segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Princípio ou regra?

por Cláudio Ricardo Silva Lima Júnior

A célebre lição de Dworkin acerca das categorias de normas jurídicas estabelece que os princípios, por admitirem no mesmo plano de eficácia de um ordenamento a coexistência de regramento contrário, têm por aspecto fundamental permitirem aplicação de seus preceitos no todo ou em parte, ao passo que as regras somente se aplicam ou deixam de ser aplicadas em sua inteireza (“all or nothing”). Ademais, assevera Alexy que princípio é norma dotada de certo grau de generalidade, a qual pode admitir normas secundárias, dele derivadas, que visam a dar-lhe significado concreto ou implementá-lo no plano fático em diferentes graus – daí o ensinamento de que os princípios são “mandados de otimização”, tanto porque determinam que a norma neles inserta seja aplicada ao máximo de suas potencialidades, valendo-se do método técnico-jurídico denominado de “ponderação”, quanto porque admitem um desenvolvimento específico da normatização, algo que se vislumbra com facilidade, por exemplo, no caso das normas ditas programáticas. Por último, entende-se que os princípios funcionam, outrossim, como critérios de interpretação sistemática do Direito, tendo em vista que o seu valor normativo, em face do nível de abstração que ostentam e da posição hierárquica que costumam ocupar no ordenamento jurídico, traduz-se em uma função hermenêutica, que lhes confere o papel de balizas interpretativas dos textos jurídicos. Essa é a noção que prevalece na doutrina, ao nível da conceituação formal.

No jargão jurídico, contudo, quando uma regra, no sentido cunhado por Dworkin, constitui um dos fundamentos de um ramo do Direito, revelando-se norma basilar, que marca com propriedade determinado tema – ou, até mesmo, um subtema da matéria jurídica –, com intenso relacionamento com outras normas, para as quais, por vezes, serve  de referência, costuma-se, em nítido abandono da nomenclatura adotada pela teoria clássica, denominá-la de “princípio”. É o que ocorre, por exemplo, quando autores de renome se referem a supostos “princípio do duplo grau de jurisdição”, em direito processual,  “princípio da anterioridade”, em matéria tributária, “princípio da filiação obrigatória”, em direito previdenciário, “princípio da dupla incriminação”, em tema de extradição, no direito internacional público, ou “princípio da irretroatividade”, em se tratando de lei penal desfavorável ao réu – para citar apenas alguns exemplos. A rigor técnico, nenhuma dessas normas poderia adequadamente ser rotulada de princípio, porquanto inadmitem qualquer mitigação que lhes permita conformar-se, no caso concreto, a norma de idêntica natureza que emane comando contrário sem que o preceito seja afastado em sua inteireza. O último exemplo trazido, a propósito, sequer admite exceção, revelando-se regra absoluta, verdadeiro baluarte em benefício do réu, qual norma protetiva do indivíduo em face do Estado, erigida ao nível do direito positivo constitucional.

Digno de nota, nesse sentido, porém, é o fato de que, diversamente da regra da irretroatividade da lei penal benéfica (cuja designação de “princípio” somente se poderia explicar em face da fundamentalidade do direito que encerra), a maioria das regras de grande alcance e impacto, usualmente definidas livremente como “princípios”, compartilham com os princípios de Dworkin e Alexy o caractere da ampla generalidade e, por isso mesmo, por vezes, admitem diversas exceções. Exceções, fruto da previsão legislativa ou da construção jurisprudencial, diferem da mitigação de princípios resultante da ponderação porquanto, uma vez incidentes, afastam por completo a regra com que sejam conflitantes, ao passo que diferentes princípios contrários entre si não deixam de produzir efeitos em sua plenitude, mas cedem lugar um ao outro apenas para o fim de não negar efetividade ao de sentido oposto, o que ocorre, no caso concreto, na medida fixada pelo julgador como apta a materializar os conceitos subjetivos de razoabilidade e de justiça adotados pelo intérprete. Nem por isso se pode deixar de reconhecer, contudo, que a multiplicação de exceções a uma regra de vasta generalidade confere a esta uma dimensão dinâmica, pela qual passa a se amoldar aos influxos de normas outras, de igual natureza, mas de significado diverso, as quais lhe outorgam um caráter que, ao menos de certo modo, faz lembrar o efeito normativo da colisão de princípios.

Tal é a razão pela qual a doutrina usualmente adota a designação de “princípio” a certas normas de maior vulto, que, a rigor, deveriam ser reputadas “regras”: a posição hierárquica, a fundamentalidade para determinado ramo do Direito ou o alto grau de generalidade, que confere à norma vasto alcance social, associado ao resultado normativo de forte número de exceções, produzem para determinadas regras uma aproximação conceitual com a ideia de princípio, o qual, por definição, se reveste de características assemelhadas a essas. Outra não é a explicação para a confusão terminológica ou o abandono consciente da nomenclatura cunhada no âmbito da teoria dos direitos fundamentais, cabendo ao destinatário contrapor o sentido formal e o informal da expressão, a bem da adequada compreensão da natureza jurídica dos comandos normativos.