entre direito e economia escamoteia a violência nas relações de trabalho: em vista do desapossamento dos trabalhadores diretos dos meios de produção, a exploração inerente à divisão social do trabalho é vista como razão extra-jurídica. A formalidade e abstração da lei, assim, estão em relação primeira com os fracionamentos reais do corpo social, à luz da individualização dos agentes no processo de trabalho capitalista.

Em suas características capitalistas, a lei reúne os atributos capazes de constituir o quadro formal de coesão social. Como resultado de sua específica abstração (distanciamento da realidade fática), formalidade (criação mediante procedimento pré-determinado) e generalidade (aplicabilidade geral), a lei se mostra o dispositivo mais apto a preencher a principal função da ideologia do poder, a saber, produzir a unidade de uma formação social sob a égide da classe dominante. [22]

A forma jurídica capitalista, contudo, permite uma análise tão mais profunda quanto espantosa. Considerando a estrutura lógico-jurídica do Estado em relação com a distinção capitalista entre trabalho manual e intelectual, é possível concluir que funciona a lei como elemento de divisão em favor da classe dominante. Explica-se melhor.

Sob o império do jusnaturalismo, as diferenças de classe e os privilégios eram tidos como de direito natural. A lei moderna, por sua vez, rechaçando as justificativas pautadas no divino, fundamenta as diferenças na noção de saber, traduzida à luz da lei. É a lei, abstrata, formal, universal, que constitui a verdade dos sujeitos; é ela quem fornece a diretriz do pensamento científico-racional; é a lei que trava a luta contra a religião; é ela o que estabelece a diferença entre o público e o privado. É a lei, portanto, que promove a revolução capitalista do poder e do saber, condensada no trabalho intelectual capitalista: não há saber nem verdade nos indivíduos fora da lei. Por chancelar a divisão capitalista do trabalho, a lei promove o despojamento total dos agentes da produção de seu “poder intelectual” em proveito das classes dominantes e de seu Estado; qual “encarnação da razão”, a lei não permite questionamentos. Acentua, assim, a divisão social, no interesse da classe dominante.

“Esta especificidade da lei e do sistema jurídico capitalista tem, portanto, seus fundamentos nas relações de produção e na divisão social capitalista do trabalho: ela se relaciona assim com as classes sociais e com a luta de classes, tais como elas existem sob o capitalismo.“ [23]

O sistema jurídico capitalista, assim, corresponde precisamente às lutas políticas que admite. É possível apontar pelo menos duas associações: 1) a sistematização axiomática do direito como quadro de coesão referencial da sociedade estando ligada à necessidade de unir as classes sociais em conflito sob um mesmo teto de suposta igualdade (dogmática tornada possível exclusivamente pela possibilidade de atualização do sistema normativo à luz de uma regulamentação do processo de alteração do direito); 2) a regulação do acesso ao poder, que permite o exercício temporário do governo por parte de diferentes frações da burguesia (amortizando as crises na modificação das relações de força), estando relacionada com a ideia de relativa autonomia do Estado em face das relações de produção, ou seja, com a noção de que a classe economicamente dominante supostamente não se confunde com os mantenedores e agentes do Estado.

Há correlações, porém, também no interesse da classe dominada. Face a luta da classe proletária no plano político, o direito capitalista se vê obrigado a organizar um compromisso permanente, imposto às classes dominantes pelas classes dominadas. Direitos trabalhistas, como piso remuneratório, limitação da jornada de trabalho, repouso remunerado e indenização por dispensa arbitrária são exemplos de conquistas das massas populares, que traduzem no plano fático liberdades formais e abstratas enunciadas na própria instalação do regime. A regulação das formas de exercício da repressão física se insere no mesmo contexto. Somente nesse sentido é possível falar em limitação do exercício do poder por meio do direito – quando se verifique no texto legal efetivo limite à intervenção dos aparelhos do Estado (exército, polícia, Judiciário). Tal papel do direito, contudo, dependerá, naturalmente, da relação de força existente entre as classes – luta que se trava, como visto, precipuamente, não mais por intermédio da força física, mas tendo em vista a organização dos grupos sociais na busca pelo poder político.

A lei do Estado moderno capitalista, portanto, não intervém contra a violência ou o terror. Funciona como organizador do exercício da violência, considerando-se a resistência de parcela da população. O Estado capitalista, valendo-se da lei como instrumento de organização da força, aprofundou o uso que dela fizeram os Estados que o antecederam, na medida em que monopolizou a violência legítima, centralizando o poder de guerra e de morte.

Com efeito, o direito capitalista em muito faz lembrar o mito grego de Procusto. Inserido na narrativa de Teseu, reza a lenda que Procusto era um maníaco que se escondia numa caverna, arrastando para dentro da cova a pessoa que por perto passasse. Amarrando a vítima sobre uma cama de ferro, que tinha o exato tamanho do agressor, ficava a seu lado a estudar as medidas do corpo, se eram exatamente as mesmas do leito. Se sobravam pedaços do corpo para fora da cama, Procusto, munido de uma longa faca, cortava-os com meticulosa precisão, até tornar compatíveis os dois; se o corpo era demasiado pequeno, eram os membros esticados até atingirem o comprimento suficiente. [24]

A imagem sugere diversas associações. 1) É a lei capitalista tão sombria quanto o cruel assassino. Tal qual Procusto, satisfaz-se o direito às custas do sofrimento alheio. De fato, a satisfação da norma jurídica capitalista pressupõe a desigualdade econômica inerente ao sistema, tida como “estrutural” e aceita como “natural” no contexto de aplicação. Como o impiedoso monstro da mitologia, que, para satisfazer seu capricho por uma imagem geometricamente perfeita, submetia um ser humano a sofrimento indizível, quer o direito atual, a todo custo, a manutenção da ideologia que o sustenta, independentemente dos efeitos nefastos e do sofrimento real que acarrete a quem quer que seja. 2) Assim como o maníaco que procurava um enquadramento perfeito entre sujeito e objeto, quer o específico direito burguês (abstrato, formal e universal), regulamentado ao extremo, perfeito enquadramento silogístico entre texto normativo e fato – expectativa tão absurda quanto a do insano malfeitor do mito. Ambas as experiências resultam em injustiça: o sofrimento da vítima de Procusto, que era levada à morte por nunca se alcançar a exata identidade entre o corpo e a cama e a impropriedade da decisão calcada exclusivamente na lei, que gera injustiça ante a impossibilidade de previsão, por parte do texto, de uma multiplicidade de possibilidades fáticas. 3) O antagonista do mito agia com violência quando era frustrada sua expectativa. Do mesmo modo, não presente a situação social desejada, o direito capitalista intervém violentamente no plano dos fatos, forçando a situação de seu interesse. A “eficácia jurídica” da norma se manifesta em atos de violência: limitação de direitos, perda de patrimônio, restrição da liberdade e, em alguns casos, a própria morte. Tal qual o agente mitológico, o direito moderno se vale de violência física, efetiva e real – não meramente da repressão ideológica ou simbólica.

CONCLUSÃO

A concepção jurídico-positiva do Estado burguês, que toma o direito como limitador do exercício do poder, sofre críticas porquanto desconsidera o papel da lei como instrumento de dominação e sua função na organização da violência pública. Consoante Marx e Weber, em toda manifestação histórica de centralização do poder social, este, a despeito de ilimitado, era fundamentado na lei e no direito. Assim, consideram os autores falaciosa a afirmação de que o Estado de direito caminha em sentido oposto ao curso da violência.

Nicos Poulantzas, conceituado filósofo e sociólogo grego, no interessante trabalho O Estado, O Poder, O Socialismo – A Lei, apresenta específica visão do fenômeno jurídico, em análise crítica da postura que toma o direito em face do sistema capitalista. Considera que a lei, longe de constituir conceito antagônico à violência, é parte integrante da ordem repressiva e da organização da coação, exercida por todo o Estado. Diferentemente da corrente prevalecente na filosofia do poder, da qual se aproxima Foucault, entende Poulantzas que o Estado não se vale exclusivamente de uma repressão ideológica, simbólica, pautada em um “consenso” entre dominante e dominado, que se processa no interior do indivíduo, mas que se utiliza de efetiva violência física, manifestada na forma determinada pela lei. Demonstra o autor que, se o consenso fosse perfeito, não haveria “lutas” ou conflitos pelo direito e poder. Essa parcela de dissenso exige a intervenção efetiva do Estado por meio da repressão física.

O uso efetivo da violência se mostra de modo acentuado no Estado capitalista, considerado mais agressivo que os precedentes, na medida em que é o primeiro a deter o monopólio da violência legítima. Fundado em uma legitimidade racional-legal, o denominado “Estado de direito” acumula, como nenhum outro, grande quantidade de meios de coação corporal, concentrando a força organizada.

Poulantzas afirma que é possível constatar a especificidade do Estado capitalista a partir do direito por ele produzido. A noção de sistema axiomatizado, composto por normas abstratas e gerais, formais e estritamente regulamentadas é tipicamente capitalista. A abstração, universalidade e formalidade do direito capitalista encobre a monopolização da violência legítima pelo Estado, opondo-se ao particularismo jurídico revelador das diferenças intersubjetivas. A formalidade e abstração da lei, assim, mostram-se em relação primeira com os fracionamentos reais do corpo social, à luz da individualização dos agentes no processo de trabalho capitalista.

Atuando de forma tanto negativa quanto positiva, a lei funciona, nesse contexto, como organizador da repressão, da violência física organizada. Tendo em vista os “conflitos” persistentes no corpo social, necessário se faz à lei comungar com a aplicação efetiva da coação física. O direito, assim, não intervém contra a violência ou o terror. Funciona como organizador do exercício da violência.

REFERÊNCIAS

BOBBIO, Norberto. Dicionário de Política – Volume 2. Brasília: UnB, 2004.

BOBBIO, Norberto. Estado, Governo, Sociedade: para uma Teoria Geral da Política. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. São Paulo: Saraiva, 2003.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988.

FOUCAULT, Michel. A vontade de saber. Apud POULANTZAS, Nicos. O Estado, O Poder, O Socialismo. Tradução de Rita Lima. Rio de Janeiro: Graal, 1985.

FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade: a vontade de saber. Tradução de Maria Thereza da Costa e Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. 12. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1997.

FRANCHINI, A. S. As 100 melhores histórias da mitologia: deuses, heróis, monstros e guerras da tradição greco-romana. 9. ed. Porto Alegre: L&PM, 2007.

LEBRUN, Gèrard. O que é Poder? São Paulo: Brasiliense, 2007.

NICOS POULANTZAS. In: WIKIPEDIA, a enciclopédia livre. Disponível em: Acesso em: 16 jun. 2010, 07:50:02.

POULANTZAS, Nicos. O Estado, O Poder, O Socialismo. Tradução de Rita Lima. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1985.

REALE, Miguel. Teoria Geral do Direito e do Estado. 4ª edição. São Paulo: Saraiva, 1984.

SILVA, Osmar José da. Poder político e direito. Disponível em: Acesso em: 30 jun. 2010.


NOTAS

[1] POULANTZAS, Nicos. O Estado, O Poder, O Socialismo. Tradução de Rita Lima. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1985, p. 63.
[2] NICOS POULANTZAS. In: WIKIPEDIA, a enciclopédia livre. Disponível em: Acesso em: 16 jun. 2010, 07:50:02
[3] BOBBIO, Norberto. Dicionário de Política – Volume 2. Brasília: Editora UnB, 2004, p. 933.
[4] LEBRUN, Gèrard. O que é Poder? São Paulo: Brasiliense, 2007, p. 12.
[5] LEBRUN, Gèrard. Op. cit. p. 12, 13.
[6] FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988, p. 145-153.
[7] BOBBIO, Norberto. Estado, Governo, Sociedade: para uma Teoria Geral da Política. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 86.
[8] BOBBIO, Norberto. Op. cit., 1987, p. 33.
[9] REALE, Miguel. Teoria Geral do Direito e do Estado. 4ª edição. São Paulo: Saraiva, 1984, p. 71-72.
[10] SILVA, Osmar José da. Poder político e direito. Disponível em: Acesso em: 30 jun. 2010.
[11] Idem.
[12] DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 35.
[13] POULANTZAS, Nicos. Op. cit., p. 64.
[14] FOUCAULT, Michel. A vontade de saber. Apud POULANTZAS, Nicos. Op. cit., p. 65.
[15] POULANTZAS, Nicos. Op. cit., p. 65-66.
[16] FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 46.
[17] FOUCAULT, Michel. História da sexualidade: a vontade de saber. Tradução de Maria Thereza da Costa e Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. 12. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1997, p. 135-136.
[18] POULANTZAS, Nicos. Op. cit., p. 67.
[19] POULANTZAS, Nicos. Op. cit., p. 68.
[20] POULANTZAS, Nicos. Op. cit., p. 68.
[21] POULANTZAS, Nicos. Op. cit., p. 68.
[22] Idem, p. 77.
[22] Idem, p. 79.
[23] FRANCHINI, A. S. As 100 melhores histórias da mitologia: deuses, heróis, monstros e guerras da tradição greco-romana. 9. ed. Porto Alegre: L&PM, 2007.

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Dogmática e Justiça: uma reflexão sobre a função judicial e o processo decisório

por Cláudio Ricardo Silva Lima Júnior

Sumário: 1. Introdução. 2. Justiça e direito. 2.1. Natureza da justiça. 2.2. Autonomia da justiça em relação ao direito. 3. O pensamento tradicional da dogmática jurídica. 3.1. A crítica à dogmática contemporânea. 4. O papel do juiz na aplicação do direito. Conclusão. Bibliografia.

1. INTRODUÇÃO
O triunfo do positivismo possibilitou o desenvolvimento, a partir do século XIX, de abordagem cada vez menos especulativa na apreensão do conhecimento jurídico. A identificação inicial entre direito e lei, no esteio das teorias da Escola da Exegese, propiciou uma noção de ciência jurídica favorável à pretensão dominadora do Estado Moderno, qual seja, a análise predominantemente dogmática do fenômeno jurídico. Tal concepção influenciou sobremaneira – como de outro modo não poderia ser – a metodologia judicial de solução de conflitos, constituída na aplicação silogística do direito estatal, em atividade alegadamente “neutra” e “imparcial”. Nesse sentido, o valor que se deu à máxima de Montesquieu, de funcionar o juiz como “la bouche de la loi”, meramente a boca que pronuncia as palavras da lei.
A prática trouxe à evidência a impossibilidade de completude no sistema normativo, explicitada pela inviabilidade de utilização exclusiva do Código de Napoleão, tipo como panacéia juridica quando de sua formação. Não apenas um problema de sistemática, a noção de direito legislado causou questionamento quanto à legitimidade da decisão judicial, por vezes injusta, porquanto trabalhada na perspectiva exclusiva da norma.
O normativismo kelseniano do século XX, em abrandamento ao legalismo exegético, cunhou a norma sob a teoria da moldura, segundo a qual o texto jurídico estabelece limites dentro dos quais se admite certa atividade judicial, na forma de interpretação e integração do direito. A perspectiva dogmática que exige, contudo, colocando o texto como inquestionável ponto de partida, impossibilita a investigação das “fontes da lei”, identificando a ciência do direito como ciência da norma, ciência das fontes. O reflexo dessa abordagem na atividade judicial é a esquiva à função criativa, no entendimento de que cabe à lei a definição do justo. Tal noção, que retoma o erro dos primórdios do positivismo, incorre no risco de desprezar-se a justiça do caso concreto, quando a lei se apresentar manifestamente injusta.
Amilton Bueno de Carvalho, desembargador do estado do Rio Grande do Sul, em seu livro Magistratura e Direito Alternativo, sustenta que a função judicial é, acima de tudo, a implementação da justiça. Nesse sentido, ante o conflito entre justiça e lei, deve o magistrado optar por aquela, desfazendo no plano jurídico as desigualdades do plano fático. Considera ser a lei comprometida com o interesse econômico e, portanto, injusta. Afirma que é dever do juiz, em cada relação, buscar o “oprimido”, que pode coincidir ou não com a parte mais fraca, tomando o seu lado, vez que “a justiça não se faz de meios, mas de extremos”. Por fim, coloca que o juiz tem de ser parcial, como o é a lei, se tem por objetivo realizar o justo.
Este texto busca investigar a validade das afirmativas de Bueno. Realiza-se, a princípio, reflexão quanto à natureza da justiça e sua relação com o direito, passando-se à verificação da adequação do método dogmático para sua realização no caso prático. Em seguida, busca-se analisar em que consiste a tarefa de “aplicação do direito”, de sorte a concluir-se por uma postura passiva ou ativa do juiz como o inerente a seu ofício. Ao final, esboçam-se as críticas colocadas pela doutrina à dogmática tradicional e procura-se responder à questão central da possibilidade de afastamento da lei por parte do magistrado.

2. JUSTIÇA E DIREITO
A distinção entre o justo e o posto é preocupação que remonta à antiguidade clássica. A filosofia grega pré-socrática identificava o conflito entre physis e nomos, a natureza particularizada pela observação e a norma criada pelo homem, ou direito positivo. O direito natural seria o critério de legitimidade da norma posta, que deveria implementá-lo do modo mais fiel possível. É o direito, no entender de então, técnica de decisão com vistas à efetivação da justiça natural. [1] Os jusnaturalismos teológico e antropológico da Idade Média assinalavam a mesma noção básica de existência de um justo ideal a ser perseguido pelo direito positivo, um decorrente da revelação divina e outro da razão humana.
A perspectiva apresenta mudança com a corrente jusfilosófica da segunda metade do século XVIII, que se convencionou denominar Historicismo Casuístico, também conhecida por Jusnaturalismo Democrático. Pautada na obra de Gustav Hugo, esta escola sustenta que o direito natural nada mais é do que o direito positivo universal, criado pela razão natural de todos os povos. Encontra em Savigny seu maior expoente, com a exigência de positividade para o conceito de direito, rompendo com as concepções idealistas do direito natural. [2] A justiça, assim, estaria manifestada na representação racional do direito histórico dos povos.
Tal noção lançou as bases para o positivismo jurídico do século XIX, que se desenvolveu, a princípio, na forma do Legalismo exegético. O legalismo entendia o direito como restrito à lei e, esta, porquanto produzida pela razão humana, como a representação formal do justo. Em exacerbação à teoria de Savigny, o juspositivismo suplantou a ideia de direito natural, concebendo o direito positivo como o próprio direito justo.
O Realismo jurídico do século XX veio abrandar esse entendimento. Para o realista, o direito não se identifica com a norma, mas com os esquemas vigentes que possibilitam a interpretação dos fenômenos jurídicos em ação. Nessa ótica, o justo passa a ser não a norma em si mesma, mas o resultado de sua apreciação pelo órgão competente no caso concreto.
A identificação entre direito e justiça, realizada com o positivismo, perde sua força ante a verificação, mormente pelas classes menos favorecidas, da impossibilidade de a dogmática fornecer um conteúdo legítimo às decisões jurídicas. [3] Principalmente em razão da manutenção das desigualdades sociais, prevalece o sentimento de um direito apartado da realidade material, que não raro deixa de satisfazer a expectativa popular de justiça. A legitimação do direito, passa, assim, por uma reflexão quanto a seu conteúdo axiológico, com vistas à implementação de um conceito específico de justiça.

2.1. Natureza da justiça
A justiça era, para os gregos, a própria finalidade da vida em comunidade.
“A noção de justiça fora, inicialmente, elaborada em termos míticos, a partir de três figuras principais: themis, a lei divina que institui a ordem do Universo; cosmos, a ordem universal estabelecida pela lei divina; e dike, a justiça entre as coisas e entre os homens, no respeito às leis divinas e à ordem cósmica. Pouco a pouco, a noção de dike torna-se a regra natural para a ação das coisas e dos homens e o critério para julgá-las. A idéia de justiça se refere, portanto, a uma ordem divina e natural, que regula, julga e pune as ações das coisas e dos seres humanos. A justiça é a lei e a ordem do mundo, isto é, da Natureza ou physis. Lei (nomos), Natureza (physis) e ordem (cosmos) constituem, assim, o campo da idéia de justiça.” [4]
Platão e Aristóteles definiram a justiça de modo distinto. Concordavam, contudo, no caráter natural a ela inerente. Para Platão, a justiça do homem consistia no controle das almas concupiscente e irascível pela alma racional, impondo ao corpo, pelo pensamento e vontade, a temperança e a coragem. [5] A justiça política ou social seria a ordem da estrutura tripartite da sociedade à semelhança da ordenação justa do corpo.
Aristóteles, por sua vez, define a justiça a partir da distinção entre dois tipos de bens, os partilháveis e os participáveis. Partilháveis são os bens passíveis de divisão e distribuição, como a riqueza. Participáveis são os bens indivisíveis, que não podem ser divididos ou distribuídos, mas tão-somente participados. Há dois tipos de justiça, cada uma referida a um tipo de bem.
“A justiça distributiva consiste em dar a cada um o que é devido e sua função é dar desigualmente aos desiguais para torná-los iguais. [...] A função ou finalidade da justiça distributiva sendo a de igualar os desiguais, dando lhes desigualmente os bens, implica afirmar que numa cidade onde a diferença entre ricos e pobres é muito grande vigora a injustiça, pois não dá a todos o que lhes é devido como seres humanos. [...] A justiça política consiste em respeitar o modo pelo qual a comunidade definiu a participação no poder. Essa definição depende daquilo que a Cidade mais valoriza, os regimes políticos variando em função do valor mais respeitado pelos cidadãos.” [6]
Assim, enquanto em Platão a justiça é a virtude da ordem e da estabilidade, em Aristóteles mais se aproxima da noção de equilíbrio, igualdade e corretude. A justiça distributiva pressupõe uma ação concretizante, atitude consciente do governante, determinada no sentido objetivo do partilhamento. Note-se que os preceitos da distributividade não são necessariamente incompatíveis com a ideologia capitalista. É possível conciliar a noção de propriedade privada com a de distribuição da riqueza, bastando para isso temperar a política liberal com o intervencionismo necessário à realização da justiça.
Tércio Sampaio, referindo a Ilmar Tammelo, chama à atenção a distinção moderna entre justiça formal e material.
“Em seu aspecto formal, ela aparece como um valor ético-social de proporcionalidade em conformidade com o qual, em situações bilaterais normativamente reguladas, exige-se a atribuição a alguém daquilo que lhe é devido. Trata-se da ideia clássica do suum cuique tribuere, que reclama, porém, num segundo aspecto, a determinação daquilo que é devido a cada um. A conformidade ou não com critérios sobre o que e a quem é devido é o problema do aspecto material da justiça.” [7]
Segundo Tércio, a justiça aristotélica, no aspecto formal, corresponde à idéia de proporcionalidade aritmética e geométrica entre sujeitos pretensamente iguais (justiça comutativa) ou entre sujeitos diferentes entre si (justiça distributiva), traduzindo uma ideia de igualdade como o cerne da justiça. [8] Uma vez que é apresentada sob a forma de uma proporcionalidade, a igualdade desenvolvida pela justiça mostra-se como fruto de um esforço racional.
Para Miguel Reale, o coceito de justiça se encontra no âmbito de uma teoria dos valores. Considerando que toda regra contém um valor, a ordem jurídica pressupõe uma pluralidade valorativa imprescindível a sua existência. Segundo o autor, a justiça não se identifica com qualquer dos valores jurídicos.
“A nosso ver, a Justiça não se identifica com qualquer desses valores, nem mesmo com aqueles que mais dignificam o homem. Ela é antes a condição primeira de todos eles, a condição transcendental de sua possibilidade como atualização histórica. Ela vale para que todos os valores valham. Não é uma realidade acabada, nem um bem gratuito, mas é antes uma intenção radical vinculada às raízes do ser do homem, o único ente que, de maneira originária, é enquanto deve ser. Ela é, pois, tentativa renovada e incessante de harmonia entre as experiências axiológicas necessariamente plurais, distintas e complementares, sendo, ao mesmo tempo, a harmonia assim atingida.” [9]
Tal concepção de justiça como a “condição transcedental para a possibilidade de atualização histórica” dos valores torna evidente que a justiça não é atrbuto intrísco à ordem jurídica. Se é a “condição primeira” para que valham todos os demais valores, é algo externo à norma, funcionando como critério de validade ética do valor por ela eleito.
Reale afirma que, na história da teoria do justo, verificam-se três tendências fundamentais, tendo sido a justiça concebida como: a) qualidade subjetiva, traduzida como virtude ou hábito do sujeito condizente na “vontade constante e perpétua de dar a cada um o que é seu”; b) forma objetiva, consistente na realização da ordem social justa, “resultante de exigências transpessoais imanentes ao processo do viver coletivo”; c) concreta experiência histórica, a saber, o valor fundante do Direito ao longo do processo histórico.
“Na realidade, vista apenas como virtude ou vontade de dar a cada um o que é seu, fica-se à metade do caminho, mesmo porque o seu de cada um somente logra sentido na totalidade de uma estrutura na qual se correlacionem, deste ou daquele modo, o todo e as partes. Vistas, ao contrário, apenas na sua extrapolação objetiva, a ordem justa pode ser mera justaposição mecânica de interesses, segundo critérios de medida impostos à subjetividade humana esquecendo-se que esta, consoante ensinamento fundamental de Husserl, é a fonte doadora de sentido à realidade, a força primordial que converte em humano tudo aquilo que se volta a sua intencionalidade.“ [10]
Entende Reale, assim, ser necessário conceber a justiça não apenas enquanto qualidade do sujeito ou forma objetiva da sociedade, mas, complementarmente, como objetiva e subjetiva, envolvendo o homem e a sociedade justa que instaura, vez que a ordem social justa nada mais é que uma projeção da justiça da pessoa humana.

2.2. Autonomia da justiça em relação ao direito
A conceber a justiça como virtude do sujeito ou da ordem social, porquanto materializante de uma ação comutativa ou distributiva (Aristóteles), de uma sanidade ou equilíbrio estrutural (Platão) ou de um fundamento para os valores de um sujeito ou ordenamento (Reale), tem-se que corresponde a critério verificável ou não em qualquer ordem objetiva.
A perspectiva positivista de que a construção democrática legitimaria o direito como justo é falaciosa. A lei não encerra necessariamente o justo, porquanto os representantes eleitos nem sempre positivam norma condizente com o “espírito do povo” (Volksgeist), no sentido de Savigny.
“Parece-me claro que, a partir do momento em que uma classe toma o poder, ela se equipa com um aparato legal buscando nele se perpetuar. Nas sociedades capitalistas, onde o poder está nas mãos de uma minoria (os detentores do capital e seus representantes), a lei tem basicamente duas funções: manter coesas as forças que estão no mando e determinar a subordinação daqueles que sofrem a opressão (a minoria trabalhadora).” [11]
Trata-se de realidade histórica. A lei é o instrumento do governante, o qual, no afã de perpetuar-se no poder, é capaz de subverter valores morais, mascarando-os na ordem objetiva.
Citando Roberto Aguiar, Amilton Bueno bem coloca: “a lei nada mais é do que a ideologia vencedora que sanciona”.
Em que medida se constrói democraticamente tal “ideologia vencedora”? Mormente em países periféricos, a legitimidade democrática do processo eleitoral é questionável.
A grande maioria da população, vítima de uma política educacional relapsa e massificante, torna-se suscetível à propaganda bem elaborada. Financiados pelos grandes detentores do capital, políticos desenvolvem, com o auxílio dos mais competentes profissionais da publicidade, campanhas astuciosas, cuja aparência é capaz de engodar até o mais bem preparado psicologicamente. O resultado é a eleição inequívoca de representantes comprometidos com o poder econômico, os quais, em postura absolutamente antiética (mas condizente com a “ética” do sistema), se vêem obrigados a retribuir as “doações” de campanha, o que é feito na forma da aprovação de programas e projetos de lei de interesse da classe financiadora. Ademais, como se não bastasse a própria base do sistema democrático ser deficiente, há a corrupção, construída na forma da compra de votos para eleger um candidato ou na compra de votos de parlamentares para a aprovação de determinados projetos de lei.
Evidente, portanto, que resulta no mínimo ingênua a afirmação de que a ordem jurídica é a representação formal do justo, por decorrer da “vontade geral”, do “espírito do povo”. Sequer da “maioria do povo” é a lei produto. Como fruto da “força bruta” do poder econômico, a lei é comprometida e, em sua grande maioria, encerra injustiças. Como afirma Marx: “O direito é a vontade, feita lei, da classe dominante, que, através de seus próprios postulados ideológicos, pretende considerá-lo como expressão aproximativa da justiça eterna.” [12] Assim, apropriadas as palavras de Bueno de Carvalho:
“Cumpre, pois, destruir o mito neutralizante da lei. Ela é definitivamente comprometida com aqueles que estão no poder. Pode estar ou a serviço da maioria, se eles conquistarem o poder político, ou a serviço da minoria, se estes conquistarem.” [13]

3. O PENSAMENTO TRADICIONAL DA DOGMÁTICA JURÍDICA E SUA CRÍTICA
A despeito da realidade fática acerca das fragilidades quanto à legitimidade do ordenamento jurídico, o positivismo encampou consigo a abordagem predominantemente dogmática para ciência jurídica.
Dogmática vem de dokein, que significa ensinar, doutrinar. O conceito contraposto é trazido por Tércio Sampaio como o enfoque zetético, que vem de zetein, significando perquirir, pesquisar, questionar, indagar.
“O enfoque dogmático releva o ato de opinar e ressalva algumas das opiniões. O zetético, ao contrário, desintegra, dissolve as opiniões, pondo-as em dúvida. Questões zetéticas têm uma função especulativa explícita e são infinitas. Questões dogmáticas têm uma função diretiva explícita e são finitas. Nas primeiras, o problema tematizado é configurado com um ser (que é algo?). Nas segundas, a situação nelas captada configura-se como um dever-ser (como deve-ser algo?). Por isso, o enfoque zetético vai saber o que é alguma coisa. Já o enfoque dogmático preocupa-se em possibilitar uma decisão e orientar a ação.” [14]
A função especulativa corresponde ao inquirir, questionar, ao passo que a função diretiva diz respeito a sugerir uma conduta, recomendar uma ação humana. Um mesmo objeto pode ser observado a partir dos dois enfoques, zetético e dogmático. Relativamente ao direito, a abordagem zetética diz respeito ao questionamento quanto a suas razões, seus fundamentos sociológicos, históricos, psicológicos, antropológicos, políticos, econômicos; a abordagem dogmática consiste no estudo do direito em si, a partir do dogma de sua positividade, desdobrando-se no estudo da norma nos seus mais variados ramos, a saber, o direito civil, penal, processual, constitucional, administrativo, internacional, etc. O enfoque dogmático, portanto, toma como pressuposto um dado de fato inquestionável, a partir do qual se realizarão considerações.
O dado de fato tomado como pressuposto dogmático no âmbito do direito é a lei (sentido amplo). A finitude das questões dogmáticas exige a inegabilidade dos pontos de partida, consistente, no caso do direito, na inquestionabilidade da lei e de seus fundamentos. O raciocício jurídico, dessa forma, somente atinge validade dogmática enquanto reportado às fontes do direito.
“Essa limitação teórica pode comportar posicionamentos cognitivos diversos que podem conduzir, por vezes, a exageros, havendo quem faça do estudo do direito um conhecimento demasiado restritivo, legalista, cego para a realidade, formalmente infenso à própria existência do fenômeno jurídico como um fenômeno social; pode levar-nos ainda a crer que uma disciplina dogmática constitui uma espécie de prisão para o espírito, o que se deduz do uso comum da expressão dogmático, no sentido de intransigente, formalista, obstinado, que só vê o que as normas prescrevem.” [15]
Tércio sustenta que a abordagem dogmática do direito sujeita-o a uma dupla abstração: a normatização da conduta e a definição de regras de interpretação. O objeto do conhecimento jurídico dogmático, assim, é o resultado dessa dupla abstração, o que acaba por distanciá-lo da realidade social. A despeito disso, o estudo dogmático não representa uma “prisão para o espírito”: uma vez que o dogma representa uma vinculação, o trabalho do teórico possibilita um distanciamento da vinculação. A tarefa de atribuir sentido aos dogmas concede ao jurista a possibilidade de manipulação conceitual.
“A inquestionabilidade dos pontos de partida [...] não significa que os dogmas jurídicos sejam interpretações estáticas da conduta social, uma vez que eles precisam ser constantemente revistos afim de acompanhar a mutabilidade inerente àquela conduta. A dogmática jurídica consiste justamente na sistematização e no manejo das regras que garantem que esses processos de revisão e atualização permanecerão dentro dos limites fixados pelas próprias normas jurídicas, estabelecendo modos interpretativos e integradores para a adaptação da norma ao fato.” [16]
De fato, o distanciamento das relações materiais, gerado pela dogmática, torna possível, paradoxalmente, sua aproximação, vez que possibilita o tratamento teórico da norma de sorte a gerar abstração aplicável a vinculação nova, criada pelo jurista no agir interpretativo. Em verdade, “a dogmática jurídica não se limita a copiar e repetir a norma que lhe é imposta, apenas depende da existência prévia dessa norma para interpretar sua própria vinculação.” [17]
Segundo Adeodato, a dogmática estabele a conexão entre a norma e a realidade fática a partir de uma generalização abstrata, capaz de absorver a contingência. Dessa forma, possibilita o controle de fatores vitais à manutenção da estabilidade social, pelo exercício de quatro funções principais, quais sejam: 1) criar uma identidade específica do mundo jurídico em relação às demais ordens normativas, definindo os fatos juridicamente relevantes, conforme se verifica nas sociedades modernas; 2) gerar estabilidade social, decorrente da crença em que a decisão dogmática soluciona os conflitos de modo racional e sem opressão; na realidade, a decisão é necessariamente arbitrária e sua “legitimidade” decorre tão-somente de ter sido colocada por um terceiro, sendo um ato de violência como outro qualquer. A dogmática camufla a violência, trazendo-a, controlada e limitada “para dentro de um universo conceitual”; 3) difundir a ideologia dos detentores do poder, presente na lei, ponto de partida tido como inegável na abordagem dogmática; o pensamento dogmático executa uma técnica particular sobre a ideologia, de sorte que, a partir de então, a matéria é referida sem reflexões ideológicas; 4) manipular um conceito específico de valor, de sorte a neutralizar a carga ideológica do sistema e possibilitar seu manejo contingente no caso concreto; dogmaticamente, valores são formas (conceitos vagos, palavras) a que se alude com o intuito de provocar reações específicas na conduta dos indivíduos, sendo que seu conteúdo é atribuído pelos indivíduos segundo suas próprias convicções. [18]
O pensamento dogmático tradicional consiste, assim, na inquestionabilidade dos pontos de partida normativos, associada à obrigatoriedade da decisão acerca de um fato, em raciocínio argumentativo referido às fontes (dogmas), abstraindo-se da realidade material pela generalização que controla as contingências. Tem como resultado a identificação do que é juridicamente relevante, a estabilidade social, a difusão da ideologia dos detentores do poder e a operacionalização dos valores, tidos como instrumento na manipulação da norma com vistas à decidibilidade dos conflitos.

3.1. A crítica à dogmática contemporânea
A dogmática tradicional não se mostra mais satisfatória no tratamento e controle dos conflitos sociais, dentre outros fatores, em razão de: 1) uma complexidade progressiva da sociedade, que exige, para a produção de soluções viáveis, um número cada vez maior de informações precisas por parte do órgão decisório; 2) o declínio de popularidade, entre os juristas, de um conceito de direito fundado na norma jurídica como ponto de partida de uma decisão siolgística; 3) a conscientização, por parte de setores da sociedade, em especial os menos favorecidos, acerca do distanciamento da dogmática da realidade dos fatos; 4) a impossibilidade de fornecer um conteúdo materialmente legítimo às decisões dogmáticas, porquanto seu fundamento é formal, distante e apartado do fato. [19]
Adeodato coloca que são propostas de correção do sistema dogmático a partir de si mesmo:
1) A inclusão de uma argumentação tópica, consoante a proposta de Viehweg, em lugar da referência silogística ao sistema de fontes. Os catálogos de topoi seriam fundamento mais apropriado para a decisão jurídica, vez que o direito, campo de ação da prudência, seria um dos ramos do conhecimento em que não se pode partir de premissas univrersalmente válidas, devendo a conclusão ser alcançada não a partir de verdades apodíticas, mas de um processo dialético.
2) O abandono da linguagem enquanto instrumento para a dominação política, mediante uma maior restrição do sentido dos termos e expressões jurídicas, conferindo maior precisão terminológica à linguagem jurídica. A ambiguidade da linguagem não pode ser tal que venha a “variar segundo as conveniências” [20] .
3) Uma transformação no ensino jurídico, capaz de propiciar ao aluno a investigação e o raciocínio desvinculados da autoridade de quem ensina e pesquisa dentro e fora da sala-de-aula, favorecendo, assim, um avanço no pensamento dogmático e um aprofundamento da compreensão da realidade jurídica e social.
Segundo o mesmo autor, são falhas manifestas na própria base do sistema dogmático: 1) a tentativa da dogmática de portar-se ciência e como forma de controle social, enquanto funciona como uma técnica de dominação, sendo tal realidade incompatível com uma abordagem científica; 2) a impropriedade de uma ciência do direito dissociada da realidade fática, de sorte que não faz sentido examinar um problema jurídico a partir de um dogma, sem considerar o conflito concreto carente de solução; 3) a inviabilidade da dogmática enquanto postura científica, na medida em que não fornece material aos políticos, governantes e juízes, mas, ao contrário, deles recebe, mistificando a violência simbólica por sua própria estrutura técnica. [21]

4. O PAPEL DO JUIZ NA APLICAÇÃO DO DIREITO
As considerações realizadas até o momento no âmbito deste estudo conduzem a um conflito espinhoso de cunho jusfilosófico. A metodologia dogmática de análise e operação do direito é a propugnada pelo Estado para a realização de suas atividades. Como visto, decorre do enfoque dogmático a inegabilidade dos pontos de partida e a vinculação do juiz à ordem positiva. Ocorre que, a análise da natureza da justiça, bem como do olhar que sobre ela lançaram juristas e filósofos ao longo dos séculos, nos levou a concluir ser a justiça ideal fundante do direito, mas nele não verificado necessariamente. Se certo é que o direito e justiça não necessariamente coincidem, que postura deve adotar o juiz no conflito entre o justo e o posto? Ante a prevalecente postura dogmática para a técnica jurídica, é o juiz autorizado a afastar a lei injusta para a solução do caso concreto?
Amilton Bueno de Carvalho sustenta que sim. Considerando a lei a ideologia do poder dominante, entende que é intrinsecamente injusta, devendo ser temperada pelo bom senso do juiz no caso concreto.
Alguns exemplos são colocados: a excepcionalidade da antecipação da tutela inaudita altera pars, que é regra no Decreto 911/69, que serve às instituições financeiras; a disparidade entre as penas atribuídas a delitos de natureza semelhante, mas cuja observação prática denuncia serem praticados por integrantes de classes sociais distintas, sendo evidentemente mais leve a penalidade legal atribuída aos delitos praticados pelas classes mais favorecidas economicamente; e a absurda prescrição quinquenal no direito do trabalho, que possibilita abusos por parte do empregador sem que sofra qualquer sanção, já que, enquanto não extinta a relação de trabalho, a parte hipossuficiente obviamente não ingressa com reclamação trabalhista, pois implicaria, como retaliação, demissão sem justa causa, com cessação de seus rendimentos de natureza alimentar.
“Tenho, pois, que a lei merece ser vista com desconfiança. Deve ser constantemente criticada, sob pena de sermos, juízes, promotores e advogados, agentes inconscientes da opressão. Inocentes úteis de um sistema desumano. Não quero dizer que não se possa optar por tal sistema, mas que, se assim se fizer, o seja conscientemente.“ [22]
O próprio autor apresenta as críticas que renomados autores colocam a sua teoria do ativismo judicial: 1) o juiz não pode substituir o legislador; 2) a não aplicação da lei gera instabilidade social; 3) é necessário o devido respeito à legalidade e o regime; 4) a decisão do juiz é subjetiva; 5) o juiz é falível; 6) não aplicar a lei geraria a pior das ditaduras, a do Judiciario.
Bueno afirma que o argumento de que o juiz substituiria o legislador quando afastasse a aplicação da lei injusta não cabe, porquanto o trabalho de aplicação do direito consiste, justamente, em evitar a injustiça flagrante, corrigindo a situação não prevista ou mal prevista pelo legislador. “Se a função do juiz é buscar a vontade do legislador, qual a razão de ser do Judiciário? Simples seria deixar ao próprio legislador a tarefa de aplicação, que o faria administrativamente.” [23] Quanto ao argumento da instabilidade, afirma que a aplicação da lei injusta é que causaria instabilidade social; realizar a “justiça” provocaria estabilidade. No que tange à obediência ao regime, Bueno sustenta que é legítima a resistência direta e até violenta quando a lei é flagrantemente injusta. Sobre o subjetivismo do juiz, alega que toda e qualquer decisão judicial é subjetiva, assim como subjetivos são os depoimentos das partes, dos peritos e o é a própria lei. Acerca da falibilidade do juiz, afirma o autor que tal argumento também justifica a não aplicação da lei quando injusta, posto que o legislador também é humano e, portanto, também falível.
A resposta colocada merece considerações. Em primeiro lugar, não existe uma “vontade do legislador” plenamente definida. O legislador é órgão complexo, composto por uma multiplicidade de vontades subjetivas, por vezes conflitantes entre si. Logo, o resultado da atividade legislativa não pode ser analisado a partir de uma possível “vontade do legislador”. Somente se pode falar em uma “vontade da lei”, significando tal expressão aquilo que do texto é razoável extrair como conteúdo ante suas possibilidades linguísticas. O fato de a tarefa de aplicação do direito ter sido transferida a órgão autônomo do Estado, a saber, o Judiciário, consiste, sim, em estratégia constitucional para coibir excessos por parte do legislador, mas, apenas excepcionalmente. Primordialmente, representa mero esquema de divisão do trabalho no âmbito estatal. A função do juiz não é buscar a vontade do legislador, nem primordialmente, combater o legislador contra as “injustiças” que insira na lei. É solucionar os conflitos sociais, interentes à própria natureza humana e à finitude dos recursos necessários à vida, à luz da lei, considerando o sentido normativo que dos textos se pode extrair, conforme as regras interpretativas da língua, tomada a norma como diretriz do comportamento desejável no seio social. É evidente que o sentido básico de justiça deve permear a solução do conflito, sob pena de ser o julgamento ilegítimo, colocando-se como passível de questionamento social. Mas a justiça ou prudência do juiz tem de levar em conta a justiça ou prudência do legislador, que tem parcela do Poder Público e foi investido – justa ou injustamente, mas investido – em Poder do Estado. Não cabe ao juiz arvorar-se à solução de todos os problemas, pois é competência de outro órgão do Estado realizar a produção normativa geral.
Entendo que a função judicial admite o controle da lei, mas no âmbito exclusivo da validade, relativamente ao todo do texto ou a uma interpretação específica. O poder concedido ao juiz para interpretar, dizer o conteúdo da lei, já é enorme. Têm os juízes, ainda, a competência para declarar válida ou não toda uma norma ou determinada interpretação, em juízo de constitucionalidade. Trata-se de competência vasta e de parcela significativa do poder público. Não se pode admitir que lhes seja concedido, também, o poder de definir, livremente, o que é justo ou injusto, a ponto de pertencer à normatividade jurídica. É preciso ter em mente que a justiça é um ideal a ser perseguido pelo homem enquanto indivíduo, pela sociedade civil e pelo Estado em geral, o que inclui o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. O legislativo têm o dever constitucional de produzir normas justas. O Judiciário, de aplicá-las em justiça. E o Executivo, de cumpri-las justamente. Não pode o Judiciário entender-se senhor supremo da justiça, afastando a seu livre-arbítrio a norma posta pelo Legislativo.
Compreendo que o afastamento da normativa legal por parte do Judiciario somente se pode dar no âmbito de uma justificação dogmática: controle difuso ou concentrado de constitucionalidade (relativo à lei ou ato normativo in totum ou a determinada interpretação do texto) ou mediante uma interpretação conforme a constituição. De resto, não cabe ao juiz insurgir-se contra literal disposição de lei. Se o texto é tal que a interpretação é unívoca, como no caso da norma que estabelece a pena mínima para determinado crime, o entendimento pessoal do julgador quanto a ser injusta a aplicação daquela pena, por ser, a seu ver, demasiado elevada, não tem o condão de impedir a aplicação da norma. O trabalho legislativo, justo ou não, tem sua função na normativa social, e o limite imposto ao juiz é a situação de praticamente total clareza do texto, aliado a sua plausibilidade constitucional, conforme entendimento da corte competente. Nesse caso, cabe ao juiz aplicar a lei, ainda que contra sua noção subjetiva de justiça.
É evidente, porém, que o juiz comprometido encontrará âmbito significativamente amplo para atuação em seu controle da “justiça” da norma legal. Se determinada interpretação da lei levar a situação factual de descompasso axiológico realtivamente a uma norma de processo ou de direito material, é possível ao juiz afastar a medida “injusta” sob o argumento de que fere, por exemplo, o princípio constitucional da “liberdarde” ou da “dignidade da pessoa humana”. Tais valores positivados constitucionalmente são formas dogmáticas de conteúdo variável, cuja manipulação é possível no caso concreto, sendo justificada a partir da boa argumentação jurídica. Se determinada interpretação da lei confere injustiça, pode o juiz declará-la inconstitucional, já que seu papel é aplicar a ordem jurídica e não meramente a “lei”, ao caso concreto. Vê-se, assim, que ao juiz há vasto campo para realização da “justiça” conforme sua noção subjetiva. O que não cabe, porém, é a par disso, sustentar ser ao juiz possível afastar norma constitucional ou mesmo norma infraconstitucional, de sentido unívoco, cuja constitucionalidade é evidente ou já foi decidida pelo órgão competente para a jurisdição constitucional, sob a alegação de que fere seu senso pessoal de justiça.
Afirma o autor que decidir subjetivamente e procurar argumentos técnicos para fundamentar a decisão é a regra no método judicial. Ocorre que tal postura não representa uma negação do normativismo ou uma desvirtuação da dogmática. Em verdade, aplicar a lei significa subsumir o fato a uma interpretação cabível do texto jurídico. Se é cabível determinada interpretação, ante as possibilidades que o texto suscita, é absolutamente aceitável que a decisão surja em momento anterior à verificação das fontes. Afinal, a preocupação principal do juiz tem de ser a solução justa do caso. Após produzir decisão que solucione a questão do modo mais justo possível, deve o mesmo verificar se tal solução encontra guarida no ordenamento jurídico, se dos textos jurídicos se pode extrair intepretação que coincida com a solução proposta. O caminho inverso, que, do ponto de vista da dogmática, pode parecer a regra, é, na realidade, a exceção: examinar as fontes, interpretá-las e aplicá-las ao caso concreto. De fato, a interpretação se dá à luz do caso concreto, com o sentido maior de implementar o ideal de justiça. As possibilidades do texto somente se evidenciam plenamente ante o problema material.
Coloca Bueno que a justiça não é de meios, mas de extremos. Consiste em livrar o oprimido das mãos do opressor. O juiz, então, não pode ser imparcial, dado que a imparcialidade favorece os fortes. É preciso tomar o lado do oprimido. Identificar o oprimido da relação e julgar em seu favor. É isso o que o juiz faz hoje, a saber, afirma quem está certo e quem está errado no conflito; mas o faz sob uma aparente neutralidade, por declarar quem tem razão à luz da lei.
De fato, tem razão Bueno em afirmar que não existe justiça imparcial. Se a lei é neutra, deixará vencer o mais forte, o que não é justo. Se a lei é comprometida com o mais forte, tal fato é duplamente injusto, pois deixará sem qualquer chance a parte mais fraca. O juiz que aplica uma lei neutra é injusto, pois deixará vencer o mais forte. O juiz que aplica uma lei injusta não é sequer neutro, é parcial e injusto. A lei somente será justa quando comprometida com a parte mais fraca, de modo a gerar equilíbrio na relação. Nesse caso, o juiz, para fazer justiça, pode aplicar a lei. Quando, porém, a lei for neutra ou injusta, o juiz, para fazer justiça, tem de afastá-la, pois não há justiça na neutralidade.
Não se discorda aqui do autor. Coloca-se, apenas, que a justiça é dever de todos, o que inclui o Legislativo. A identificação do opressor da relação e a defesa dos fracos tem de constar, também, da própria lei. E mais: do ponto de vista da técnica dogmática, é ao juiz vedado interferir no juízo de justiça do legislador, a saber, quando a interpretação for unívoca e quando o texto for constitucional.
Que há normas injustas no ordenamento não se discute. Que o papel do juiz é efetivar a justiça, na medida do possível, não se discute. Mas não se discute, também, que a função legislativa deve ter alguma serventia na ordem social. Se a lei é injusta, a rebelião popular e a oposição, até mesmo violenta, em desobediência civil, justificam-se do ponto de vista sociológico. A tarefa do juiz é técnica, em que pese busque implementar um valor social.
A despeito da legitimidade ou não de um teoria dogmática para o direito enquanto instrumento de controle social, é preciso ter em mente que um texto jurídico deve ter valor normativo. De fato, ainda que a estrutura tópica se tornasse a regra para a fundamentação da decisão judicial, a princípio, esta certamente tomaria como base a lei, enquanto sistemática vigente para a normatização da conduta. O decurso do tempo proporcionaria, provavelmente, a eliminação paulatina da lei como instrumento regulatório da conduta, dando azo à construção de um direito cada vez mais calcado no precedente.
Na estrutura contemporânea do direito, porém, em que pesem as considerações em contrário à legitimidade da lei e da dogmática, não cabe a atribuição ao Judiciário do poder supremo para ditar, livremente, o justo e o injusto. É preciso o freio do texto jurídico, sob a vigilância das partes e de seus advogados no caso concreto e da sociedade como um todo, com o apelo da mídia e dos setores mais aparelhados, quando da decisão de questões de cunho geral, como a interpretação de determinados princípios constitucionais.
A solução da problemática da justiça passa por um desenvolvimento nacional que requer investimentos sociais maciços, sobretudo em educação. Por certo, não é a simples mudança de perspectiva no tratamento de questões jurídicas que propiciará a implementação completa de uma perfeita justiça social.

CONCLUSÃO
A perspectiva dogmática que acompanhou o positivismo jurídico em seu desenvolvimento no último século tem sido duramente criticada como instrumento de dominação por parte do poder instituído. Nesse contexto, questiona-se a legitimidade da decisão jurídica pautada na lei, dado que, por vezes, se mostra comprometida com o interesse econômico e com os reais detentores do poder e pergunta-se sobre o papel do juiz ante a possibilidade de injustiça em face da interpretação literal do texto legal no caso concreto.
A lei, de fato, por vezes se mostra comprometida, materializando injustiças e perpetuando o status quo. A metodologia dogmática mascara a violência simbólica, atribuindo uma aparência de legitimidade à decisão, que parece fluir racionalmente a partir do sistema. Além de ocultar a violênica, a dogmática propicia, por vezes, soluções insatisfatórias, porquanto prega a aplicação de um direito materialmente injusto.
Nesse contexto, Amilton Bueno de Carvalho sustenta que deve o juiz, diante do caso concreto, afastar a aplicação da lei injusta. Demonstra que a lei é comprometida e que a justiça somente se alcança com o comprometimento com os oprimidos, pois, mesmo a lei neutra possibilita injustiça, ao chancelar o resultado natural do confronto entre fortes e fracos.
Sem discordar das colocações do autor, afirma-se, tão-somente, que a justiça é valor a ser perseguido por todos, não apenas pelo juiz. Partindo do pressuposto de que a ordem jurídica deve ter normatividade, sob pena de se constituir um Estado em insegurança jurídica, conclui-se que a função judicial, em que pese deva ter por norte a implementação da justiça, não pode, ao menos no sistema jurídico dogmático vigente, que se depreende a partir dos textos, afastar a aplicação de norma jurídica de interpretação unívoca e de constitucionalidade inquestionada.
A se recepcionar tal concepção, o ativismo judicial, na busca pela implementação da justiça, não restará suplantado: o controle difuso de constitucionalidade, aliado à possibilidade de se argumentar interpretação conforme os princípíos constitucionais, pode, na prática, atender a boa parte dos anseios por justiça. Uma solução plena, contudo, passa por esforço continuado em prol da educação popular e por alteração nas próprias bases teóricas do sistema, em verdadeira transformação do paradigma jurídico-normativo.


BIBLIOGRAFIA

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REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 27. ed. ajustada ao novo código civil. São Paulo: Saraiva, 2002.

NOTAS

[01] BILLIER, Jean-Cassien; MARYIOLI, Aglaé. História da Filosofia do Direito. Tradução de Maurício de Andrade. Barueri, SP: Manole, 2005, p. 46.
[02] DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito. 18. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 41.
[03] ADEODATO, João Maurício. Ética e retórica: para uma teoria da dogmática jurídica. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 151.
[04] CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 2000, p. 492.
[05] Idem, p. 493.
[06] Idem, p. 494, 495.
[07] FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2008, p. 328.
[08] Idem, p. 329
[09 ]REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 27. ed. ajustada ao novo código civil. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 375.
[10 ]Idem, p. 376-377.
[11] CARVALHO, Amilton Bueno de. Magistratura e Direito Alternativo. 7. ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2005, p. 24.
[12] BARBOSA, Júlio César Tadeu. O que é Justiça. 4. ed. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1984. Apud CARVALHO, Amilton Bueno de. Op. cit., p. 24.
[13 ]CARVALHO, Amilton Bueno de. Op. cit., p. 26.
[14] FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Op. cit., p. 18.
[15] FERRAZ JR., Tércio Sampio. Op. cit., p. 25.
[16] ADEODATO, João Maurício. Op. cit., p. 145-146.
[17] Idem.
[18] Idem, p. 148-150.
[19] ADEODATO, João Maurício. Op. cit., p. 151.
[20] ADEODATO, João Maurício. Op. cit., p. 156.
[21] Idem, p. 159-165.
[22] CARVALHO, Amilton Bueno de. Op. cit., p. 29.
[23] Idem, p. 31.