terça-feira, 11 de maio de 2010

Sobre o conceito de norma jurídica: um diálogo com Friedrich Müller para uma Teoria Estruturante do Direito

por Cláudio Ricardo Silva Lima Júnior


Sumário: 1. Introdução. 2. A compreensão tradicional da norma. 2.1. Hans Kelsen e a norma na Teoria Pura do Direito. 2.2. Carl Schmitt e a decisão como fonte formal da norma. 3. A norma jurídica na Teoria Estruturante do Direito. Conclusão. Referências.

1. INTRODUÇÃO

O conceito que se adota para norma jurídica indica a perspectiva filosófica de direito perseguida e possibilita uma construção teórica específica. A concepção tradicional da norma, pautada na dualidade kelseniana entre ser e dever-ser, não resolve a problemática cotidiana do modo de resolução de conflitos à luz do direito positivo, vez que não estabelece uma metodologia para a integração da norma por parte do aplicador. Em verdade, a sistemática lógico-dedutiva não é suficiente para a realização da “justiça do caso concreto” (Aristóteles), vez que as vicissitudes do caso prático exigem, no mais das vezes, para a verificação do sentido de justo, solução diversa do que se infere abstratamente da pura linguística textual.
Friedrich Müller, em sua “Teoria Estruturante do Direito”, sustenta que o tratamento da problemática da aplicação passa por uma redefinição do conceito de norma, de sorte a que leve em conta a materialidade inerente à realidade que circunda o direito no momento de sua integração e aplicação.
Nascido em Eggenfelden, Baviera, em 22 de janeiro de 1938, Müller é um jurista alemão, pesquisador e professor da Universidade de Heidelberg. Desenvolve pesquisas em teoria e linguagem do Direito. É um dos autores alemães contemporâneos mais originais, cujas investigações científicas perpassam o campo filosófico, bem como possuem reflexos diretos na teoria do direito e da Constituição.
“A Teoria Estruturante do Direito traduz justamente essa perspectiva, unindo esforços para a apresentação de uma nova reflexão acerca da dogmática, da metódica e da teoria da norma jurídica. Encontra-se inserida num contexto póspositivista e se propõe a tarefa de estruturar a ação jurídica a partir das exigências do Estado Social e Democrático de Direito. Referida teoria, apresenta uma nova perspectiva de aplicação do direito, em contraposição ao modelo positivista de atividade jurídica como subsunção de fatos a uma norma pré-estabelecida e pronta para ser aplicada, resumindo, dessa forma, o trabalho do operador do direito ao enquadramento do caso concreto ao texto legal. A teoria alemã propõe, portanto, uma mudança de paradigma, bem como a estruturação do direito a partir das exigências de um Estado Democrático. E, muito embora tenha sido construída em meados dos anos 60, continua inovadora e atual.”
O presente texto representa não um estudo pormenorizado dos postulados da Teoria Estruturante; diz respeito, tão-somente, a uma análise do conceito de norma jurídica proposto por Müller, revelado pelas críticas que realiza à compreensão tradicional da norma. Não se arvora a colocar-se como o estudo de sua completa teoria do Direito, mas apenas como a interpretação de um conceito por ela apontado, o qual, embora nuclear, não se confunde com a totalidade da tese.

2. A COMPREENSÃO TRADICIONAL DA NORMA

Tradicionalmente, a norma jurídica tem sido compreendida como o enunciado imperativo, de origem heterônoma e de cumprimento obrigatório, direcionado à conduta humana. O que se entende por “tradicional” aqui, tal como apontado por Müller, é a noção do positivismo normativista clássico, que teve como expoente a teoria pura de Kelsen.
Em “Tipos da Compreensão Tradicional da Norma” Müller constrói sua teoria a partir da análise das concepções de Kelsen e de Carl Schmitt. O positivismo kelseniano, na tentativa obcecada de produzir uma metodologia “pura” para a ciência do direito, pautou-se da distinção entre ser e dever-ser, produzindo um conceito de norma eminentemente formal, que considera o direito como dado preexistente à atividade do jurista. No outro extremo, Carl Schmitt, em sua teoria de linha decisionista, afirma ser a norma jurídica construída materialmente, a partir de conteúdos éticos e conceitos sociais metajurídicos. Enxerga a decisão judicial como o próprio direito positivo formal. Tanto em um como em outro caso, contudo, a “normatividade” da norma jurídica, a saber, seu potencial normativo plúrimo, é reduzida drasticamente em comparação com uma concepção de norma que atendesse aos reclamos de uma aplicabilidade metodicamente estabelecida do direito.
Com vistas ao clareamento da proposta de Müller, consideremos as referidas acepções ante o posicionamento da teoria estruturante.

2.1. Hans Kelsen e a norma na Teoria Pura do Direito
“Na transformação radical do direito à imagem da lógica formal, Kelsen levou ao ápice da abstração a separação e contraposição de norma e realidade, ser e dever-ser.”
Na perspectiva de construir uma ciência jurídica cuja metodologia não conhecesse a especulação sociológica ou ideológica, Kelsen lançou mão da teoria segundo a qual a norma jurídica é criação do intelecto humano situada em um plano lógico distinto da realidade imanente.
O ser (realidade da natureza) é o objeto de estudo das ciências causais, preocupadas com o fenômeno da causalidade (relação de causa e efeito entre os fatos da realidade imanente). O dever-ser (norma prescritiva) é o objeto de estudo das ciências normativas, que se ocupam dos fenômenos de imputação (relações entre a norma e as consequências previstas por ela previstas – sanções). Assim, a ciência do direito deve ocupar-se exclusivamente do dever-ser, da norma, não cabendo ao jurista, do ponto de vista metodológico, realizar especulações de cunho sociológico ou ideológico, quanto à viabilidade ou justiça da regra em análise. O objeto do estudo do direito deve ser a norma, seu conteúdo, tal como é posto pela lei e pela jurisprudência.
“Na afirmação evidente de que o objeto da ciência jurídica é o Direito, está contida a afirmação - menos evidente - de que são as normas jurídicas o objeto da ciência jurídica, e a conduta humana só o é na medida em que é determinada nas normas jurídicas como pressuposto ou conseqüência, ou - por outras palavras - na medida em que constitui conteúdo de normas jurídicas. Pelo que respeita à questão de saber se as relações inter-humanas são objeto da ciência jurídica, importa dizer que elas também só são objeto de um conhecimento jurídico enquanto relações jurídicas, isto é, como relações que são constituídas através de normas jurídicas.”
Como bem coloca Maria Helena Diniz,
“Kelsen, ao determinar que o direito deve ser visto como um sistema de normas, buscou limitar a ciência jurídica ao conhecimento e descrição daquelas, afirmando, decisivamente, que ela seria uma ciência normativa porque conhece as normas e não porque as estatui.”
Tal concepção coloca a norma (dever-ser) como algo totalmente distinto da realidade (ser), não devendo com ela manter qualquer relação. Ou seja, o conteúdo da norma pode ser qualquer um, não sendo necessário manter harmonia alguma com a realidade ôntica.
“Uma norma jurídica não vale porque tem um determinado conteúdo, quer dizer, porque o seu conteúdo pode ser deduzido pela vida de um raciocínio lógico do de uma norma fundamental pressuposta, mas porque é criada por uma forma determinada [...]. Por isso, e somente por isso, pertence ela à ordem jurídica cujas normas são criadas de conformidade com esta norma fundamental. Por isso, todo e qualquer conteúdo pode ser Direito. Não há qualquer conduta humana que, como tal, por força do seu conteúdo, esteja excluída de ser conteúdo de uma norma jurídica.”
A norma jurídica é, para Kelsen, uma prescrição abstrata de dever-ser que se desprende do ato de vontade que a coloca. O ato de vontade que põe a norma está no plano do ser, mas a norma em si não se identifica com o ato volitivo. A norma é o sentido objetivo do ato de vontade que a positiva, encontrando-se portanto, no plano do dever-ser. Mesmo quando o ato de vontade que a colocou não mais existe, a norma pode persistir, pois sua existência é diferente da do ato de vontade de que ela é o sentido objetivo.
“Norma” é o sentido de um ato através do qual uma conduta é prescrita, permitida ou, especialmente, facultada, no sentido de adjudicada à competência de alguém. Neste ponto importa salientar que a norma, como o sentido específico de um ato intencional dirigido à conduta de outrem, é qualquer coisa de diferente do ato de vontade cujo sentido ela constitui. Na verdade, a norma é um dever-ser e o ato de vontade de que ela constitui o sentido é um ser. [...] A primeira parte refere-se a um ser, o ser fático do ato de vontade; a segunda parte refere-se a um dever-ser, a uma norma como sentido do ato. [...] Ninguém pode negar que o enunciado: tal coisa é – ou seja, o enunciado através do qual descrevemos um ser fático – se distingue essencialmente do enunciado: algo deve ser – com o qual descrevemos uma norma” (Grifo nosso)
Nesse sentido, qualquer que seja o conteúdo da prescrição de dever-ser positivada será matéria informativa do conhecimento da norma jurídica. Esse aspecto da teoria kelseniana se deve à época de sua construção (primeira metade do século XX), que exigia uma concepção de direito capaz de abarcar as diferentes ideologias políticas em formação.
Para Kelsen, a positividade do direito decorre exclusivamente do fato de ter sido colocado em vigência por quem detenha autoridade. Visto que, ante as teorias do momento histórico, essa não era a única forma de se entender a relação entre norma e realidade estatal, Kelsen abrandou sua postura pela estrita distinção entre ser e dever-ser. O dever-ser normativo somente teria validade na medida em que ostentasse alguma eficácia, que se encontra no plano do ser.
Eficácia é a realização concreta, no plano dos fatos, do conteúdo prescrito pela norma. Traduz-se na observância da norma nos casos particulares, o que se verifica enquanto ser. Validade, por sua vez, é o caráter da norma quanto a estar apta a produzir efeitos. Diz-se que uma norma é válida quando sua criação levou em conta os critérios definidos pela norma básica. Para Kelsen, a validade está no plano do dever-ser, pois nada mais é do que uma norma que afirma ser possível a norma inferior produzir efeitos. A validade é uma prescrição de dever-ser, pois é a própria manifestação da norma que diz que deve haver eficácia para uma determinada norma (outra). Segundo Kelsen, um mínimo de eficácia (ser) é condição de validade da norma (dever-ser). De fato, uma norma desprovida de qualquer eficácia, como a que prescreva um comando de cumprimento impossível, não se pode considerar válida. Do mesmo modo, também sequer mereceria a denominação de “norma” uma regra que fosse cumprida espontaneamente na totalidade dos casos. Daí se infere, portanto, que, na doutrina de Kelsen, a norma tem de apresentar um mínimo de possibilidade de cumprimento, assim como de descumprimento.
Essa relação estabelecida por Kelsen entre o ser e o dever-ser, em franca contradição ao postulado básico de sua doutrina, foi objeto da crítica de Müller. Em seu dizer, o tratamento dado ao direito, no tange à definição de sua validade e vigência, “aparenta ser não científico”:
“A questão da vigência não pode ser formulada razoavelmente em termos puramente sociológicos, nem puramente normativistas, nem ainda por meio da distinção dessas áreas aparentemente autônomas. Também as operações não refletidas da práxis jurídica evidenciam sempre de novo que a vigência do direito é um fenômeno muito complexo, que o dever-ser não se refere apenas a questões materiais, mas que ele mesmo é materialmente caracterizado.”
De fato, segundo Müller, a vigência da norma é um fenômeno complexo que não se processa exclusivamente no plano do dever-ser. Em que pese a norma ser uma prescrição de dever-ser, estar ela apta a produzir efeitos parece ser uma constatação de fato (portanto, uma realidade ôntica). Se há uma norma superior prescrevendo que deve ter vigência uma norma inferior que atenda determinados requisitos, o preenchimento dos requisitos é um dado de fato para a hipótese normativa (fato condicionante) e a vigência é o fato que se deve seguir à incidência da norma superior (fato condicionado). Ademais, conforme demonstra a prática judiciária, elementos metajurídicos, materialmente referenciados, podem exigir “vigência” para a solução justa do caso concreto. Nesses casos, a norma (dever-ser) não apenas fará referência a conteúdos materiais, mas será ela mesma fruto de uma construção material.
Em sua teoria, Kelsen estabelece a distinção entre norma jurídica e proposição normativa. Na primeira edição de sua Teoria Pura do Direito, Kelsen diz que a norma não é um imperativo, mas um juízo hipotético. Seu intuito é reforçar a distinção entre ser e dever-ser, pois se a norma é um dever-ser, não pode ter por fundamento um ato psicológico de vontade, que é um ser. A norma jurídica, portanto, seria aquilo que posteriormente Kelsen chamará de “proposição jurídica”. Na segunda edição de sua teoria, contudo, Kelsen afirma que a norma jurídica é o imperativo elaborado pelas autoridades. Os enunciados descritivos de normas jurídicas são as “proposições jurídicas”, objeto da ciência do direito.
“Proposições jurídicas são juízos hipotéticos que enunciam ou traduzem que, de conformidade com o sentido de uma ordem jurídica - nacional ou internacional - dada ao conhecimento jurídico, sob certas condições ou pressupostos fixados por esse ordenamento, devem intervir certas conseqüências pelo mesmo ordenamento determinadas. As normas jurídicas, por seu lado, não são juízos, isto é, enunciados sobre um objeto dado ao conhecimento. Elas são antes, de acordo com o seu sentido, mandamentos e, como tais, comandos, imperativos. Mas não são apenas comandos, pois também são permissões e atribuições de poder ou competência. Em todo o caso, não são - como, por vezes, identificando Direito com ciência jurídica, se afirma - instruções (ensinamentos).”
Os “ensinamentos”, para usar a expressão de Kelsen, são precisamente as “proposições jurídicas” ou “proposições normativas”, cujo conjunto compõe a ciência do direito. A título de exemplo, da norma jurídica que prescreve “Matar alguém. Pena: reclusão de 6 a 20 anos” (art. 121, do Código Penal Brasileiro), a proposição normativa, na forma de juízo hipotético é “Se um sujeito tira dolosamente a vida de outro, estará submetido à sanção de reclusão de 6 a 20 anos”. O “ensinamento” é que a conduta “matar alguém” é reprovada pela ordem jurídica, a qual se volta contra o agente mediante a imposição de um resultado que não lhe é desejável, a saber, a pena privativa de liberdade pelo período de 6 a 20 anos, a ser prudentemente arbitrado ante as circunstâncias do fato. Para Kelsen, a ciência do direito deve ocupar-se da elaboração de “proposições jurídicas”, juízos hipotéticos descritivos de normas jurídicas. Em tais proposições, deve estar expurgada a pergunta pela correção do conteúdo da norma , a saber, a indagação quanto a sua viabilidade ou justiça.
Kelsen exclui do seu conceito de “norma” tudo o que é metajurídico, toda normatividade material passível de realização no caso concreto. A teoria é, assim, de uma “autossuficiência extremamente formalista” . Para Müller, tal posição adotada por Kelsen revela que o autor idealiza a lógica formal, indo ao extremo de considerá-la capaz de produzir uma objetividade máxima.
A distinção entre proposição jurídica e norma jurídica encontra equivalentes nos conceitos de “interpretação autêntica” e “interpretação não-autêntica”, colocados por Kelsen. Segundo o autor, interpretar “é uma operação mental que acompanha o processo da aplicação do Direito no seu progredir de um escalão superior para um escalão inferior.” Interpretação autêntica é a produzida pela jurisprudência, que integra o direito nas decisões que emana. Interpretação não-autêntica é a realizada pelas pessoas privadas, que necessitam compreender o direito com vistas à observância de suas prescrições, dentre os quais se destacam os que fazem a ciência jurídica.
Segundo Müller, a ausência de critérios de correção normativo-conteudísticos compromete a ciência jurídica conforme proposta por Kelsen. A impossibilidade de um teor material ou de uma vinculação das normas à matéria têm por fundamento uma “lógica imaginária”, que supervaloriza a capacidade de rendimento da objetividade jurídica e se engana quanto à função das prescrições legais. Para o autor,
“A norma não fornece mais do que um quadro para uma série de possibilidades decisórias logicamente equivalentes. Cada ato, que preenche esse quadro em qualquer sentido logicamente possível, está em conformidade com o direito, ficando eliminada aqui a pergunta pela correção quanto ao conteúdo. Conhecimento e decisão são também rigorosamente separados no âmbito da interpretação autêntica.”
Afirma Müller, assim, que, ante uma situação textual-normativa que possibilite múltiplas interpretações logicamente válidas, caberá ao aplicador, no âmbito da chamada “interpretação autêntica”, a tarefa de escolher dentre diversos resultados qual será o representativo do teor da norma. Introduzido estará, no âmbito da “norma” assim produzida, o elemento material-subjetivo da volição, da percepção individual, axiológica, de quem decide. Evidente, então, porque Müller considera ingênua a concepção revelada por Kelsen de uma contraposição abstrata entre sujeito e objeto do conhecimento, no campo das ciências humanas.
Kelsen rebate as afirmações na compreensão de que a interpretação autêntica nada mais é que ato de criação da norma, ato de vontade semelhante à produção legislativa, que positiva a norma na forma de decisão. Se valores subjetivos permeiam o decisum, trata-se de mera questão de política jurídica, a saber, a quem se determinou competência para definir o que e até que ponto, em termos de matéria legislativa.
Müller, nesse ponto, sustenta que Kelsen cai em contradição: afirma que o juiz cria norma (interpretação autêntica, que é um dever-ser a partir do ser textual do imperativo jurídico), defendo ao mesmo tempo, contudo, que o juiz “aplica” o direito. Não entende Müller como é possível a “aplicação” da lei “por meio de atos de vontade de teor juspolítico.” É possível, entretanto, que Kelsen faça referência a uma dupla competência por parte de quem decide: uma tarefa de criação integradora do direito e uma posterior subsunção do fato à norma, consistente em uma normatividade criativa seguida de uma aplicação do direito. É o que se afirma na “teoria da moldura”:
“Em todos estes casos de indeterminação, intencional ou não, do escalão inferior, oferecem-se várias possibilidades à aplicação jurídica. O ato jurídico que efetiva ou executa a norma pode ser conformado por maneira a corresponder a uma ou outra das várias significações verbais da mesma norma, por maneira a corresponder à vontade do legislador - a determinar por qualquer forma que seja - ou, então, à expressão por ele escolhida, por forma a corresponder a uma ou a outra das duas normas que se contradizem ou por forma a decidir como se as duas normas em contradição se anulassem mutuamente. O Direito a aplicar forma, em todas estas hipóteses, uma moldura dentro da qual existem várias possibilidades de aplicação, pelo que é conforme ao Direito todo ato que se mantenha dentro deste quadro ou moldura, que preencha esta moldura em qualquer sentido possível.” (Grifo nosso)
É evidente, contudo, que uma explicação como tal não satisfaz aos interesses sociais do ponto de vista da segurança jurídica.
O autor da teoria estruturante coloca que a decisão volitiva tem como elementos aspectos da justiça, normas morais e juízos de valor social – disposições sobre cuja vigência nada se pode dizer do ponto de vista do direito positivo. Desse modo, no âmbito da interpretação autêntica, há que se considerar a influência de fatores metajurídicos, de uma normatividade de cunho material a ser inserida na decisão do caso concreto.
Em razão disso, Kelsen considera a decisão judicial que tem por base normas de sentido não-unívoco ato materialmente legislativo; assumir tal postura é adotar solução simplória para o problema, uma que não satisfaz à pretensão democrática de segurança jurídica e que vai de encontro à noção de Estado de Direito e ao postulado básico da separação dos Poderes. Em vez de render-se a uma “ditadura dos juízes” em prol de uma idealizada “pureza metódica” para a ciência do direito, faz-se necessária uma reformulação do conceito de norma jurídica, de sorte a abranger, numa perspectiva totalizante, as estruturas do pensamento jurídico que efetivamente integram a normatização da conduta. Tal perspectiva proporcionaria o desenvolvimento de uma metodologia de construção da decisão judicial, passível de correção à luz das estruturas efetivas da norma jurídica. Como ato jurídico que é, a decisão estaria sujeita ao controle social, em uma verificação sistemática da adequação da interpretação e da corretude lógica da argumentação.
Coloca Müller, assim, que Kelsen em nada contribui para uma teoria da interpretação jurídica. Ainda que diante da plurivocidade de sentidos, a teoria pura mantém a norma com o mesmo vazio de conteúdo. Como os critérios de aferição da decisão volitiva encontram-se cada vez mais na direção metajurídica , seu estudo foge ao escopo da teoria pura do direito, que silencia quanto ao modo de sua realização.
“Com vistas ao caso individual prático, a teoria pura do direito fica devendo todo e qualquer auxílio para saber como determinar o quadro em si logicamente equivalente da ordem aplicanda da norma. [...] Como ciência no sentido de Kelsen, a teoria geral do direito não pretende contribuir em nada para a concretização de um determinado ordenamento jurídico como ordenamento com determinados conteúdos.”
De fato, para além da interessante proposta de criar uma dogmática jurídica racional, pautada na pureza metódica, a teoria pura do direito acaba em uma tentativa frustrada de racionalizar conteúdos normativos. Se a ciência do direito é alheia ao substrato material, também é incompetente para racionalizá-lo. Sendo “pura”, a ciência do direito não pode ser normativa; se “normativa”, não pode ser pura, pois, para ser “ciência”, teria de produzir um resultado racional – o que, no campo da análise de um objeto normativo, somente se pode dar mediante um juízo de conformidade com tudo quanto interessa à norma na sua existência prática: valores sociais, normas morais e, sobretudo, o sentido comunitário de justiça.
Como afirma Müller, Kelsen constrói sua teoria “às expensas da peculiaridade da norma jurídica e da ciência do direito” , os quais, como fenômenos sociais da maior singularidade, são dotados de complexidade absurda.

2.2. Carl Schmitt e a decisão como fonte formal da norma

Carl Schmitt (Plettenberg, 11 de julho de 1888 — 7 de abril de 1985) foi um jurista, filósofo político e professor universitário alemão. É considerado um dos mais significativos e mais controversos especialistas em direito constitucional e internacional da Alemanha do século XX. A sua carreira foi manchada pela proximidade com o regime nacional-socialista. O seu pensamento era firmemente enraizado na fé católica, tendo girado em torno das questões do poder, da violência, bem como da materialização dos direitos. Em geral, Schmitt é lembrado pelo seu pensamento político ou, no universo jurídico, pelos seus estudos de direito constitucional. Entretanto, sua teoria geral do direito, em particular no que tange ao seu conceito de norma jurídica, foi objeto de análise de Müller para a construção de sua teoria estruturante do direito.
Tal como na política, Schmitt sustenta no Direito a teoria decisionista.
“A teoria do decisionismo, pela abordagem de Schmitt, filia-se a toda uma tradição que se pode perceber desde Hobbes até Donoso Cortés. Para o que diz respeito ao momento especificamente jurídico (ou seja, para a teoria geral do direito), as primeiras obras de Schmitt situam o fenômeno jurídico não na norma e seus comandos imperativos, mas na decisão, fazendo da sentença um elemento de importância muito mais relevante ao direito do que a legislação. Para a teoria política, o decisionismo revelará o encaminhamento realista da organização política européia, que conheceu momentos de neutralização burguesa no século XIX mas que, por meio do nazismo, do fascismo e da União Soviética, viu crescer novamente, em pleno século XX, um pensamento de tipo não liberal.”
O decisionismo é, assim, na Teoria Geral do Direito, a postura que situa o fenômeno jurídico não na norma, mas na decisão, concebendo, por assim dizer, a decisão judicial como a própria expressão do direito. O decisionista encara o problema da decisão como o problema da forma jurídica.
Segundo Müller, diferentemente de Kelsen, Schmitt se preocupa com a correção do conteúdo da norma. Apesar disso, sua teoria aponta, como em Kelsen, para uma compreensão reducionista da norma. Das premissas normativas não se deriva necessariamente a norma jurídica concretizada; existe, portanto, uma decisão jurídica individual que escolhe o conteúdo normativo apropriado, o que expõe o conceito de norma jurídica de Schmitt como indiferente ao conteúdo.
Em Schmitt, a decisão se “descola” dos argumentos de sua fundamentação e do teor da prescrição jurídica subjacente, constituindo um mandamento materialmente determinado, caracterizado justo na sua aplicação decididora. Vale, assim, como norma jurídica, que existe apenas em função da “aplicação”.
Müller introduz uma crítica interessante. Em que pese Schmitt entender que a compreensão da norma, restrita ao imperativo isolado nos moldes do positivismo, é insuficiente, sua redução ao conceito de decisão conduz a uma superação total da normatividade jurídica, que se assemelha à limitação da normatividade imposta pela teoria pura do direito.
Entenda-se por “normatividade”, aqui, a possibilidade de geração plurívoca de comandos prescritivos a partir da linguagem do texto jurídico, a qual é limitada, no normativismo kelseniano, pela noção de “interpretação autêntica” e no decisionismo de Carl Schmitt pela idéia de decisão enquanto “personificação” da norma.
Ironicamente, o positivismo extremado de Kelsen e o antipositivismo extremado de Schmitt levam, do ponto de vista da norma jurídica, ao mesmo resultado: a decisão encerra o “verdadeiro” conteúdo da norma – em Kelsen, porque apresenta a “interpretação autêntica” do texto normativo e em Schmitt porque o significante linguístico não é suficiente para produzir a normatividade. Em ambos os casos, contudo, teores materiais permanecem de fora do conceito de norma – o que, segundo Müller, acaba por não resolver a questão da metodologia para a construção de decisões controláveis juridicamente.

3. A NORMA JURÍDICA NA TEORIA ESTRUTURANTE DO DIREITO

A ideologia positivista da “aplicação” desconsidera o fato de que, para fazer justiça no caso concreto, o juiz deve incorporar a situação concreta do caso no fundamento de sua sentença, especialmente nos caos em que do ordenamento seja possível inferir mais de uma solução logicamente aceitável ou quando haja lacuna normativa para o tratamento do fato.
Segundo Müller, a noção de “aplicação” tomada pelo positivismo falha em razão do conceito de norma jurídica que adota. Para o autor,
“Justo porque as normas jurídicas não existem simplesmente prontas, não estão disponíveis para a aplicação técnica; justo porque a estrutura da matéria e do problema, também do caso individual, faz parte dos elementos da sentença jurídica, a norma não é supérflua, mas necessária como idéia-diretriz materialmente caracterizada, normativamente estabilizadora. Do contrário, o discurso sobre o “direito” degenera em jogo nominalista de palavras.”
De fato, a valer o conceito decisionista de Schmitt, “direito” (subjetivo) passaria a ser mera ilusão. Uma vez que a norma seria a decisão construída no caso concreto, não haveria absolutamente nada que estabelecesse um limite jurídico ao resultado do processo decisório. Em verdade, porém, a norma se faz necessária por apresentar-se como diretriz material para a solução do problema e como ponto de partida para a decisão jurídica tomada em virtude das peculiaridades do caso concreto. Vale, ainda, como um freio ou limite à decisão judicial, que se terá de operar dentro dos moldes jurídicos propostos pela norma.
A aplicabilidade da norma, portanto, depende da estrutura que assume o conceito que para ela é adotado. No sentido da teoria estruturante, é preciso conceber a norma decisória judicial como concretização de um enunciado ou norma jurídica. Tal norma tem de ser entendida como composta por matéria social, por “normas socialmente vigentes, que devam ser universalizadas ou unificadas.”
Entretanto, segundo Müller, uma teoria exclusivamente sociológica do direito também não satisfaria a pretensão por uma hermenêutica jurídica racional. Uma teoria assim concebida pesquisaria o lugar social do direito, não sua estrutura individual com vistas à implementação da normatividade jurídica. Embora seja impossível interpretar e aplicar o direito com métodos unicamente jurídicos, uma perspectiva que tome o sentido da ordem jurídica a partir de ordens extrajurídicas tem serventia questionável do ponto de vista da realização científica do direito.
Entre cientificidade e verossimilhança, contudo, uma teoria do direito que se proponha prática tem de voltar-se mais para esta do que para aquela. Sustenta, Müller, porém, que os dois conceitos não são inconciliáveis.
“A questão é: até que ponto a interpretação e aplicação do direito podem no caso individual apoiar-se na facticidade social e em resultados da pesquisa sociológica, sem errar o alvo da normatividade do direito, deve, porém, ser vista como problema de metodologia, a saber, de metodologia jurídica.”
Afirma o autor, assim, que é preciso estabelecer uma metodologia científica para a integração e aplicação do direito a partir de elementos materiais metajurídicos, metódica essa que seja capaz de materializar a justiça no caso concreto. Proposta assim não foi suficientemente defendida pelo positivismo clássico, que enxerga a norma como dado perfeito e acabado, por obra do legislador ou do juiz, conforme se entenda como “interpretação autêntica” ou como norma jurídica propriamente dita.
Nessa perspectiva, a ciência jurídica teria relação funcional com construções conceituais anteriores, resultado de outras ciências ou de natureza não científica. O produto da ciência do direito não seria, então, a descrição ou compreensão de normas, mas sua criação, em positivação normativa.
Por essa razão, segundo Müller, o método sociológico não se prestaria à ciência jurídica. A “vigência” normativa não se obtém a partir de uma descoberta sociológica, mas de uma produção direcionada no sentido do fazer justiça. A função social de uma norma ou instituição não vale como fundamento jurídico para um direito subjetivo.
Nesse sentido, necessário comentar a crítica posta por Müller à proposta metodológica de Rudolf Smend. Em sua Verfassung und Verfassungsrecht, Smend sugere a elaboração metódica de verdadeiro catálogo dos conteúdos sociológicos e teleológicos das normas jurídicas. A despeito do viabilidade teórica do método, sua concretização mostra-se problemática, vez que, apesar dos avanços na teoria material do Estado e da constituição, pouco se tem alcançado como resultado real da teoria – provavelmente por uma impossibilidade fática de cumprir a tarefa de elencar, em rol taxativo, a totalidade das valorações sociais possíveis ante o problema lançado por uma norma. A par disso, Smend não resolve a relação entre norma e realidade, permanecendo por definir a norma nos termos tradicionais da filosofia do direito, sem adentrar à estrutura de sua normatividade.
Na teoria estruturante de Müller, o método jurídico parte da dominação do positivismo jurídico, no sentido da doutrina positivista da “aplicação”, mas, ao mesmo tempo, julga necessário o recurso a conteúdos metajurídicos do direito. Os instrumentos que desenvolve dão conta de um “detalhamento hermenêutico”, capaz de propiciar uma regulação da política jurídica, de sorte a proporcionar uma prestação de serviços esclarecidos em seus detalhes.
“A teoria alemã propõe que a norma jurídica seja criada em face do caso concreto, isto é, ela não preexiste nos códigos. O que se pode subtrair das codificações e das constituições, de maneira geral, são apenas textos de norma, que devem, através de um trabalho de concretização (Rechtsarbeit), ser transformados em normas jurídicas. Desse modo, podemos concluir que a norma jurídica é o resultado de um trabalho de construção ou de concretização”
A teoria estruturante, assim, favorece a uma teoria da interpretação, colocando no conceito de norma tudo quanto possibilite a valoração necessária ao implemento da decisão.
“A TED considera como normativo tudo o que confere direção ao processo decisório, dividindo-o em dois grupos: 1. Dados de linguagem: textos de normas (primária) - Sprachdaten. 2. Dados Reais: ou dados secundariamente veiculados pela linguagem sobre nexos da realidade – Realdaten. A estrutura da norma indica a coesão entre os elementos conceituais de uma norma (programa normativo – campo normativo); e não as relações entre pontos de referência recebidos da teoria jurídica tradicional (ser e dever-ser, condição legal e conseqüência jurídica, norma e circunstâncias de fato. A normatividade é qualidade dinâmica da norma, cuja estrutura é composta pelo Programa de Norma (resultado da interpretação do texto da norma, formado à partir de dados primaciais de linguagem) mais dados reais, delimitando o denominado âmbito da norma (conceito a ser determinado estruturalmente e que se refere às partes integrantes materiais da normatividade que são co-constitutivas da norma). O âmbito da norma é formado a partir de uma perspectiva valorante do programa da norma.”
A metodologia de Müller, assim, tem por função a estruturação do processo de produção das normas. Avaliando, identificando, classificando e organizando os elementos de concretização, de acordo com critérios de preferência, e em função das exigências normativas de Estado de Direito, tal como a segurança jurídica, a norma é estruturada em uma atividade verdadeiramente criativa. O método, portanto, busca mitigar a distância entre a teoria e o texto da norma e a norma jurídica propriamente dita.
A partir dos elementos de circunstâncias de fato, o jurista seleciona hipóteses sobre o texto da norma em meio ao conjunto de textos de normas publicados nos códigos legais, os quais se encontram no âmbito material (dados empíricos conexos à norma). Apenas depois de um tratamento significativo de todos os dados de linguagem do texto da norma, o jurista seleciona, com ajuda do programa da norma, o conjunto parcial de nexos empíricos, aos quais cabe um significado normativo e que constituem, dessa forma, o âmbito da norma. Como resultado, tem-se a norma jurídica composta pelo programa da norma somado ao âmbito da norma ou norma jurídica individualizada em norma de decisão, produzida, desta feita, pelo aplicador do direito.
A proposta de Müller, assim, nos disponibiliza uma teoria dinâmica do direito suficientemente oposta à que o positivismo nos apresenta. O modelo de normatividade estática, previamente dada e pronta para ser aplicada, toma a norma como não compreendida em um processo que deve ser estruturado metodicamente a partir das exigências do Estado de Direito. Essa postura retira a parcela criativa que desenvolve, enriquece e aperfeiçoa o direito.
A teoria estruturante, assim, coloca-se no contexto póspositivista como uma alternativa para a racionalização do processo decisório. Por conceber a norma em sua estrutura normativa, imbuída do conteúdo material metajurídico que fundamenta, na prática as decisões jurídicas, aproxima-se da realidade e possibilita um estudo de maior valia para a correção prática do direito.

CONCLUSÃO

O positivismo tradicional concebe a norma jurídica como dado perfeito e acabado, posto pelo legislador à aplicação por parte de quem decide um caso concreto. A maior relativização dessa concepção se dá no âmbito da noção de interpretação, que para Kelsen, pode ser vista como um processo integrador do direito, mas apenas para o aplicador, que, enquanto autoridade, representa ainda a fonte geradora do direito.
A teoria estruturante do direito representa alternativa à concepção positivista de norma jurídica, procurando levar em consideração os elementos que efetivamente contribuem para a formulação da decisão. O idealizador da proposta, Friedrich Müler, apresenta-a em “Tipos da compreensão tradicional da norma” sob a forma de comentários às teorias de Hans Kelsen e Carl Schmitt.
Kelsen constrói sua teoria a partir do dualismo entre ser e dever-ser. Com vistas a uma metodologia jurídica “pura”, livre de questionamentos de cunho sociológico ou ideológico, Kelsen toma a norma como pura prescrição de dever-ser, que não necessita manter qualquer relação com a realidade material (ser). O objeto da ciência jurídica deve ser o conhecimento da norma, que se realiza mediante a proposição de enunciados normativos a partir do imperativo normativo colocado pela autoridade. Nessa doutrina, a norma jurídica pode ostentar qualquer conteúdo axiológico, porquanto desvinculada da realidade ôntica.
Na visão kelseniana, a norma jurídica se desprende do ato de vontade que a coloca. O ato de vontade que põe a norma está no plano do ser, mas a norma em si não se identifica com o ato volitivo. A norma é o sentido objetivo do ato de vontade que a positiva, encontrando-se portanto, no plano do dever-ser.
Müller critica o conceito de norma da teoria pura em pelo menos dois sentidos:
1) por não se sustentar segundo o modelo do estrito dever-ser, uma vez que, segundo o próprio Kelsen, a vigência da norma (dever-ser) tem como condição fundamental um mínimo de eficácia (ser), o que estabelece um embasamento da norma em elementos de ordem material;
2) por excluir do conceito de “norma” tudo o que é metajurídico, toda normatividade material passível de realização no caso concreto; em verdadeiro idealismo quanto às possibilidades de objetivação da norma jurídica.
Entendendo que a decisão volitiva tem como elementos aspectos da justiça, normas morais e juízos de valor social, o autor da teoria estruturante julga necessária uma concepção de norma diversa, capaz de integrar o que efetivamente influencia na realização concreta do direito. Como a teoria pura do direito não admite no conceito de norma nada que apresente caráter metajurídico, coloca Müller que Kelsen em nada contribui para uma teoria da interpretação jurídica. Ainda que diante da plurivocidade de sentidos, a teoria pura mantém a norma com o mesmo vazio de conteúdo. Como os critérios de aferição da decisão volitiva encontram-se cada vez mais na direção metajurídica, seu estudo foge ao escopo da teoria pura do direito, que silencia quanto ao modo de sua realização.
Carl Schmitt, por sua vez, representa o extremo oposto do positivismo extremado da teoria pura. Sua postura decisionista coloca no centro da discussão sobre o direito a decisão jurídica, que para ele, mostra-se como a própria manifestação do direito formal. Diferentemente de Kelsen, Schmitt entende que a ciência jurídica deve preocupar-se com a problemática da correção do conteúdo, mas, por considerar a decisão a própria expressão do direito, seu conceito de norma jurídica, como em Kelsen, é indiferente ao conteúdo.
Coloca Müller que, por reduzir a noção de norma ao conceito de decisão, Schmitt conduz à completa superação da normatividade jurídica, em nível que se assemelha à limitação da normatividade imposta pela teoria pura de Kelsen.
Em ambos os casos, conteúdos materiais permanecem de fora do conceito de norma – o que, segundo Müller, acaba por não resolver a questão da metodologia para a construção de decisões controláveis racionalmente.
Müller sustenta, assim, a necessidade de criação de um conceito de norma jurídica que adentre a sua estrutura, levando em conta os elementos que efetivamente influenciam na formulação da decisão. A análise de “dados da linguagem”, resultado da interpretação de dados linguísticos primaciais – “programa da norma” - associados a “dados reais”, elementos metajurídicos conexos à norma, proporciona alcançar o “programa da norma”, no dizer de Müller. Um perspectiva valorante do programa da norma torna capaz a definição do âmbito de aplicação da norma.
Situada no contexto póspositivista, a teoria estruturante de Müller favorece uma compreensão mais verossímil do fenômeno prático da aplicação do direito. Considera a norma não apenas um dever-ser, mas um fenômeno composto de linguagem e fatos, colocando o ser e o dever-ser como elementos complementares, cujas relações os limitam entre si, e não como elementos reciprocamente excludentes . A afirmação de que não existe norma jurídica antes do caso concreto erige a teoria de Müller ao movimento pósmoderno. Tomando o direito, do ponto de vista cognitivo, como sistema alopoiético, vez que pressupõe a interação do ordenamento com o meio exterior, admite a evolução e reconstrução do direito na praxis cotidiana. O modelo que coloca, além de possibilitar uma análise mais acurada da efetiva dinâmica verificada no direito, possibilita o desenvolvimento de uma metodologia racional da construção jurídica – o que interessa ao desenvolvimento da ciência e à prudência do controle democrático da atuação da autoridade.

NOTAS

1. FRIEDRICH MÜLLER. In: WIKIPEDIA, a enciclopédia livre. Disponível em: Acesso em: 02 mai. 2010, 07:50:02
2.CONTE, Christiany Pegorari. A aplicabilidade da teoria estruturante no direito contemporâneo face à crise do positivismo clássico. In: ANAIS DO XVII CONGRESSO NACIONAL DO CONPEDI. Brasília, nov. 2008. Disponível em: Acesso em: 08 mai. 2010, 07:22:35
3. MÜLLER, Friedrich. Teoria Estruturante do Direito. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p.25.
4. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 50.
5. DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito. 18. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 126.
6. KELSEN, Hans. Op. cit., p. 139.
7. Idem, 1999, p. 4.
8. MÜLLER, Friedrich. Op. cit., p. 25.
9. MÜLLER, Friedrich. Op. cit., p. 25.
10. KELSEN, Hans. Op. cit., p. 51.
11. MÜLLER, Friedrich. Op. cit., p. 25.
12. Idem, p. 26.
13. KELSEN, Hans. Op. cit., p. 245.
14. MÜLLER, Friedrich. Op. cit., p. 27.
15. Idem, p. 27.
16. KELSEN, Hans. Op. cit., p. 247.
17. MÜLLER, Friedrich. Op. cit., p. 29.
18. Idem, p. 29.
19. Idem.
20. MASCARO, Alysson Leandro. Nos extremos do direito (Schmitt e Pachukanis). In: LUA NOVA - REVISTA DE CULTURA E POLÍTICA. São Paulo, n. 57, 2002. Disponível em: Acesso em: 07 mai. 2010, 08:22:50
21. MÜLLER, Friedrich. Op. cit., p. 30.
22. MÜLLER, Friedrich. Op. cit., p. 33.
23. Idem.
24. Idem, p. 35.
25. CONTE, Christiany Pegorari. Op. cit., 2008.
26. Idem.
27. CONTE, Christiany Pegorari. Op. cit., 2008.
28. Idem.
29. CONTE, Christiany Pegorari. Op. cit., 2008.


REFERÊNCIAS

CONTE, Christiany Pegorari. A aplicabilidade da teoria estruturante no direito contemporâneo face à crise do positivismo clássico. In: ANAIS DO XVII CONGRESSO NACIONAL DO CONPEDI. Brasília, nov. 2008. Disponível em:
Acesso em: 08 mai. 2010, 07:22:35.

DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito. 18. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006.

FRIEDRICH MÜLLER. In: WIKIPEDIA, a enciclopédia livre. Disponível em: Acesso em: 02 mai. 2010, 07:50:02.

KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

MASCARO, Alysson Leandro. Nos extremos do direito (Schmitt e Pachukanis). In: LUA NOVA - REVISTA DE CULTURA E POLÍTICA. São Paulo, n. 57, 2002. Disponível em: script=sci_arttext> Acesso em: 07 mai. 2010, 08:22:50.

MÜLLER, Friedrich. Teoria Estruturante do Direito. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009.

quinta-feira, 6 de maio de 2010

Teoria da Argumentação: a proposta de Robert Alexy para a fundamentação racional da decisão jurídica

por Cláudio Ricardo Silva Lima Júnior

Sumário: 1. Introdução. 2. O conteúdo axiológico da decisão jurídica. 3. Tratamento da problemática do valor na decisão. 3.1. Fundamentação em convicções fáticas. 3.2. Recurso ao sistema de valores da ordem jurídica. 3.3. Princípios suprapositivos. 3.4. Conhecimentos empíricos como fundamento da decisão. 4. Teoria do Discurso Racional. 4.1. Tópica e Teoria da Argumentação. 4.2. A importância de uma metodologia para o discurso racional. Conclusão. Referências.


1. INTRODUÇÃO
Ante a concepção construtivista moderna, a atividade jurídica contemporânea invariavelmente passa pelo esforço argumentativo. Com efeito, doutrina respeitável considera, com acerto, ser o Direito não “ciência”, mas “prudência”, na perspectiva de que o jurista não desvenda a norma jurídica, como se houvesse supostamente encerrada no ordenamento, mas a produz, legitimando o enunciado normativo na proporção da força argumentativa do discurso jurídico.
Se a premissa é verdadeira para a mera emanação opinativa quanto à norma, quanto mais se verifica no ato decisório que põe fim a um conflito, cujo conteúdo é materialmente norma no caso concreto. De fato, a decisão jurídica de fundamento defeituoso carece de legitimidade, ao passo que a desprovida de motivação sequer validade ostenta. Somente essa constatação já justificaria a preocupação teórica em elaborar um arcabouço metodológico para o trabalho argumentativo.
Ocorre que razões outras fazem necessária a investigação. Consoante Robert Alexy, “em um grande número de casos, a decisão jurídica que põe fim a uma disputa judicial, expressa em um enunciado normativo singular, não se segue logicamente das formulações das normas jurídicas vigentes.” Significa dizer: a par das decisões que têm por fundamento claro dispositivo legal, verifica-se, não raramente, decidendum cuja ratio se encontra externa ao ordenamento jurídico.
Não é difícil vislumbrar as razões. A imprecisão terminológica nos textos jurídicos pode conduzir a lacuna normativa material, em decorrência da obscuridade das fontes formais; antinomias não aparentes vêm a produzir efetivo impasse jurídico; situações factuais especificas, ainda não reguladas, reclamam solução judicial praeter legem; e o anseio pela efetivação da justiça no caso concreto não raro conduz, na prática forense, à solução judicial contrária à literalidade da norma. Em todos esses casos, a decisão jurídica não decorrerá das normas vigentes ou dos axiomas empíricos aplicáveis. A força argumentativa é o que indicará a legitimidade da decisão. Uma metodologia para apreciar a racionalidade do argumento decisório, portanto, coloca-se como verdadeiro instrumento de controle da atividade estatal, além de conferir precisão científica à atividade jurídica, que se vale do discurso prático.
A construção de tal metodologia, conforme proposta por Robert Alexy, é o objeto deste estudo.
Nascido em Oldenburg, Alemanha, em 9 de setembro de 1945, Alexy é um dos mais influentes jusfilósofos alemães da contemporaneidade. Graduou-se em Direito e Filosofia pela Universidade de Göttingen, tendo recebido o título de PhD em 1976, com a dissertação Uma Teoria da Argumentação Jurídica, e a habilitação em 1984, com a Teoria dos Direitos Fundamentais – trabalhos que se tornaram dois clássicos da Filosofia e Teoria do Direito. A definição de direito de Alexy se assemelha a uma mistura do normativismo de Hans Kelsen com o jusnaturalismo de Gustav Radbruch. A teoria da argumentação, contudo, colocou-o bem próximo do interpretativismo jurídico.
Valendo-se dos avanços da Filosofia da Linguagem do século XX, expressa nos trabalhos de Wittengenstein, Frege, Austin, Hare, Toulmin, Viehweg, Perelman, Apel e, dentre outros, Habermas, Alexy sustenta ser possível elaborar uma metodologia composta por regras ou procedimentos que permitam a transição de um conjunto de normas e axiomas válidos para uma decisão juridicamente relevante, ainda que esta não decorra logicamente do ordenamento.
Considerando apenas superficialmente o mecanismo de transição propriamente dito, este estudo analisa as questões envolvidas na concepção da proposta, elucidativas de uma série de asserções cruciais para a Teoria Geral do Direito.
2. O CONTEÚDO AXIOLÓGICO DA DECISÃO JURÍDICA
A primeira questão pontuada por Alexy diz respeito às valorações presentes na fundamentação da decisão jurídica. Quando os “cânones de interpretação” não são suficientes para que do ordenamento decorra logicamente a decisão, sua fundamentação conterá elementos valorativos.
“Cânones de interpretação” são regras para compreensão e aplicação do direito. Segundo a definição exegética,
“Interpretar é explicar, esclarecer, dar o sentido de vocábulo, atitude ou gesto; reproduzir por outras palavras um pensamento exteriorizado; mostrar o sentido verdadeiro de uma expressão; extrair de frase, sentença ou norma tudo o que na mesma se contém.”
Para Tércio Samapaio, contudo, a doutrina hermenêutica é um discurso do poder de violência simbólica, que não se constrói como teoria descritiva, explicando o sentido do direito, mas se expressa na forma de teoria dogmática, indicativa de como deve ser o direito interpretado.
“O consenso ou a busca do sentido funcional exige respaldo social. A justiça ou a busca do sentido justo exige que se atinjam os objetivos axiológicos do direito. Em função deles, podemos falar em métodos lógico-sistemático, sociológico e histórico e teleológico-axiológico.
Como, além disso, o poder de violência simbólica se exerce por paráfrases que acrescem a força normativa das relações de autoridade, liderança ou reputação conforme decodificações consoante um código forte ou código fraco, é possível, didaticamente, distinguir tipos básicos de interpretação: a especificadora, a restritiva e a extensiva.”
O que Tércio denomina “código forte” e “código fraco” correspondem à forma como a norma jurídica é apresentada pelo legislador ao destinatário. O código forte consiste na disposição textual da norma de forma restritiva, fechada; o legislador dá à norma um sentido preciso, o que engessa a ação do destinatário, o qual tem a tendência – dependendo do caso concreto – de buscar uma decodificação da norma em um código fraco, que favorece maior liberdade de ação e se traduz por meio de estratégias que visam a alargar o sentido dos termos prescritos na norma. O oposto também ocorre: uma norma pode ser disposta com base num código fraco, de forma flexível, dada a ambigüidade e a vagueza dos signos insertos no texto normativo, o que faz com que o receptor fique imobilizado por todos os lados, por não saber qual atitude tomar. Nesse caso, a tendência é a de que decodifique a norma com base num código forte, de forma a precisar significados .
Segundo Larenz, são cinco os critérios de interpretação: a busca pelo sentido literal, o significado da lei segundo o contexto, as intenções e metas normativas do legislador (mens legislatoris, a “vontade do legislador”), os critérios objetivos e finalísticos da norma (mens legis, “a vontade da lei”) e a interpratação conforme a constituição.
As regras de interpretação falham na tarefa de produzir critérios lógicos de formulação da decisão jurídica basicamente por duas razões:
1) Ainda não se chegou a um consenso quanto à ordem hierárquica dos cânones interpretativos. Em verdade, nem mesmo sua quantidade é definida. Como cânones diferentes podem conduzir a resultados distintos, não se pode considerá-los critério seguro para a dedução puramente lógica da decisão jurídica.
2) A imprecisão na definição dos cânones os coloca como de pouca utilidade à construção avalorativa da decisão. As regras interpretativas não raro são vagas e ambíguas, o que deixa margem para a introdução de critérios subjetivos na fundamentação.
Diante disso, alternativa que já se propôs foi, em lugar de se buscar regras de fundamentação, estabelecer-se um sistema de enunciados do qual se possam deduzir as premissas normativas ausentes, necessárias à fundamentação. Tal proposta esbarra no simples fato de que, se o sistema de enunciados não for dedutível das normas pressupostas, a decisão deles decorrente não terá fundamentação lógica ante as normas do ordenamento; se, por outro lado, o sistema axiológico proposto se puder extrair das normas pressupostas, estaremos diante do caso comum, em que as regras de interpretação bastam à construção silogística da decisão.
A conclusão a que se chega é: quando a solução justa de um caso concreto exigir uma decisão que não decorra logicamente do ordenamento, nem puder ser fundamentada com a ajuda das regras de interpretação, restará ao aplicador escolher qual o enunciado normativo singular será afirmado (porque selecionado por volição) ou construído (porque embasado em argumentos extrajurídicos) na decisão. Visto que o decidir envolverá o ato de preferir um comportamento a outro, na base de tal ação estará a alternativa eleita como melhor em algum sentido; a necessária escolha encerra, portanto, um juízo de valor, que será o núcleo da fundamentação.

3. TRATAMENTO DA PROBLEMÁTICA DO VALOR NA DECISÃO
A doutrina já reconheceu que não é possível ao legislador prever toda situação fática possível de modo fechado e perfeito. Um “fetiche pela lei”, tal como se verificou nos primórdios do positivismo (Escola da Exegese) conduz à injustiça na solução conferida a determinados casos e, frequentemente, ao impasse decorrente da ausência de previsão normativa expressa.
“O modelo clássico do silogismo jurídico pelo qual se subsume um fato a uma norma, encontrando-se a decisão jurídica (jurídica, em sentido lato, envolvendo tanto a decisão resultante do desenvolvimento abstrato, teórico, do Direito, como a decisão judicial, na jurisprudência), não se efetiva mediante a utilização apenas dos princípios da lógica deôntica (com a cópula hipotético-condicional “deve ser”, diferentemente da lógica apofântica, que tem como cópula “é”) e seus modalizadores deônticos é ordenado, é proibido, é permitido. Soma-se à tradicional lógica deôntica a lógica do discurso, que, embora formal, adentra o aspecto pragmático do enunciado jurídico apresentado como argumento da discussão.”
Desse modo, intépretes como juízes e membros da Administração Pública não ordenam e fundamentam suas decisões mediante pura subsunção lógica, mas têm de valorar autonomamente e “decidir como colegisladores”. Uma consideração realista afirmará que o julgador poderá se valer de qualquer valor como fundamento de sua decisão, mascarando-o pela argumentação jurídica. A aplicação do Direito não necessariamente terá por fundamento a moral objetiva, mas se pode embasar em uma moral específica, visando à satisfação de um interesse individual específico.
Tal constatação não significa dizer, contudo, que há um campo livre para convicções morais subjetivas dos aplicadores do direito. Com o fito de possibilitar uma apreciação racional da argumentação contida na decisão jurídica de conteúdo axiológico, a teoria do discurso tentou de diversos modos estabelcer mecanismos para limitar a fundamentação dita racional a ordens objetivas de valores.
3.1. Fundamentação em convicções fáticas
A primeira das estratégias de objetivação do universo de valores a ser utilizado na decisão é a noção de que a argumentação deve ter por fundamento os “valores da coletividade” ou de “círculos determinados” . Trata-se da regra segundo a qual deve o intérprete fundar-se na moral objetiva que permeia uma sociedade determinada no tempo e no espaço ou nas conviccções éticas de um determinado grupo, considerado de autoridade para a solução do problema em análise.
Critica-se essa posição, primeiramente, pelo fato de que os valores da coletividade não podem ser determinados com exatidão. Em verdade, a sociedade contém um emaranhado de valorações divergentes e mesmo contraditórias entre si. Não se poderia, então, aceitar como critério de racionalidade da argumentação a exigência de fundamentação em uma noção que não passa de um conceito ideal.
Por sua vez, os valores de “círculos determinados”, como os doutrinadores do direito e a classe dos juízes, também não raro se mostram sob concepções divergentes. Ademais, uma fundamentação assim, para que se pudesse considerar legítima, teria de demonstrar por que o valor ali representado é decisivo.
Sem embargo desse fato, considerando a atua preocupação com a legitimidade democrática dos julgados, entende-se que deve o juiz, na medida do possível, tomar por base as convicções daqueles em nome de quem decide. Paralelamente, não deve desconsiderar as reflexões realizadas por gerações de juristas antes de si ou pela jurisprudência. Uma metodologia de argumentação apropriada, portanto, deve ser capaz de abarcar ambas essas pretensões.
3.2. Recurso ao sistema de valores da ordem jurídica
Uma segunda alternativa seria considerar racional a decisão que se fundametasse no “sistema interno de valorações da ordem jurídica” . Consiste em julgar válida a argumentação quando realize referência expressa aos valores que se podem extrair do ordenamento.
Formalmente correta, essa concepção traduz o verdadeiro ideal. Os valores que permeiam a ordem jurídica não se encontram perfeitamente determinados a partir dos princípios que os informam. Deve-se isso, em parte à necessária forma abstrata da principiologia jurídica, que se exterioriza por completo somente diante do caso concreto, ante a conformação por que passa um princípio quando tomado em confronto com os demais.
“O ponto decisivo para distinção entre regras e princípios é que os princípios são normas que ordenam que algo será realizado na maior medida possível, dentro das possibilidades jurídicas e realidades existentes. Portanto, os princípios são mandados de otimização, que estão caracterizados pelo fato de que podem ser cumpridos em diferente grau e que a medida devida de seu cumprimento não só depende das possibilidades reais sendo também das jurídicas. O âmbito das possibilidades jurídicas é determinado pelos princípios e regras opostos.” (Grifo nosso)
Com efeito, se os pricípios jurídicos se cumprem “na maior medida possível”, podem cumprir-se no todo ou em parte, o que acaba por deixar o problema do valor inerente ao seu comando uma questão em aberto. É o aplicador que acabará por o definir.
Outra razão para a considerar-se impraticável a tentativa de recurso aos valores da ordem jurídica é que esta é construída a partir de uma “luta” (Jhering) em que são cristalizadas valorações distintas, quiçá contraditórias. Decidir com base na axiologia do ordenamento, portanto, envolve atribuir um peso aos valores que dela se podem extrair, o que significa julgar subjetivamente.
3.3. Princípios suprapositivos
Preleciona esta tese que, para que a decisão de cunho axiológico seja racionalmente construída, deve se valer de uma ordem objetiva de valores, ainda que não expressa na Constituição, como enunciados de direito natural objetivamente reconhecíveis.
A tese está sujeita a todas as críticas de cunho filosófico dirigidas às premissas a ela pertinentes: a existência de um direito natural e a legitimidade de um institucionalismo metaético . A par delas, cabe a reflexão de que, ainda que fosse possível falar em uma ordem objetiva de valores, transformá-los em enunciados capazes de solucionar os problemas normativos específicos seria tarefa de cunho subjetivo. Conforme coloca Cláudia Toledo:
“A teoria da verdade aristotelicamente formulada é assim superada, pois não mais se considera a verdade como a correspondência da asserção à realidade, mas algo construído discursivamente, o que significa ser científico o resultado do consenso fundado, alcançado em relação ao objeto estudado. A verdade não está no mundo presente, na natureza, mas é produção cultural humana. É subordinada, assim, à refutabilidade, conforme expõe Karl Popper, a qual é necessariamente inerente à ciência, sob pena de suas conclusões tornarem-se dogmas (inquestionáveis, portanto).”
A objetividade do discurso, portanto, não está em sua correlação com uma “verdade” no sentido aristotélico, que seria a referida ordem axiológica universal, mas no respeito sistemático de uma série de condições ou regras de caráter formal. A obediência aos critérios lógicos de estruturação do discurso é o que confere a medida da racionalidade para a argumentação.
3.4. Conhecimentos empíricos como fundamento da decisão
De acordo com essa orientação, a decisão pode fazer referência ao conhecimento empírico de mundo para fundamentar os valores que acate.
O empirismo pode ser definido como a asserção de que todo conhecimento sintético é baseado na experiência. Assim, a decisão fundada no saber embírico é basicamente a que se vale de constatações sensoriais. Os sentidos, contudo, não raro contrariam a razão. Desse modo, a decisão que apele à evidência ou a ordens naturais preexistentes utiliza um procedimento no mínimo duvidoso do ponto de vista metódico.
Como visto, as diferentes estratégias apontadas não solucionam a questão da delimitação racional do conteúdo da decisão. Tampouco a mera soma delas alcançaria o desiderato. Não significa isso, contudo, que não é possível estabelecer justificações psicológicas ou sociológicas para a decisão. A tese de Alexy é no sentido de preencher essa lacuna.

4. TEORIA DO DISCURSO RACIONAL
Considerando os resultados da Filosofia da Linguagem, a Teoria da Argumentação de Alexy, que com ela converge em muitos pontos, trata da metodologia adequada para a atividade linguística de correção dos enunciados normativos, que consiste no denominado discurso jurídico.
O discurso jurídico é um caso especial do discurso prático geral. Diz-se “prático” o discurso relativo à conduta humana, consoante as mais variadas ordens normativas (moral, religião, direito, etc).
“O discurso jurídico é prático, por se constituir de enunciados normativos. É racional por se submeter à pretensão de correção discursivamente obtida. É especial, por se subordinar a condições limitadoras ausentes no discurso prático racional geral, a saber – a lei, a dogmática e os precedentes. Essas condições, que institucionalizam o discurso jurídico, reduzem consideravelmente seu campo do discursivamente possível, na medida em que delimitam mais precisamente de quais premissas devem partir os participantes do discurso, fixando ainda as etapas da argumentação jurídica, mediante as formas e regras dos argumentos jurídicos.”
É possível estabelecer pelo menos três perspectivas de análise para o discurso jurídico:
1) Empírica: descreve e explica a frequência de determinados argumentos, a correlação entre determinados grupos de falantes, situações linguísticas, o uso de determinados argumentos, o efeito dos argumentos, a motivação para seu uso e as concepções de determinados grupos sobre a validade de argumentos específicos. Uiliza-se de métodos das ciências sociais.
2) Analítica: verifica a estrutura lógica dos argumentos efetuados ou possíveis. Tem por escopo a determinação do tipo de silogismo apresentado (se apofântico/apodítico, erísitico ou entinemático).
3) Normativa: estabelece critérios para a racionalidade do discurso jurídico.
Por sua vez, a racionalidade do discurso pode ser observada sob dois ângulos:
a) Formal: verifica a racionalidade procedimental dos argumentos, condizente no antendimento das regras da lógica discursiva.
b) Material: adentra no conteúdo das normas, estabelecendo uma análise quanto ao conteúdo ético dos argumentos.
A proposta de Alexy para a racionalidade pode ser considerada “analítico-normativa”. Tendo em vista os requisitos formais para a lógica do discurso, o autor propõe um conjunto de regras a partir das quais é possível afirmar ser o discurso “racional”.
Diferentemente do discurso prático geral, as regras de validade do discurso jurídico levam em conta limitadores especiais (norma jurídica, dogmática e precedentes). Utilizando-se da Ética Analítica de Stevenson, da Teoria Consensual da Verdade de Habermas e da Teoria da Argumentação de Perelman, Alexy constrói uma Teoria do Discurso Prático Racional Geral, que servirá de base para sua Teoria do Discurso Jurídico Racional.
Segundo Cláudia Toledo, Alexy coloca, dentre outras, as seguintes regras para qualificação de um discurso jurídico como racional:
1) Qualquer um pode tomar parte no discurso, introduzir e problematizar qualquer asserção (uma das regras de razão de Alexy – chamada por Habermas de princípio D, princípio da concreção);
2) Se o falante aplicar um predicado a determinado objeto, deve aplicá-lo também a qualquer outro objeto semelhante nos aspectos essenciais (uma das regras fundamentais de Alexy – chamada por Habermas de princípio U, princípio da universalidade – é regra expressa no Direito, tanto pelo princípio da isonomia, quanto pela analogia como método de integração do ordenamento jurídico);
3) O falante não pode se contradizer (princípio da não-contradição tanto da lógica formal – envolvendo então, o princípio da identidade e do terceiro excluído – quanto da lógica do discurso, determinando a não-contradição performativa);
4) O falante só pode afirmar aquilo em que ele mesmo acredita (pretensão de veracidade habermasiana);
5) O falante não pode usar a mesma expressão que outros falantes com significados diferentes (pretensão de inteligibilidade formulada por Habermas);
6) O falante deve fundamentar o que afirma se lhe for pedido (regra geral da fundamentação).
4.1. Tópica e teoria da argumentação
Alexy pretende não fazer confundir sua Teoria da Argumentação com a Tópica Jurídica, de Viehweg.
A Tópica pode ser vista como 1) uma técnica para a busca de premissas, 2) uma teoria sobre a natureza das premissas e 3) uma teoria do uso das premissas na fundamentação jurídica.
“Viehweg (1979) crê ser possível, por meio e processos comunicativos em que são aduzidos argumentos com base em premissas que possuem uma estrutura tópica, controlar a racionalidade das tomadas de posição em relação aos valores, abandonando a postura não-cognoscitivista que caracteriza as doutrinas positivas sobre o raciocínio jurídico.”
Como teoria para a o uso das premissas na fundamentação jurídica, a Tópica orienta considerar todos os pontos de vista, que, ao ver de Viehweg, é um conjunto de enunciados normativos prováveis, que permeiam a consciência coletiva e são contraditórios.
“A tópica se organizou como uma técnica de pensar por problemas, desenvolvida pela retórica antiga. Uma das maiores criações da cultura greco-romana, a retórica, originalmente desenvolvida pelos sofistas como Górgias e Pródigos, atingiu a sua organização maior no texto A Arte Retórica de Aristóteles. Disciplina capital à formação das elites culturais – mormente aquelas ligadas ao trabalho com o Direito – no mundo greco-romana. Recebendo desenvolvimentos importantes na obra de dois ilustres intelectuais romanos, como Cícero e Quintiliano, constituiu elemento crucial do processo formativo intelectual dos juristas romanos. Afinada à perspectiva eminentemente casuística do procedimento judicial romano, serviu como arcabouço teórico que permitiu a progressiva elaboração lógico-doutrinária da paradigmática experiência jurídica romana.”
“A tópica serve ao jurista prático, em especial, para encontrar os argumentos utilizáveis na justificação concreta de uma decisão. Esse procedimento se dá por meio do emprego discursivo dos topoi, que constituem, para Aristóteles (apud VIEHWEG, 1979, p. 26-27), “pontos de vista utilizáveis e aceitáveis em toda parte, que se empregam a favor ou contra o que é conforme a opinião aceita e que podem conduzir à verdade”. Os topoi “funcionam como fórmulas de procura no sentido retórico”, como orientações para a invenção (VIEHWEG, 1979, p. 104).”
Viehweg afirma, corretamente, que a instância de controle da racionalidade do discurso é a discussão. Mas é preciso estabelecer um limite. Se não for assim, corre-se o risco de, a título de uma busca legítima pelo discurso racional, perpetuar-se a argumentação ad infinitum. Ademais, deve haver um mínimo estabelecido no tocante às regras da discussão, pois, do contrário, não há como caracterizá-la ”racional”.
Nesse sentido, coloca Alexy que, em que pese sua teoria ter as mesmas intenções da Tópica, a saber, a construção de uma metodologia para a argumentação racional, seu trabalho com ela não se confunde, não devendo as críticas dirigidas à Viehweg ser meramente redirecionadas a seu ensaio.
4.2. A importância de uma metodologia para o discurso racional
A considerar no mínimo indesejável a imposição de decisões jurídicas de caráter subjetivo, mascaras pela argumentação entinemática e mesmo erística, sustentas meramente pelo astuto engodo de uma retórica sagaz, a questão da melhor metodologia para o julgamento do discurso quanto à racionalidade tem de ser enfrentada.
De fato, se o juiz não pode decidir apenas com base na capacidade de extrair logicamente conclusões válidas, deve ser capaz de argumentar racionalmente quando não houver pressupostos para a demonstração lógica. O método para essa “racionalidade” é, portanto, uma preocupação legítima.
Visto que a lei escrita não cumpre o papel de resolver um problema jurídico de forma justa, a decisão judicial tem de preencher essa lacuna, segundo os critérios da razão prática e as concepções de justiça consolidadas na coletividade.
A teoria, contudo, não é imune a críticas. Como coloca Toledo:
“Há a crítica de que a teoria da argumentação jurídica não se aplicaria ao Direito no momento do processo judicial, pois os falantes não se encontram em posição homóloga, já que cabe ao juiz a decisão sobre o que é justo (correto) a partir dos argumentos trazidos por cada uma das partes. Contudo, a completa homologia factual entre os participantes não é condição de possibilidade do discurso. Ocorre que algumas das regras do discurso são passíveis de cumprimento de forma apenas aproximada, como a exigência de participação de todos na discussão, de absoluta inexistência de coação no debate etc.. A regra que demanda a simetria entre os falantes é mais um exemplo de prescrição cuja concretização, na realidade, é feita, muitas vezes, de modo somente aproximado, ou seja, na maior medida possível, o que não retira o caráter de racionalidade da conclusão do discurso.”
Muito debatida também é a questão da consideração do discurso jurídico como caso especial do discurso prático geral. Nesse sentido, Habermas afirma:
“[...] nem o primado heurístico dos discursos prático-morais, nem a exigência segundo a qual regras de direito não podem contradizer normas morais, permitem que se conclua, sem mais nem menos, que os discursos jurídicos constituem uma parte das argumentações morais. Contra esta tese do caso especial, de Alexy (defendida inicialmente de modo não específico com relação a discursos de fundamentação e de aplicação), levantou-se uma série de objeções. [...]
A tese do caso especial é plausível sob pontos de vista heurísticos; porém ela sugere uma falsa subordinação do direito à moral, porque ainda não está totalmente liberta de conotações do direito natural. A tese pode ser superada a partir do momento em que levamos a sério a diferenciação paralela entre direito e moral, a qual surge no nível pós-convencional.”
Outra crítica é a de que o agir estratégico invalida a teoria da argumentação, que é fundada no argumento pragmático-transcendental. Tal noção é rebatida pela concepção dupla da validade da ação, a saber, a validade subjetiva (motivação) e a validade objetiva (conduta externa). Em que pese subjetivamente o indivíduo encerre regra inválida, o simples fato de respeitar a validade objetiva já pode ser considerado uma vitória para a Democracia, do ponto de vista da controlabilidade das decisões.

CONCLUSÃO
Toda decisão jurídica é passível de encerrar conteúdo axiológico. Especialmente nos casos “difíceis”, em que, para que se faça justa a solução do caso concreto, a decisão não decorre silogisticamente do ordenamento jurídico, haverá eleição de um critério de avaliação da conduta humana, quanto a ser obrigatória, proibida ou permitida, o que significa realizar um juízo de valor.
As estratégias da fundamentação em convicções fáticas, do recurso ao sistema de valores da ordem jurídica, da argumentação com base em princípios suprapositivos e do uso de conhecimentos empíricos como fundamento da decisão não se prestam, nem isolada nem cumulativametne, a solucionar a questão da objetividade da decisão nos casos complexos. Isso se dá porque os valores do sistema jurídico não são claros na ordem formal e as convicções axiológicas da coletividade ou de um grupo são contraditórias entre si. Ademais, ainda que fosse possível falar em uma ordem objetiva fechada de valores, o papel de trasformá-los em enunciados normativos específicos capazes de solucionar um caso concreto ainda seria do aplicador, que o faria com base em seu sistema psicológico, subjetivo.
Ante essa problemática, Robert Alexy, pautado na Filosofia da Linguagem do século XX, construiu sua Teoria da Argumentação Juírica. Tem por finalidade a elaboração de uma metodologia capaz de possibilitar o julgamento da fundamentação de uma decisão jurídica quanto à racionalidade, de sorte a elucidar engodos erísticos ou entinemáticos mascarados por uma retórica sedutora.
A teoria de Alexy considera o racional jurídico como razoável e processualizável discursivamente. Trata-se de projeto neokantiano na medida que trata a conduta humana como possível de ser tutelada racionalmente e estabelece critérios para a consecução da intervenção justificada argumentativamente na estrutura dos direitos fundamentais existentes em determinado ordenamento jurídico. Numa perspectiva política, favorece a democracia.

REFERÊNCIAS

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ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Madri: Centro de Estúdios Políticos y Constitucionales, 2001.

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FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2008, p. 252.

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LARENZ, K. Methodenlehre der Rechtswissenchaft. Apud ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação Jurídica. Trad. de Zilda Hutchinson Schild Silva. São Paulo: Landy, 2001, p. 35.

LIMA, Newton de Oliveira. A teoria da argumentação jurídica de Robert Alexy: pressupostos e paradigmas para o Neokantismo jurídico. Disponível em: Acesso em: 01 mai. 2010, 16:22:00

MAIA, Antônio C. Uma investigação sobre a teoria da argumentação. Disponível em: 5628/material/uma%20investigacao%20sobre%20a%20teoria%20da%20argumentacao.doc> Acesso em 01 mai. 2010, 13:42:26

MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 07.

PASSOS, Ágatha Gill Barbosa. A demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol: um estudo hermenêutico com base no voto do ministro Carlos Ayres Britto. Disponível em: asp?id=12484> Acesso em 01 mai. 2010, 10:22:35

ROBERT ALEXY. In: WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Disponível em: Aceso em: 01 mai. 2010, 08:32:27

TOLEDO, Cláudia. Teoria da argumentação jurídica. In: Revista da Escola Superior Dom Helder Câmara – Veredas do Direito. Vol. 2. N.º 3, jan. a dez. de 2005.

WIEACKER, Franz. Topikdikussion in der zeitgenössischen deutschen Rechtswissenchaft. Apud ALEXY, Robert. Op. cit., p. 42.

Conceitos jurídicos fundamentais: designativos básicos da relação jurídica na doutrina de W. N. Hohfeld

por Cláudio Ricardo Silva Lima Júnior

Sumário: 1. Introdução. 2. Escopo prático do estudo: conceitos jurídicos fundamentais para a modelagem teórica da relação jurídica. 3. Propostas de solução ante a problemática da imprecisão terminológica no direito. 4. Os conceitos jurídicos fundamentais. 4.1. Tabela de correlatos. 4.2. Tabela de opostos. 5. O perímetro de direitos e deveres e o par “privilégio-não direito”: análise de um exemplo. Conclusão. Bibliografia.

1. INTRODUÇÃO

A multiplicidade das relações intersubjetivas de interesse para o direito faz profuso o aparato terminológico utilizado no tratamento das situações modeladas pelo ordenamento jurídico. Aos modais dônticos de mais alto nível, a saber, “obrigatório”, “proibido” e “permitido”, contrapõem-se expressões técnicas e termos próprios de que se valem os juristas ante as diferentes situações específicas de cada ramo da Dogmática Jurídica.
Sem embargo desse fato, é possível isolar determinados conceitos que se mostram como fundamento para uma variedade de expressões presentes na análise de cada um dos específicos subconjuntos normativos objetos de estudo dos ditos “ramos autônomos” do Direito. Trata-se de um pequeno número de noções básicas, dotadas de menor generalidade que os conceitos mais abstratos da Lógica Deôntica e de maior generalidade que os termos corriqueiros utilizados para designar as relações específicas de cada ramo do Direito. Denominadas por Genaro R. Carrió de “expressões B”, por se situarem no nível intermediário entre as de maior e menor generalidade, tais expressões servem para distinguir e identificar situações de tipo geral que, por vezes, transcendem os limites de uma área específica da investigação jurídica.
Pelo menos dois problemas se verificam com relação às chamadas “expressões B”:
1) Nem sempre os autores de Teoria Geral do Direito, no tratamento dos conceitos básicos, ocupam-se de elucidar noções que são de uso freqüente entre os juristas dogmáticos. Alguns dos conceitos são simplesmente criados pelos teóricos, ou seja, introduzidos e definidos com a finalidade de apresentar os fenômenos do direito, na perspectiva considerada mais esclarecedora ou mais rica em conseqüências teóricas. Tal medida tem por consequência a aceitação tácita de pressupostos por parte dos juristas, o que favorece o caos terminológico, vez que, dissociados da prática, os conceitos por vezes são mal empregados ou simplesmente caem em desuso.
2) Nem sempre os juristas que trabalham nas disciplinas dogmáticas se limitam a usar as expressões de nível intermediário . Ocupando-se delas, com o propósito de defini-las e descrever suas relações recíprocas, acabam por avançar no campo da Teoria Geral do Direito e produzir definições imprecisas, dado que voltadas a um ramo específico de atuação, desprovendo o conceito recém-criado do escopo geral que necessariamente deve ostentar.
Tendo em vista essas questões, Wesley Newcomb Hohfeld, jurista norte-americano do início do século XX, preocupou-se em definir o que chamou de “conceitos jurídicos fundamentais”, precisamente as “expressões B” no dizer de Carrió.
Graduado com honras no curso de Direito de Harvard, Hohfeld, que também era bacharel em Artes pela Universidade da Califórnia, foi Professor da Universidade de Stamford e da Yale Law School. Em 1913, o Professor W. N. Hohfeld publicou seu principal artigo Fundamental Legal Conceptions as Applied to Judicial Reasoning . A proposta era conferir um significado preciso e único a expressões utilizadas no cotidiano jurisprudencial. Dessa forma, Hohfeld evitaria os engodos do puro teorismo e conferiria um status menos vacilante a noções já utilizadas na prática pela comunidade jurídica. Quem quer que desejasse se valer do resultado das definições precisaria, tão-somente, reorganizar o uso indiscriminado dos termos, não sendo necessário incorporar expressões estranhas ao vocabulário cotidiano.
Hohfeld isola, assim, as expressões que, segundo ele, definem as bases de qualquer relação jurídica. De fato, em uma pretensão que se pode considerar ambiciosa, o autor distingue oito “conceitos jurídicos fundamentais”, quatro deles pertencentes à família de “direito” e quatro relativos à noção de “dever”, aos quais seria possível reduzir toda situação ou relação jurídica. Assim sendo, todos os conceitos jurídicos seriam redutíveis aos oito singulares e precisos colocados por Hohfeld.
Despiciendo informar que o autor sofreu severas críticas no que tange a sua pretensão totalizante. Apesar disso, na chamada “pretensão moderada” de seu trabalho, Hohfeld prestou excelente contribuição à Teoria Geral do Direito. Por resgatar os usos dos juristas que efetivamente marcavam distinções úteis, redefinindo conceitos utilizados na prática, de sorte a conferir um mínimo teórico usual firmado sobre bases lógicas, delimitando com clareza noções imprecisas e vigentes, o ensaio de Hohfeld foi bastante elogiado.
É essa “pretensão moderada” do autor que constitui o objeto desta análise: a tentativa de estabelecer uma delimitação clara do alcance de conceitos de uso geral na investigação dogmática do Direito.

2. ESCOPO PRÁTICO DO ESTUDO: CONCEITOS JURÍDICOS FUNDAMENTAIS PARA A MODELAGEM TEÓRICA DA RELAÇÃO JURÍDICA
O que Hohfeld denominou “conceitos jurídicos fundamentais” está longe de representar um catálogo completo de Teoria Geral do Direito. De fato, sob a rubrica de “Conceitos jurídicos fundamentais“ Maria Helena Diniz define as noções de “direito positivo”, “fontes do direito”, “norma jurídica”, “aplicação do direito”, “fato jurídico” e “relação jurídica” . Diferentemente nessa abordagem, o propósito de Hohfeld se limita, na realidade, a delimitar os conceitos utilizados no âmbito de uma noção específica de relação juridica. Não se trata de contribuição pequena, contudo.
Tradicionalmente, a doutrina chegou a ver na identificação das relações jurídicas o grande objetivo da ciência do direito. Assim, por exemplo, no século XIX, com Savigny . Com efeito, se a função social do direito é a decidibilidade dos conflitos, a identificação das relações que estão em seu núcleo é de fundamental importância. O aparato teórico para o alcance desse fim, obviamente, passa pela definição dos conceitos que permeiam a noção de relação jurídica. É essa a maior contribuição de nosso autor.
Segundo Miguel Reale, relação jurídica é uma espécie de relação social. Dentre as possíveis interações intersubjetivas, algumas interessam ao direito. Quando o fato social concreto coincide com a prescrição normativa, a norma jurídica incide sobre a relação. No fenômeno denominado “jurisdicização”, a relação social passa a ser considerada relação jurídica.
“Dois requisitos são, portanto, necessários para que haja uma relação jurídica. Em primeiro lugar, uma relação intersubjetiva, ou seja, um vínculo entre duas ou mais pessoas. Em segundo lugar, que esse vínculo corresponda a uma hipótese normativa, de tal maneira que derivem consequências obrigatórias no plano da experiência. O trabalho no jurista ou do juiz consiste propriamente em qualificar juridicamente as relações sociais de conformidade com o modelo normativo que lhes é próprio.” (Grifo nosso)
Com efeito, as “relações jurídicas são relações sociais a que o ordenamento jurídico dá importância tal que as qualifica de modo a protegê-las e prever-lhes as consequências.”
A noção apontada por Inocêncio Galvão Teles ilustra bem a utilização indiscriminada de expressões de alcance geral na Dogmática Jurídica. Segundo o autor,
“a relação jurídica é uma noção abstrata, uma forma de pensamento científico-jurídico. [...] é a relação social tutelada pelo Direito mediante a atribuição de um poder a um dos sujeitos e a correspondente imposição de um dever ao outro.” (Grifo nosso)
Conforme se discorrerá mais adiante, dois dos conceitos jurídicos fundamentais de Hohfeld são “poder” e “dever”. O autor atribui aos termos um sentido específco, unívoco, em concepção diversa da verificada na definição acima. De fato, a considerar o conceito proposto de relação jurídica, persiste o interlocutor com idéia vaga. A definição não se presta a abarcar todas as situações identificadas tradicionalmente como pertencentes ao conceito. Vale, contudo, pela tentativa de exprimir o conceito como a relação social tutelada pelo direito.
Para Kelsen, diferentemente, relação jurídica é uma relação entre normas. Partindo do pressuposto de que a sociedade não é um conjunto de seres humanos concretos, mas um sistema estruturado de ações significativamente relacionadas, a relação jurídica não se mostra como relação entre indivíduos, mas relação entre os papéis sociais a eles correspondentes.

“Do ponto de vista de um conhecimento dirigido ao Direito, isto é, dirigido às normas jurídicas, não são tomadas em linha de conta as relações entre indivíduos, mas apenas relações entre normas - pelos indivíduos criadas e aplicadas - ou entre os fatos determinados pelas normas, dos quais a conduta humana apenas representa um caso especial, se bem que particularmente significativo. Com efeito, não são os indivíduos mas as suas ações e omissões, não são as pessoas mas determinada conduta humana - e não apenas esta mas também outros fatos (estes, porém, apenas em conexão com a conduta humana) - que formam o conteúdo das normas jurídicas. Esta idéia tem expressão, até certo ponto, na definição da relação jurídica - não como relação entre o sujeito do dever e o sujeito do direito, mas como relação entre um dever jurídico e o direito reflexo que lhe corresponde.” (Grifo nosso)
A despeito de uma concepção normativa para a relação jurídica, Kelsen não nega a base social, material da norma jurídica, a saber, a conduta humana. Assim, a concepção do autor, da relação jurídica como relação entre normas e não entre indivíduos, acaba por abranger a noção básica de dois ou mais polos aos quais se contrapõem as situações jurídicas ativa e passiva.
Avança, contudo, para além disso. Segundo Kelsen, a par das relações jurídicas que contrapõem direitos a deveres, há as relações entre sujeitos de deveres, estabelecidas por “normas de competência”, para usar a alcunha de Alf Ross, ou entre titulares de direitos em ambos os polos da relação. Para esses casos, a definição tradicional de relação juídica como estabelecida entre sujeitos se torna insuficiente. No dizer de Kelsen,
“a ordem jurídica institui relações, não apenas entre sujeitos jurídicos (no sentido tradicional da palavra), isto é, entre o indivíduo que é obrigado a uma determinada conduta e o indivíduo em face do qual aquele é obrigado a tal conduta, mas também entre o indivíduo que tem competência para a criação de uma norma e o indivíduo que tem competência para a aplicação dessa norma, bem como entre um indivíduo que tem competência para a criação ou aplicação de uma norma e o indivíduo a quem essa norma impõe um dever ou confere um direito. [...] São, porém, em primeira linha, relações entre sujeitos de deveres: os sujeitos do dever de criar ou produzir normas jurídicas e os sujeitos dos deveres por essas normas estabelecidos, e só em segunda linha relações entre os sujeitos do dever de criar ou aplicar normas jurídicas e os sujeitos dos direitos (Berechtigungen) estabelecidos por essas normas. E estes direitos não são reflexos daqueles deveres, isto é, dos deveres dos órgãos de criar ou aplicar normas jurídicas, mas reflexos dos deveres que são estatuídos por essas normas.” (Grifo nosso)
Conceber a relação jurídica como relação entre normas resolve a questão levantada por Kelsen. As normas de estrutura, que definem a competência para criar ou aplicar o direito, dividindo a sociedade entre os que criam e aplicam o direito e aqueles a quem as normas jurídicas são dirigidas, estabelecem, de fato, relações juíridicas entre os referidos sujeitos. Ocorre que tais relações não contrapõem um direito a uma obrigação: os competentes para a criação do direito têm um dever (dever de cumprir com suas competências funcionais), ao passo que os a quem o direito se dirige também têm dever, a saber, o dever de abstenção da violação da competência, o dever de respeito à ordem criada por quem é competente. A noção de relação jurídica intersubjetiva não modela tal situação. Tomar a relação jurídica como simples relação entre normas, porém, abrange não apenas os casos contemplados pela definição tradicional, como tamém os a que ela não se presta.
Os conceitos fundamentais de Hohfeld, valiosos para a identificação e aplicação do direito à luz da noção de relação jurídica, têm por base a concepção tradicional, não-kelseniana, a saber, da relação juridica como o reconhecimento normativo de uma relação social entre indivíduos. Enxergar o fenômeno jurídico sob a ótica do conceito tradicional de relação jurídica, porém, não constitui fracasso metodológico. A massiva doutrina persiste no uso dessa concepção, que se vale a modelar a quase totalidade das relações jurídicas de interesse. Ademais, quando determinada situação jurídica não é enxergada, na visão tradicional, como “relação”, isso não significa que não seja compreendida como “jurídica”, devendo submeter-se aos efeitos da norma aplicável.
De fato, a abordagem de Hohfeld é usual e prática, a despeito da moderna variação no conceito de relação jurídica, que rechaça aplicação de suas definições. Conforme se demonstrará na sequência, a precisão terminológica à luz do conceito tradicional de relação jurídica ainda se presta – e muito – a possibilitar a boa compreensão e aplicação do direito.

3. PROPOSTAS DE SOLUÇÃO ANTE A PROBLEMÁTICA DA IMPRECISÃO TERMINOLÓGICA NO DIREITO

Antes de discorrer sobre a tese colocada por Hohfeld para a definição dos conceitos jurídicos fundamentais na ótica da relação jurídica, cabe mencionar que, de um modo geral, a Teoria do Direito tem-se posicionado de duas formas ante a necessidade de maior precisão conceitual:

1) Proposta reducionista: consiste em reduzir todos os conceitos utilizados no âmbito da noção de relação juridica aos conceitos redefinidos e precisos de “direito subjetivo” e “dever jurídico” . Segundo essa teoria, todos os termos empregados no nível intermediário de generalidade, associados ao conceito de relação jurídica, podem ser reduzidos às noções básicas e fundamentais de “direito” (subjetivo) e “dever” (jurídico). Tais conceitos seriam redefinidos a uma única acepção “oficial”, de modo a se mostrarem independentes um do outro. Todas as demais expressões assemelhadas ou teriam um significado redutível aos homologados ou careceriam de conteúdo significativo adequado a um sistema jurídico de base científica. É a tese da Teoria Pura do Direito. Aceitá-la é afastar-se conscientemente dos usos correntes entre os juristas, em nome da chamada “pureza metódica”. O aparato conceitual deve ser “econômico”, construído a partir de um grupo muito pequeno de noções básicas, selecionadas em função do ideal científico do positivismo jurídico.

2) Proposta retificadora: consiste em selecionar, aprimorar e retificar os conceitos jurídicos utilizados na prática pelos operadores do direito. Sustenta ser mais vantajoso para as finalidades práticas de uma elaboração precisa de conceitos, manter-se relativamente próximo dos usos vigentes, para reconstruir os distintos conceitos jurídicos fundamentais encobertos pela profusa terminologia em voga . Não se trata de introduzir definições puramente estipulativas, mas de recorrer, com a necessária precisão, ao núcleo do significado central das expressões vigentes. Esta solução procura tomar a linguagem dos juristas como ponto de partida e, sem pressupostos rígidos, resgatar aqueles termos que efetivamente marcam distinções úteis, ainda que muitas vezes a expressão usada oculte a distinção por ser empregada de forma ambígua – um mesmo termo, por vezes, descrevendo situações distintas – ou pertença, na realidade, a uma dispensável bateria de sinônimos perfeitos – fruto da crença errônea de que as distintas palavras identificam ou distinguem situações também distintas.

Esta última opção representa a estratégia traçada por Hohfeld para a definição de seus “conceitos jurídicos fundamentais”. Tendo em vista uma finalidade eminentemente prática, o jurista de Harvard procurou construir uma teoria pautada nos usos vigentes na jurisprudência de sua época. Tampouco concordou com a capacidade de os conceitos de “direito” (subjetivo) e “dever” (jurídico) abarcarem todas as situações jurídicas em torno da noção de relação intersubjetiva.
“Hohfeld analisou durante anos decisões dos tribunais americanos para coletar dados empíricos para a elaboração de sua teoria. Além disso, também se baseou na doutrina da época e em grande parte do seu artigo critica o mau uso da terminologia jurídica por diversos autores. Portanto, o autor tinha como grande preocupação a prática do Direito e desejava com sua teoria influenciar fortemente a mesma em prol de uma maior segurança interpretativa. Além disso, apenas para justificar a importância de seu estudo na atualidade, não podemos deixar de ressaltar importantes autores que estudaram os conceitos fundamentais de Hohfeld, tais como Robert Alexy, Giuseppe Lumia e Genaro Carrió.”
Sem dúvida, a proposta adotada por Hohfeld aproxima a teoria de seu uso prático. O modelo que propõe, em que pese a espantosa simplicidade, mostra-se útil no tratamento de importantes questões de direito positivo.

4. OS CONCEITOS JURÍDICOS FUNDAMENTAIS

Considerando o escopo dos conceitos fundamentais, a saber, a noção tradicional de relação jurídica, Hohfeld centraliza sua atenção no par de opostos “direito (subjetivo)” e “dever (jurídico)”.
Na linguagem cotidiana dos juristas, cada um desses termos parece presidir, por assim dizer, uma família de expressões ou palavras aparentadas entre si. As relações internas de cada família estão longe de serem precisas. Não se sabe se alguns de seus membros são reciprocamente substituíveis, e se não são, por que não são. Vige verdadeiro caos terminológico, que sugere a existência de verdadeiro caos conceitual.
À primeira família, presidida pela palavra “direito” (no impreciso sentido sugerido), correspondem expressões como “imunidade”, “liberdade”, “privilégio”, “prerrogativa”, “faculdade”, “isenção”, “autoridade”, “poder”, “pretensão legítima”, “interesse legítimo”, “atribuição”, “garantia”, “competência”, “autorização”, “permissão”, “licença”, “concessão”, “título”, “opção”, “limitação de responsabilidade”, “prioridade”, “preferência”, “jurisdição” “independência”, “autarquia”, “autonomia”, etc.
À segunda família, chefiada pela palavra “dever” (no impreciso sentido sugerido), correspondem expressões como “obrigação”, “responsabilidade”, “incapacidade”, “incompetência”, “proibição”, “limitação”, “caducidade”, “condição”, “prestação”, “serviço”, “impedimento”, “incompatibilidade”, “ausência de direito”, “restrição”, etc .
Sobre essa base, Hohfeld distingue oito conceitos jurídicos fundamentais, que reúne em duas tabelas, uma de correlatos e outra de opostos. Ambas possuem os mesmos conteúdos, agrupadas, contudo, com critérios distintos. Os conceitos de Hohfeld, bem como as relações que estabelecem entre si podem ser dispostos conforme segue.
4.1. Tabela de correlatos
A tabela de correlatos apresenta os conceitos jurídicos fundamentais conforme dispostos na relação jurídica itersubjetiva do modelo tradicional. A cada conceito relativo à noção de “direito” (subjetivo) contrapõe-se um conceito associado à noção de “dever” (jurídico). Em palavras de Carrió, “à modalidade ativa direito se corresponde, como seu complemento, na pessoa do outro sujeito, a modalidade passiva dever.”
Significa dizer: a tabela de correlatos apresenta os oito conceitos jurídicos fundamentais, quatro relativos ao polo ativo da relação jurídica e quatro relativos ao polo passivo. A cada conceito do polo ativo se contrapõe o conceito correspondente verificável no polo passivo quando presente no polo ativo a situação jurídica descrita no conceito correspondente. Se um sujeito ostenta frente ao outro direito com relação a um objeto X, o outro terá para com o primeiro dever em relação ao mesmo objeto.
A tabela é como segue:

TABELA DE CORRELATOS

1. Direito – em sentido estrito, é a faculdade de exigir uma prestação, uma conduta por parte do sujeito passivo (um fazer, não-fazer, dar ou restituir por parte do outro polo da relação jurídica). 1. Dever – em sentido estrito, é a situação jurídica de quem está obrigado a uma prestação em relação a outrem. O polo passivo (devedor) é obrigado a realizar uma prestação ao polo ativo (titular do direito em sentido estrito).

2. Privilégio – é a faculdade de praticar um ato ou de inserir-se em uma situação jurídica. Diz respeito a uma conduta por parte do polo ativo, o titular do privilégio, cujos efeitos recaem sobre o próprio sujeito ativo. 2. Não-direito – é a situação que se contrapõe ao privilégio. O titular do privilégio tem a faculdade de praticar um ato; o polo passivo dessa relação não tem direito (tem o não-direito) de impedir que o polo ativo realize a conduta objeto do privilégio.

3. Poder – é a facudade de produzir determinados efeitos jurídicos em relação ao polo passivo. Por meio do poder, o titular do direito promove efeitos sobre outro sujeito, inserindo-o em uma situação jurídica, ainda que contra sua vontade. 3. Sujeição – é a condição de quem será necessariamente submetido aos efeitos jurídicos do ato praticado pelo titular de um poder. O poder encerra uma espécie de privilégio, pois o sujeito passivo não pode impedir que o titular exerça o ato (quem está em sujeição tem, também, o “não-direito” de impedir que o ato seja realizado); é, porém, mais que isso: além de o sujeito passivo não poder impedir a realização do ato por parte do polo ativo, estará, obrigatiriamente, sbmetido aos efeitos do ato, inserindo-se na situação jurídica dele decorrente, mesmo contra sua vontade.
4. Imunidade – é o atributo jurídico que permite ao seu titular não ser afetado pelos efeitos jurídicos do ato de determinado sujeito. O polo ativo tem imunidade em relação ao polo passivo se os atos deste não forem aptos a produzir efeitos sobre aquele. Ter poder sobre outro não significa estar imune em relação ao outro. 4. Incompetência – é a ausência de qualificação jurídica para a prática de um ato em relação a determinado sujeito, considerado dotado de imunidade em relação ao agente. O praticante do ato é o polo passivo da relação, pois, seus efeitos não atingem o destinatário, vez que o agente não é reconhecido pela ordem jurídica como titular de um poder sobre o destinatário. A imunidade é oposta à sujeição, porque competência é poder. Ser incompetente em relação a outro não significa estar sujeito a esse outro.

A primeira observação a ser realizada quanto à definição proposta por Hohfeld é a acepção estrita que concedeu às expressões “direito” e “dever”. Diferentemente da abordagem reducionista, que pretendia conceber as ditas expressões de modo genérico, de sorte a serem capazes de encerrar todos os demais conceitos possíveis no âmbito da relação jurídica, a definição aqui trazida toma “direito” como o termo específico designativo da situação de quem é titular de uma pretensão legítima a uma prestação. Quem carrega um “dever”, por sua vez, está juridicamente obrigado a realizar a prestação objeto do “direito” do polo ativo da relação. Prestação é o ato humano objeto de uma obrigação. O objeto da prestação (o ato humano) será sempre um dentre quatro hipóteses: fazer, não-fazer, dar ou restituir .
Em sentido amplo, direito é toda situação ativa em uma relação jurídica, toda posição jurídica de vantagem. Nessa acepção, “privilégio”, “poder” e “imunidade” são “direitos”. Em sentido estrito, porém, “direito” é apenas a faculade de exigir uma prestação e “privilégio”, “poder” e “imunidade” são posições jurídicas ativas assemelhadas a “direito”, mas distintas de seu conceito.
Uma segunda questão a pontuar é a distinção entre “privilégio” e “poder”, no polo ativo da relação jurídica. No sentido proposto pelo autor, o “privilégio” consiste na faculdade de praticar um ato cujos efeitos recaem sobre o próprio titular do privilégio. No polo passivo, contrapõe-se a situação jurídica de “não-direito”, a saber, o vazio quanto a uma norma que autorizasse impedir o sujeito ativo de praticar o ato objeto do privilégio. A título de exemplo, com relação ao instituto jurídico da “propriedade”, tecnicamente, dever-se-ia falar não em “direito de propriedade”, mas em “privilégio de propriedade”. O termo “direito” estaria reservado à exigibilidade de uma conduta por parte do outro. A propriedade, que encerra a possibilidade de uso, gozo e disposição de uma coisa (res) confere a seu titular o “privilégio” de uso, pois diz respeito a uma facultas agendi em relação ao próprio polo ativo. Os efeitos do ato “uso” recaem sobre o próprio titular do privilégio. Em contrapartida, o “poder” diz respeito à possibilidade de emanar um ato cujos efeitos recaem sobre o outro sujeito da relação. Para além do simples “não-direito” de impedir a prática do ato, o “poder” faz com que o indivíduo se submeta, necessariamente, aos efeitos do ato praticado pelo sujeito ativo. Os direitos (sentido tradicional, “privilégios”, no sentido de Hohfeld) que encerram um “poder” são denominados na doutrina “direitos potestativos”. Do latim potestas, poder.
“O direito potestativo não exige um determinado comportamento de outrem nem é suscetível de violação. É, assim, figura inconfundível com a de direito subjetivo e, para alguns, até com a de relação jurídica, à qual se considera externo e antecedente. A outra parte não é sujeita ao poder do titular, mas à alteração produzida. Mas, como ele, o direito potestativo é expressão de autonomia privada. O direito potestativo distingue-se do direito subjetivo. A este contrapõe-se um dever, o que não ocorre com aquele, espécie de poder jurídico a que não corresponde um dever, mas uma sujeição, entendendo-se, como tal, a necessidade de suportar os efeitos do exercício do direito potestativo. Como não lhe corresponde um dever, não é suscetível de violação e, por isso, não gera pretensões.”
Exemplo de direito potestativo (ou simplesmente “poder”, para usar o conceito estrito de Hohfeld) é o que tem o empregador com relação à demissão sem justa causa do empregado a ele vinculado. O empregador tem o “poder” de demitir o empregado sem justa causa (caso em que absorve o “dever” de pagar a indenização trabalhista, que é “direito” do trabalhador). O empregado, além de não ter autorização jurídica para impedir a prática do ato, fica sujeito aos efeitos dele decorrentes, a saber, a extinção da relação de trabalho. O “poder” do empregador consiste exatamente nisso, em que os efeitos jurídicos do ato “demissão” recaiam sobre o destinatário “empregado”, ainda que contra sua vontade.
Interessante notar que é nesse exato sentido que o termo “poder” é utilizado, por exemplo, na definição legal do contrato de mandato. A procuração, instrumento do mandato, nos termos do art. 653 do Código Civil, materializa o contrato mediante o qual uma parte “confere poderes” a outra para a prática de atos em seu nome. No limite dos “poderes” constantes do instrumento, os efeitos dos atos do mandatário recaem sobre o mandante. Assim, se o procurador vende determinado bem da propriedade de quem outorgou procuração e tal “poder” se encontrava previsto no instrumento, para todos os efeitos jurídicos, a venda terá sido realizada pelo titular do direito de propriedade. O “poder” conferido ao mandatário faz com que os efeitos do ato “venda” recaiam sobre o mandante, considerado, sob essa ótica, polo passivo da relação. Se o mandante conferiu ao mandatário poderes de alienação sem estabelecer restrições de valor, não há que quesionar, após realizado o negócio, a validade do contrato de compra e venda apenas por considerar ter sido possível a obtenção de melhor preço. O “poder” que conferiu ao mandantário faz com que esteja “sujeito” aos efeitos do ato praticado, ainda que contra sua vontade.
Por fim, cabe destacar que, ao lado da “imunidade”, coloca Hohfeld a “incompetência”. A imunidade diz respeito à possibilidade de não sofrer os efeitos do ato jurídico praticado pelo outro polo da relação jurídica. Evidente se faz, portanto, que, quem não está imune estará em “sujeição” com relação ao outro, o que significa dizer que o outro terá “poder” em relação ao não-imune. Essa constatação se faz porque “competência é poder”, conforme afirma o Prof. Marcílio Florêncio Mota, da Universidade Católica de Pernambuco. Competência é, precisamente, a qualificação jurídica pessoal para a prática de um ato. Assim, para utilizar o mesmo exemplo, o empregador é competente para demitir seu funcionário, o que revela que tem sobre o mesmo o “poder” de praticar o referido ato; relativamente ao funcionário da empresa concorrente, contudo, o empregador não tem competência para a prática do ato “demissão”. O fato de ser o administrador “incompetente” (no sentido técnico-jurídico aqui assumido) revela que não tem poder sobre o trabalhador vinculado à outra empresa, o que é equivalente a afirmar que o funcionário da referida concorrente tem “imunidade” relativamente aos atos de demissão praticados pelo gestor da primeira empresa.

4.2. Tabela de opostos
A tabela de opostos tem como conteúdo os mesmos conceitos definidos na tabela de correlatos. O que difere é a disposição em que os apresenta. Tem por objetivo informar os conceitos incompatíveis entre si, à luz da formulação de uma relação jurídica na qual se verifique um deles. A cada conceito associado à noção de “direito” (subjetivo), opõe-se um conceito incompatível com a situação jurídica contemplada no polo passivo. No dizer de Carrió, “cada modalidade jurídica ativa é representada em conexão com aquela modalidade passiva que, em lugar de complementá-la, opõe-se como contraditória na pessoa do mesmo sujeito.”
Significa dizer: a tabela de opostos apresenta os oito conceitos jurídicos fundamentais, quatro relativos ao polo ativo da relação jurídica e quatro relativos ao polo passivo. A cada conceito do polo ativo se opõe o conceito correspondente impossível de se verificar no polo ativo quando presente nele presente a situação jurídica descrita no conceito correspondente. Se um sujeito ostenta frente ao outro direito com relação a um objeto X, isso exclui que o sujeito tenha não-direito para com o outro em relação ao mesmo objeto.
A tabela é como segue:


TABELA DE OPOSTOS

1. Direito – em sentido estrito, é a faculdade de exigir uma prestação, uma conduta por parte do sujeito passivo (um fazer, não-fazer, dar ou restituir por parte do outro polo da relação jurídica). 1. Não-direito – é a versão oposta à noção de direito em sentido estrito, a saber, a situação de quem não tem a faculdade de exigir uma prestação por parte de um pretenso sujeito passivo.
2. Privilégio – é a faculdade de praticar um ato ou de inserir-se em uma situação jurídica. Diz respeito a uma conduta por parte do polo ativo, o titular do privilégio, cujos efeitos recaem sobre o próprio sujeito ativo.
2. Dever – consiste, em sentido estrito, na obrigatoriedade de praticar uma conduta (fazer, não-fazer, dar ou restituir). O dever é incompatível com o privilégio, pois quem tem a faculdade de praticar um ato não pode estar obrigado a realizá-lo.

3. Poder – é a facudade de produzir determinados efeitos jurídicos em relação ao polo passivo. Por meio do poder, o titular do direito promove efeitos sobre outro sujeito, inserindo-o em uma situação jurídica. 3. Incompetência – é a ausência de poder para a prática de um ato em relação a outrem. Quem tem o poder de submeter os efeitos de um ato a outro, tem competência em relação a esse sujeito.

4. Imunidade – é o atributo jurídico que permite ao seu titular não ser afetado pelos efeitos jurídicos do ato de determinado sujeito. O polo ativo tem imunidade em relação ao polo passivo se os atos deste não forem aptos a produzir efeitos sobre aquele. Ter poder sobre outro não significa estar imune em relação ao outro. 4. Sujeição – é o atributo que confere ao polo passivo a obrigatoriedade de se submeter aos efeitos do ato praticado pelo polo ativo. Se alguém tem imunidade em relação a outro no que concerne a um determinado ato, isso significa que não há sujeição em relação a esse outro no que tange ao determinado ato.


De fato, a constatação parece razoavelmente lógica. Se A tem em relação a B um “direito” concernente a um objeto X, isso exclui que A não tenha o mesmo direito com relação a B (tenha o não-direito); se A tem, frente a B, o “privilégio” para a prática de um ato X, isso exclui o fato de que A tenha, com relação a B, o “dever” de realizar o ato X; se A tem, perente B, o “poder” de infligir determinado efeito jurídico, isso exclui que A seja incompetente para produzir os mesmos efeitos em relação a B; por fim, se A é “imune”, em relação a B, no que tange a um específico ato X, isso é incompatível com a noção de que A esteja em “sujeição” para com B relativamente ao mesmo ato.
O uso impreciso realizado na prática conduz a graves desvios. O foro por prerrogativa de função, por exemplo, ostentado pelos detentores de cargos públicos de status constitucional, é comumente denominado “privilégio de foro”. Trata-se, contudo, no estrito sentido de Hohfeld, de “dever”: quem está sujeito ao foro por prerogativa funcional tem a obrigação de fazer sua defesa perante o juízo especial segundo a competência em razão da pessoa. Não se trata de faculdade, à qual pode optar o agente político. Em verdade, o julgamento, v. g , do Presidente da República por crime comum perante o STF pode ser visto, como o é com maior frequência, como no interesse do indiciado, mas nada impede que, em uma circunstância específica, seja entendido pela defesa como prejudicial (por possibilitar menor número de revisões do julgado, por exemplo). Ainda que visto como negativo, terá de ser respeitado. Logo, não pode ser entendido como “privilégio”, vez que é comando normativo impositivo. Ademais, como visto, o “dever” de praticar um determinado ato em relação a alguém é incompatível com o “privilégio” de realizá-lo, frente ao mesmo sujeito.
Nesse sentido, Daniel Brantes Ferreira é bastante elucidativo:
“Nos termos postos por Hohfeld em seu esquema, privilégio é o oposto de dever e o correlato de ausência de pretensão. Sendo assim, se X tem o direito ou a pretensão que Y, o outro indivíduo, não possa adentrar suas terras, ele tem, portanto, o privilégio de adentrar suas próprias terras. Em outras palavras, X não tem o dever de ficar fora de suas terras, ou seja, o privilégio de entrar é a negativa do dever de ficar fora. Nesse sentido, podemos traduzir privilégio como não-dever ou ausência de dever. [...]
Similarmente ao exemplo citado, podemos mencionar outro exemplo trazido por Hohfeld: se A não realizou com B um contrato de prestação de serviços, portanto, o privilégio de A não realizar o serviço é a mera negativa do dever de realizá-lo, dever este que teria se houvesse efetuado o contrato, ou seja, perderia seu privilégio. Desta forma, privilégio tem sempre uma conotação oposta a do dever, por isso são conceitos fundamentais opostos no esquema de Hohfeld.”

5. O PERÍMETRO DE DIREITOS E DEVERES E O PAR “PRIVILÉGIO-NÃO DIREITO”: ANÁLISE DE UM EXEMPLO
Situação interessante na modelagem teórica da relação jurídica é a que visa à atribuição de direitos e deveres a sujeitos em conflito. Genaro Carrió traz à baila, a título de ilustração, um exemplo em que se aplicam normas não-jurídicas, mas que esclarece a problemática que a terminologia imprecisa configura quando da tentativa de modelagem de uma relação jurídica conflituosa.
A imagem sugerida é a de dois pugilistas em um combate de boxe. Se nos valermos exclusivamente das noções “direito-dever”, certamente conseguiremos modelar grande parte das regras do boxe aplicáveis ao conflito (ambos os atletas terão “direito” a um árbitro justo, cada um terá “direito” a que o outro não saia do ringue enquanto não terminada a luta, “dever” de não desferir golpes baixos, “direito” a que o outro não pratique golpes baixos, etc.).
Problema há, contudo, na definição quanto à possibilidade de praticar um golpe válido. Como menciona o autor, não resta dúvida de que as regras do boxe não proíbem que A acerte B com um “impecável golpe de punho na mandíbula. Longe disso, o esforço de A nesse sentido parece corresponder ao espírito do esporte e A está autorizado expressamente a fazê-lo.” .
Apesar disso, não se pode afirmar, corretamente, que A tem o “direito” de acertar seu oponente. No sentido estrito que essa expressão assume na obra de Hohfeld, “direito” diz respeito à exigibilidade de uma conduta por parte do outro. Paralelamente, não se pode afirmar que B tem o “dever” de permitir que A o acerte com golpes válidos. Em verdade, de acordo com as regras do esporte, B não apenas está autorizado a impedir que seu oponente o golpeie como é fortemente incentivado nesse sentido.
Sustenta o autor, assim, que a terminologia de direitos e deveres “fracassa totalmente” na tentativa de tratar a situação normativa recíproca dos sujeitos em conflito à luz das regras do boxe. Não concordamos com essa afirmação.
De acordo com Carrió, somente o par “privilégio-não direito” se prestaria a solucionar a questão dos boxeadores em conflito. Cada pugilista teria, frente ao outro, o “privilégio” de dar golpes corretos. No polo oposto da relação, o outro teria o “não-direito” a impedir que o oponente exerça seu privilégio, a saber, que pratique os golpes. Afirma o autor que “como não-direito não se confunde com dever, cada um dos pugilistas pode, legitimamente, realizar tudo o que estiver em seu alcance (sem violar nenhum dever genuíno) para impedir que seu rival exerça o privilégio de que goza.”
Tal afirmação está em franca contradição com a definição de Hohfeld para “não-direito”. O termo no-right, cunhado pelo próprio autor, é o único das oito expressões que compõem o esquema de conceitos fundamentais do Direito que não era conhecido e utilizado previamente pelos juristas. Tem por base a teoria, vigtente à época, do damnum absque injuria, segundo a qual, em razão de determinados danos considerados não ilegais, não havia pretensão (havia no-right). Para Hohfeld,
“[...] o correlato de privilégio é a ausência de pretensão (no-right). Por exemplo, o correlato do direito de X que Y não adentre suas terras é o dever que Y tem de não adentrar as mesmas. No entanto, o conceito correlato do privilégio de X de adentrar em suas terras é a ausência de pretensão de Y que X não adentre suas próprias terras. Ou seja, enquanto X possuí o privilégio de adentrar em suas próprias terras, não há nada que Y possa fazer, nenhuma ação perante o Estado que possa impedir que X adentre suas próprias terras, daí o correlato de privilégio no esquema de Hohfeld ser a ausência de pretensão.” (Grifo nosso)
Como se vê, o “não-direito” encerra, asism, a impossibilidade de impedimento a que o polo oposto na relação jurídica exerça o objeto do privilégio de que é titular.
No caso dos boxeadores em conflito, modelar a faculdade que cada pugilista tem quanto a desferir golpes em seu adversário como um “privilégio”, significa dizer que o outro, necessariamente, terá o “não-direito” de impedir o exercício do privilégio de dar golpes. Em sua essência, o “não-direito” representa, frente ao privilégio, verdadeiro dever de abstenção quanto à imposição de empecilhos ao exercício do privilégio. De fato, se a ordem normativa não considera que o sujeito tem direito a impedir a realização do objeto do privilégio, qualquer manifestação nesse sentido será ilegítima, podendo ser rechaçada pela via judicial. No estrito sentido hohfeldiano, “privilégio” encerra mais que um “direito”: o direito diz respeito, apenas, à exigibilidade de uma conduta específica pelo polo oposto da relação; o privilégio, no entanto, torna possível a prática de um ato pelo próprio titular do privilégio e, cumulativamente, impõe ao outro polo a impossibilidade de fazer o titular do privilégio abster-se do exercício de seu conteúdo. O modelo colocado por Carrió para o caso específico, portanto, contém uma falha.

Na realidade, a situação hipotética de conflito levantada pelo autor pode muito bem ser modelada pela sistemática “direito-dever”, no sentido de Hohfeld. A falha que vislumbro se deu na definição do objeto do direito (ou do dever). Em verdade, cada pugilista tem não o direito a desferir golpes em seu adversário, mas a tentar acertar os golpes legítmos. Correlato a esse “direito”, há o “dever” do oponente quanto a não impedir que o outro tente. Embora não possa impedir que seu adversário realize tentativas de golpes contra sua pessoa, cada pugilista pode, perfeitamente, impedir que o oponente acerte os referidos golpes (de fato, não apenas pode como também é incentivado a fazê-lo). Entre tentativas e acertos, realiza-se a luta, cada pugilista no exercício de seus direitos e deveres.
O caso ilustra, assim, a par da verificada utilidade dos conceitos, a necessidade de cuidado e atenção quando da definição de critérios para aplicação.

CONCLUSÃO
Wesley Newcomb Hohfeld, jurista norte-americano do início do século XX, promoveu interessante trabalho no levantamento do que denominou os “conceitos jurídicos fundamentais conforme aplicados no raciocínio judicial”. Os conceitos que definiu como “fundamentais” não dizem respeito a toda a Teoria do Direito, mas, tão-somente aos institutos verificados no modelo teórico tradicional de relação jurídica, entendida como a relação social entre indivíduos de interesse para o comando normativo jurídico.
Valendo-se do que denominei “proposta retificadora”, Hohfeld decidiu não impor conceitos predeterminados a partir de uma análise meramente teórica da relação jurídica. Sua estratégia consistiu em observar detidamente os usos já consagrados na prática cotidiana dos juristas para, somente então, promover o isolamento dos conceitos que efetivamente marcavam distinções válidas, redefinindo cada um deles de modo a que apresentassem um sentido preciso e único.
Hohfeld agrupou seus conceitos fundamentais em duas “tabelas”, a saber, uma demonstrando os “termos correlatos”, que contém, a par de cada situação jurídica observável, a que se verifica no polo contrário da relação jurídica correspondente e outra apresentando os “termos opostos”, tendo como conteúdo os mesmos conceitos já definidos como fundamentais, dispostos, porém, de sorte a apresentar, ao lado de cada situação jurídica verificável em um indivíduo, o conceito a ela incompatível, na pessoa do mesmo sujeito da relação jurídica.
Os conceitos fundamentais de Hohfeld podem ser assim definidos:
1. Direito – em sentido estrito, é a faculdade de exigir uma prestação, uma conduta por parte do sujeito passivo (um fazer, não-fazer, dar ou restituir por parte do outro polo da relação jurídica).
2. Privilégio – é a faculdade de praticar um ato ou de inserir-se em uma situação jurídica. Diz respeito a uma conduta por parte do polo ativo, o titular do privilégio, cujos efeitos recaem sobre o próprio sujeito ativo.
3. Poder – é a facudade de produzir determinados efeitos jurídicos em relação ao polo passivo. Por meio do poder, o titular do direito promove efeitos sobre outro sujeito, inserindo-o em uma situação jurídica, ainda que contra sua vontade.
4. Imunidade – é o atributo jurídico que permite ao seu titular não ser afetado pelos efeitos jurídicos do ato de determinado sujeito. O polo ativo tem imunidade em relação ao polo passivo se os atos deste não forem aptos a produzir efeitos sobre aquele. Ter poder sobre outro não significa estar imune em relação ao outro.
5. Dever – em sentido estrito, é a situação jurídica de quem está obrigado a uma prestação em relação a outrem. O polo passivo (devedor) é obrigado a realizar uma prestação ao polo ativo (titular do direito em sentido estrito). O dever é correlato do direito e oposto ao privilégio.
6. Não-direito – é a situação que se contrapõe como correlata ao privilégio. O titular do privilégio tem a faculdade de praticar um ato; o polo passivo dessa relação não tem direito (tem o não-direito) de impedir que o polo ativo realize a conduta objeto do privilégio. É situação oposta ao direito (pretensão).
7. Sujeição – é a condição de quem será necessariamente submetido aos efeitos jurídicos do ato praticado pelo titular de um poder. O poder encerra uma espécie de privilégio, pois o sujeito passivo não pode impedir que o titular exerça o ato (quem está em sujeição tem, também, o “não-direito” de impedir que o ato seja realizado); é, porém, mais que isso: além de o sujeito passivo não poder impedir a realização do ato por parte do polo ativo, estará, obrigatiriamente, sbmetido aos efeitos do ato, inserindo-se na situação jurídica dele decorrente, mesmo contra sua vontade. A sujeição é, portanto, situação correlata ao poder e oposta à imunidade.
8. Incompetência – é a ausência de qualificação jurídica para a prática de um ato em relação a determinado sujeito, considerado dotado de imunidade em relação ao agente. O praticante do ato é o polo passivo da relação, pois, seus efeitos não atingem o destinatário, vez que o agente não é reconhecido pela ordem jurídica como titular de um poder sobre o destinatário. A imunidade é oposta à sujeição, porque “competência é poder”. Ser incompetente em relação a outro não significa estar sujeito a esse outro.

Em que pese tenha sofrido críticas quanto a sua pretensão totalizante, a saber, a afirmativa de que todo e qualquer conceito utilizado no âmbito da noção de relação jurídica pode ser reduzido a um dos oito por ele definidos, Hohfeld forrneceu preciosa contribuição à Teoria do Direito, porquanto possibilitou a definição precisa de vocábulos por vezes ambíguos e quase sempre obscuros em seu conteúdo. Ademais, frente a uma teoria que pretendia reduzir tudo a apenas duas noções (“direito” e “dever”), seu trabalho representou acréscimo inimaginável. De fato, enquanto parte da doutrina o critica por pretender reduzir a totalidade de definições a oito conceitos, outra parte o criticou por considerar oito um número elevado, considerando ainda menor o número dos conceitos que exprimem verdadeiro significado.
Se a proposta de Hohfeld, na “pretensão máxima” de seus conceitos jurídicos fundamentais apresenta noções de mais ou de menos, não se arvora este estudo a opinar. Cabe afirmar, porém, que, muito embora não sejam utilizados na exata expressão terminológica por ele proposta, os conceitos fundamentais de Hohfeld representam noções massivamente utilizadas pelos juristas – muitos dos quais apenas tacitamente corroboram com o trabalho do autor.


BIBLIOGRAFIA

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