segunda-feira, 25 de abril de 2011

A natureza ambivalente do conhecimento jurídico

por Cláudio Ricardo Silva Lima Júnior

O conceito de direito é um dos mais tormentosos temas da filosofia jurídica. Nesse sentido, questiona-se, quanto ao conhecimento jurídico, se possui natureza científica ou não. Considerando ser ciência o corpo de conhecimento específico, dotado de objeto definido e método próprio, afirmam alguns ser o estudo do direito, invariavelmente, científico. Tomando, por outro lado, a ciência como a pesquisa que resulta na identificação de condicionantes e determinantes, outros, como Luís Aberto Warat, sustentam ser a cultura jurídica conhecimento de outra sorte, vez que as respostas se encontram fechadas em discurso ideológico pré-definido.

Em sua digressão sobre o “senso comum teórico dos juristas”, Warat afirma que duas são as espécies de teorias: as ideológicas (senso comum teórico) e as científicas. As primeiras formam parte do real, ao passo que as segundas reconstroem o real social, ampliando-o com a compreensão de seus determinantes e condicionantes. Para o eminente jurista, o “senso comum teórico” jamais se situa externamente à materialidade ideológica, identificando-se com a noção de manipulação da linguagem a serviço do poder.

A despeito de assistir razão ao autor quando afirma existência do componente ideológico na cultura jurídica, é necessário reconhecer que o método empregado nas universidades e demais institutos de pesquisa jurídica é indubitavelmente científico. O que se verifica, em verdade, é uma natureza ambivalente nos escritos relativos à matéria jurídica: a par de um trabalho digno do status conferido pelo método científico, apresenta-se discurso de cunho nitidamente subjetivo e ideológico, atravessado em face da tentação que decorre do indiscutível poder de transformação da realidade social que ostenta o objeto da pesquisa jurídica.

Essa confusão metodológica faz das obras jurídicas um grande amontoado de cultura, que ora ostenta natureza científica, ora se revela conhecimento de outra sorte. Aquilo que o mercado editorial apresenta como doutrina jurídica pode não ter nada de verdadeiramente doutrinário e o que é colocado como ciência jurídica pode, em verdade, ser pura doutrina. Na prática, contudo, o que se percebe, na grande maioria dos casos, é a reprodução, nos livros, do que é o direito na realidade: uma mistura entre ciência e conhecimento comum, de forte cunho ideológico.

Com efeito, a investigação histórica, sociológica, filosófica ou dogmática do direito (sendo esta última a pesquisa do conteúdo do direito positivo legal ou jurisprudencial) são expressões do direito enquanto ciência. De fato, compreende-se, basicamente, como “ciência” a produção do conhecimento obtido segundo o método científico, que prima pela objetividade da investigação e reconhece a limitação da veracidade do produzido, em face da possibilidade de desconstrução da teoria por pesquisa posterior. Nesse sentido, o conhecimento produzido pela pesquisa jurídica de cunho histórico, filosófico ou sociológico, sem dúvida, apresenta natureza científica, porquanto o método empregado para a elaboração da teoria é o característico da ciência social aproximada e as conclusões obtidas não se infirmam pelo dogma da indiscutibilidade. Do mesmo modo, no que tange à pesquisa dogmática, consistente no estudo do direito positivo (legal ou jurisprudencial), a organização do caos legislativo por assunto, com a explicitação das teorias ou princípios que o embasam é atividade de cunho nitidamente científico. A despeito de ser denominado de “doutrina”, tal estudo dogmático, em verdade, representa trabalho científico, que em nada difere do realizado pelo biólogo, que, em meio ao caos da multiplicidade de seres vivos, elenca, explicita e sistematiza, produzindo conhecimento palatável a quem se dedique à leitura de suas conclusões. A pesquisa dogmática é a sistematização da obra humana do direito, tal como a taxonomia é a estruturação sistemática da obra da natureza.

Ocorre que, a par dessa produção evidentemente científica, existe no conhecimento jurídico o discurso que, no dizer de Warat, representa mero “saber ideológico”.

“Doutrina”, conforme definida estritamente pelo saber jurídico, é uma das “fontes do direito”, ao lado da lei, do costume e da jurisprudência. Se a expressão doutrinária é “fonte” do conhecimento jurídico, por reconhecer direitos costumeiros ou, mediante a atividade interpretativa, definir o alcance de textos jurídicos, então é forma de produção do direito. Logo, lei, doutrina e jurisprudência criam direito, razão pela qual, desde o antigo Direito Romano, é a Doutrina invocada pelos julgadores como fundamento de suas decisões. Essa criação, operada pela atividade doutrinária, não é atividade científica. Quando um jurisconsulto escreve uma obra descrevendo o conteúdo da lei, elencando a jurisprudência pertinente ou apresentando as diferentes visões doutrinárias sobre determinado texto legal, está realizando atividade científica. Quando, porém, emite opinião sobre o direito, sustentando o que deveria ser a lei, o costume jurídico ou a jurisprudência, está praticando a ideologia. É o caso em que a atividade passa a ser “prudência”, em lugar de “ciência”.

Ainda quando a opinião doutrinária esteja embasada em forte pesquisa filosófica, sociológica, histórica e dogmática, carregará a natureza ideológica. Com razão, o fato de a opinião embasar-se em estudo científico não retirará sua natureza axiológica, subjetiva, opinativa - ideológica. Ter-se-á, no máximo, fundamento racional para o discurso ideológico - o que, por vezes, pode representar sofisma, por esconder manipulação da linguagem, ante a incompatibilidade entre as conclusões. Em verdade, a pesquisa jurídica científica pode servir de argumento de autoridade para o discurso doutrinário-ideológico, mas com ele não se confunde.

A conclusão a que se chega, portanto, é de que o direito é uma mescla entre ciência e ideologia. A produção do direito, pela via doutrinária, assim como na forma legislativa e jurisprudencial, é manifestação ideológica, que visa à mera promoção de um pensamento humano. A pesquisa dogmática do direito positivo (legal ou jurisprudencial), bem como as investigações filosóficas, históricas ou sociológicas do direito, por sua vez, são atividade científica, que se podem realizar com o mesmo grau de objetividade admissível nas ciências sociais. O estudo do direito, portanto, é ciência. O “fazer” do direito – que inclui o “doutrinar” – é “prudência”, mero discurso ideológico, embasado no necessário respeito fático pelo poder social. A problemática metodológica está em confundir doutrina com ciência jurídica – o que dificilmente se conseguirá superar, vez que associar opinião ao trabalho científico já se tornou técnica própria, aceitável no círculo da pesquisa jurídica.

sexta-feira, 15 de abril de 2011

Fundamento legal da pensão militar de ex-combatente

por Cláudio Ricardo Silva Lima Júnior

A Lei n.º 3.765/60 dispõe sobre as pensões militares. Em seu art. 26, estabelece que os ex-combatentes da campanha do Uruguai e Paraguai, que percebessem pensão especial criada por decreto anterior, bem como suas viúvas e filhas, e os ex-combatentes da revolução acreana, também beneficiados com uma pensão vitalícia e intransferível definida por lei anterior, passariam a perceber a pensão correspondente à deixada por um 2º sargento.

Posteriormente, a Lei n.º 4.242/63, em seu art. 30, dispõe que é concedida aos ex-combatentes da Segunda Guerra Mundial, da FEB, da FAB e da Marinha, que participaram ativamente das operações de guerra e se encontram incapacitados, sem poder prover os próprios meios de subsistência e não percebem qualquer importância dos cofres públicos, bem como a seus herdeiros, pensão igual à estipulada no art. 26 da Lei n.º 3.765, de 4 de maio de 1960, ou seja, a pensão em valor correspondente à deixada por um 2º sargento.

Quatro anos depois, a Lei n.º 5.315/67 regulamentou o conceito de ex-combatente e estabeleceu direitos adicionais aos veteranos de guerra que pretendessem permanecer em atividade no serviço público civil ou militar.

A Lei n.º 6.592/78 criou uma nova pensão especial aos ex-combatentes da Segunda Guerra Mundial, inacumulável e intransferível, no valor de duas vezes e meia o salário-mínimo, devida àqueles incapacitados definitivamente para o trabalho.

Somente com a Lei n.º 7.424/85 regulamentou-se a transferência da pensão a que se refere a Lei n.º 6.592/78 para os dependentes do militar.

Com o advento da Constituição Federal de 1988, o art. 53, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, assegurou que o ex-combatente, conforme definido na Lei n.º 5.315/67, tem direito a uma pensão correspondente à deixada por um 2º tenente. Ou seja, reconhece o direito previsto na Lei n.º 4.242/63 na nova ordem jurídica, e este com alterações, a saber: a) generaliza o direito para todo ex-combatente, independentemente de ter-se tornado incapaz ou sem condições de custear a si próprio; b) o benefício seria devido no valor correspondente à pensão deixada por um 2º tenente, e não por um 2º sargento. É o seu teor:

“Art. 53. Ao ex-combatente que tenha efetivamente participado de operações bélicas durante a Segunda Guerra Mundial, nos termos da Lei nº 5.315, de 12 de setembro de 1967, serão assegurados os seguintes direitos:
I - aproveitamento no serviço público, sem a exigência de concurso, com estabilidade;
II - pensão especial correspondente à deixada por segundo-tenente das Forças Armadas, que poderá ser requerida a qualquer tempo, sendo inacumulável com quaisquer rendimentos recebidos dos cofres públicos, exceto os benefícios previdenciários, ressalvado o direito de opção;
III - em caso de morte, pensão à viúva ou companheira ou dependente, de forma proporcional, de valor igual à do inciso anterior;
IV - assistência médica, hospitalar e educacional gratuita, extensiva aos dependentes;
V - aposentadoria com proventos integrais aos vinte e cinco anos de serviço efetivo, em qualquer regime jurídico;
VI - prioridade na aquisição da casa própria, para os que não a possuam ou para suas viúvas ou companheiras.
Parágrafo único. A concessão da pensão especial do inciso II substitui, para todos os efeitos legais, qualquer outra pensão já concedida ao ex-combatente."

A Lei n.º 8.059/90 estabelece novo regramento sobre a pensão devida ao ex-combatente e aos seus dependentes, excluindo, por exemplo, as filhas maiores de 21 anos de idade do direito de receber a pensão.

O Supremo Tribunal Federal entende que o direito de receber a pensão de ex-combatente é regido pelas normas legais em vigor na data do evento morte. É o consignado no seguinte Aresto:

"STF. PRIMEIRA TURMA.Publicação DJe-034 DIVULG 18-02-2011 PUBLIC 21-02-2011 EMENT VOL-02467-02 PP-00413Parte(s) RELATORA: MIN. CÁRMEN LÚCIA

EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. PREVIDENCIÁRIO. EX-COMBATENTE. PENSÃO ESPECIAL. REGÊNCIA PELA LEGISLAÇÃO VIGENTE NA ÉPOCA DO ÓBITO DO INSTITUIDOR. PRECEDENTES. AGRAVO REGIMENTAL AO QUAL SE NEGA PROVIMENTO."

O entendimento dominante na jurisprudência do STF e do STF é de que a concessão da pensão deve obedecer aos requisitos estabelecidos na legislação vigente na época do óbito, sendo o benefício devido, igualmente, no valor disposto na Lei vigente no momento do evento morte.

domingo, 13 de março de 2011

Da necessária restritividade no conceito de ato administrativo discricionário

por Cláudio Ricardo Silva Lima Júnior

Diz-se que determinado ato administrativo é discricionário quando a lei estabelece ao administrador público a faculdade de escolha dentre duas ou mais possibilidades legítimas de atuação, dando ensejo a juízo de oportunidade e conveniência quanto à edição do ato. A correta definição quanto ao que efetivamente se enquadra no prefalado conceito é tarefa das mais importantes à teoria do direito administrativo, sobretudo, em face da discussão acerca do controle judicial da função administrativa.

Com efeito, o aspecto mais marcante do ato administrativo discricionário é a impossibilidade de controle judicial sobre o dito "mérito" do ato, a saber, a valoração dos motivos para a definição de seu objeto. Noutras palavras, em se tratando de ato indubitavelmente discricionário, não cabe ao Poder Judiciário substituir a Administração Pública no juízo de oportunidade e conveniência quanto à edição do ato, vez que estes constituem a própria essência da função administrativa. De fato, apreciar o mérito do ato administrativo consistiria na negação da própria razão de ser do órgão executivo, convertendo o Judiciário em Administrador-mor de todos os Poderes do Estado.

Sendo pacífico que não se pode admitir tal circunstância, a doutrina clássica pontuou que são considerados discricionários os atos nos quais a lei expressamente conceda ao administrador a faculdade de edição. Trata-se das situações em que o legislador utiliza a expressão "a critério da Administração" ou "no interesse da Administração", que indicam, para além de qualquer dúvida, que o ato deve ser praticado apenas quando o administrador o julgue conveniente e oportuno, em face da análise de um caso particular. Exemplo clássico de tal realidade jurídica é a conhecida licença sem vencimentos para tratar de interesses particulares, que a Lei 8.112/90 faculta ao administrador conceder ao servidor público:

"Art. 91. A critério da Administração, poderão ser concedidas ao servidor ocupante de cargo efetivo, desde que não esteja em estágio probatório, licenças para o trato de assuntos particulares pelo prazo de até três anos consecutivos, sem remuneração. (Redação dada pela Medida Provisória nº 2.225-45, de 4.9.2001)

Parágrafo único. A licença poderá ser interrompida, a qualquer tempo, a pedido do servidor ou no interesse do serviço. (Redação dada pela Medida Provisória nº 2.225-45, de 4.9.2001)"

Percebe-se, assim, que não há para o servidor público "direito subjetivo" à concessão da licença sem remuneração. Cabe ao administrador, em juízo de oportunidade e conveniência, concedê-la ou, considerando necessária a presença do servidor para o exercício da função pública, denegar o pedido. O ato é puramente discricionário, não cabendo ao Judiciário apreciar de tal juízo de conveniência, vez que, do contrário, estaria substituindo o Administrador em sua função típica. Importa ressaltar, contudo, que a legalidade do ato permanece passível de controle pelo Judiciário. A finalidade do ato é sempre vinculada, logo, sujeita ao exame judicial. Dessa forma, é possível afirmar que, em que pese não possa o juiz apreciar o mérito do ato administrativo discricionário, tem o dever legal de decidir os "limites da discricionariedade".

Ocorre, porém, que uma segunda - e mais recente - parcela da doutrina tem afirmado se inserirem no rol dos atos discricionários os atos administrativos em que o suporte fático legal se utiliza de conceitos jurídicos indeterminados. Afirma tal corrente que as hipóteses legais em que o ato administrativo depende da valoração de conceitos como "probidade", "boa fé", "conduta escandalosa na repartição" configuram circunstâncias de discricionariedade, consistindo a definição de tais conceitos no mérito do ato administrativo. Sob essa perspectiva, ressalvadas as hipóteses das zonas de certeza positiva e negativa, inerentes aos conceitos jurídicos abertos, não caberia ao Judiciário apreciar o sentido dado pela Administração ao conceito indeterminado (em efetiva zona "cinzenta", de "incerteza" ou de "indeterminação"). Em decorrência, a se tomar como verdadeira tal acepção, estaria o Judiciário proibido de reavaliar o sentido dado pelo administrador ao conceito jurídico indeterminado, sob a alegação de que a interpretação do administrador seria, na realidade, o juízo, no caso concreto, da oportunidade e conveniência do ato. Não é difícil perceber que tal teoria não procede.

De fato, as duas situações que a mencionada doutrina pretende considerar como aptas a caracterizar o ato discricionário são diametralmente opostas. Quando a lei estabelece expressamente que determinado ato se realizará "no interesse da Administração", está-se diante de uma situação de inevitável discricionariedade, circunstância esta necessária à plena consecução da função administrativa. Situação totalmente diversa é quando a lei especifica que determinado ato deva ser praticado quando verificado pressuposto fático definido mediante conceito jurídico indeterminado - porque outro conceito não quis ou não pôde o legislador eleger quando da edição da norma jurídica. No primeiro caso, não há direito subjetivo para o administrado; no segundo, há o direito inquestionável à edição/não edição do ato, quando verificada a situação fática prescrita na norma. O fato de o suporte da norma se compor de conceito jurídico indeterminado é irrelevante para efeito desta constatação. Apesar de definido em termos de conceito indeterminado, há direito subjetivo, que será elucidado por uma tarefa de interpretação do conteúdo da norma.

Note-se, portanto, que não faz sentido considerar como discricionário e - consequentemente, impassível de apreciação de mérito pelo Judiciário - um ato administrativo editado em face de norma que prescreve a obrigatoriedade de sua edição ou não edição quando da verificação de situação de fato, ainda que descrita por conceito jurídico indeterminado. Para ilustrar o que se afirma, considere-se a hipótese de edição do ato administrativo da penalidade de demissão de servidor público, previsto na já referida Lei 8.112/90. Dispõe a legislação:

"Art. 132. A demissão será aplicada nos seguintes casos:
I - crime contra a administração pública;
II - abandono de cargo;
III - inassiduidade habitual;
IV - improbidade administrativa;
V - incontinência pública e conduta escandalosa, na repartição;

[...]

XIII - transgressão dos incisos IX a XVI do art. 117."

Depreende-se do texto legal que há um rol taxativo de circunstâncias nas quais é devida a aplicação da penalidade de demissão. Uma delas, prevista no inciso V, utiliza conceito jurídico indeterminado, a saber, "conduta escandalosa" na repartição. Ora, definir o que representa ou não conduta "escandalosa" será determinante para a aplicação ou não da penalidade de demissão. De acordo com a teoria que ora se critica, o fato de "escandalosa" ser conceito jurídico indeterminado faz com que o ato de demissão, pautado nesse dispositivo, seja considerado discricionário, representando a escolha, por parte do administrador, quanto ao conteúdo da expressão "escandalosa" o próprio mérito do ato administrativo de demissão. Trata-se de acepção perigosa e ilegítima, porquanto acabe por conduzir ao afastamento do Judiciário para a apreciação de um direito.

De fato, a norma no art. 132, inciso V, da Lei 8.112/90, ao mesmo tempo em que tipifica uma conduta passível de penalidade, prescreve um direito subjetivo ao administrado: se sua conduta não foi "escandalosa", tem o servidor público o direito subjetivo a não ser demitido. Por conseguinte, caso se considere como discricionário o ato de demissão na hipótese do inciso V do artigo acima transcrito, ter-se-á o afastamento do Judiciário da apreciação de uma possível lesão ou ameaça a DIREITO, o que configura ferimento ao princípio constitucional da inafastabilidade da jurisdição (art. 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal). De fato, não cabe à Administração Pública a última palavra quanto ao sentido de uma expressão contida no texto legal. O Judiciário tem por função típica exatamente isto: dizer o direito, significado literal da expressão "jurisdição", do latim, "jus dicere".

Assim, parece razoável concluir que somente se pode considerar discricionário, apto a impedir a apreciação judicial de mérito, o ato administrativo decorrente de expressa faculdade legal quanto a sua edição. Qualquer disposição legal impositiva da realização ou não realização de ato administrativo deve ser compreendida como definidora de situação vinculada ao administrador, independentemente de se o fato descrito na norma é apresentado com conceito jurídico indeterminado. Uma vez que o texto legal ensejador de ato administrativo discricionário não gera direito, apropriado que se entenda ser a Administração a última instância de julgamento quanto à conveniência da edição. No caso de normas de aplicação nitidamente vinculada, porém, não há que falar em discricionariedade pela mera existência de conceito jurídico indeterminado, cabendo ao Judiciário a última palavra quanto ao conteúdo da norma jurídica e, portanto, quanto à necessidade ou não de edição do ato em um caso concreto. Dessa forma, tem-se por necessária a definição do conceito de discricionariedade de forma estrita, sob pena de violação ao princípio basilar constitucional da inafastabilidade da jurisdição.

REFERÊNCIAS:

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm. Acesso em: 13 mar. 2011.

BRASIL. Lei 8.112, de 11 de dezembro de 1990. Dispõe sobre o regime jurídico dos servidores públicos civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8112cons.htm. Acesso em: 13 mar. 2011.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 20. ed. São Paulo: Atlas, 2007.

GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo. 8. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2003.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 32. ed. São Paulo: Malheiros, 2006.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2007.

sábado, 19 de fevereiro de 2011

Reflexos processuais da impossibilidade da prisão civil do depositário infiel

por Cláudio Ricardo Silva Lima Júnior

A ilicitude da prisão civil do depositário infiel, determinada pela Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), ratificada pelo Decreto Legislativo n.º 27/1992, foi reconhecida pelo Sumpremo Tribunal Federal em sua Súmula Vinculante n.º 25. Em que pese seja nobre a intenção de assegurar direitos fundamentais, é preciso atentar para os reflexos nefastos do posicionamento, sobretudo na eficácia dos pronunciamentos judiciais e na efetividade do processo.

No processo civil, a penhora dos bens do devedor resulta, em regra, na instituição de depósito. No mais das vezes, o depósito recai sobre a própria pessoa do devedor. Em se tratando de bens imóveis, não há problema: o ato de restrição é averbado junto à matrícula do imóvel, no Registro Imobiliário competente, e qualquer negócio jurídico posterior à averbação sujeita-se aos efeitos da constrição judicial ao processo. A imissão de posse em bem imóvel se dá por um ato escrito da autoridade judicial, efetivada materialmente pelo oficial de justiça, que se pode valer da força policial para destruição de obstáculos e remoção de coisas e pessoas.

O mesmo não acontece quando penhora e depósito são instituídos sobre bem móvel. Sendo fraudulento o devedor, a ele se torna possível ocultar a localização do bem objeto da garantia do juízo. Nesse caso, apesar de qualquer transmissão da propriedade não ostentar eficácia relativamente ao processo, com a alienação, a alteração da localização física do bem acaba por dificultar extremamente a execução. Com efeito, pode ocorrer de o depositário judicial ou o depositário-devedor esconder diligentemente o bem, de modo que não seja localizado pelo juízo, a despeito de se envidarem todos os esforços no cumprimento de um mandado de busca e apreensão. Ainda, se o devedor, que permanece com o domínio jurídico do bem penhorado, efetuar alienação, por exemplo, remetendo a coisa para território estrangeiro, tornar-se-á excessivamente custosa e dificultosa qualquer tentativa de execução - o que pode acabar por instilar no exeqüente o desânimo, ocasionando a desistência do procedimento executivo.

Antes da aplicação no direito interno do mencionado dispositivo do Pacto de San José da Costa Rica, a situação acima tratada era facilmente resolvida pelo juízo da execução. Decretada a prisão civil do depositário infiel, esta funcionava como eficiente instrumento de coerção indireta, fazendo com que, na quase totalidade dos casos, o bem fosse voluntariamente apresentado ao juízo, antes mesmo da efetivação da prisão. Com a impossibilidade do referido expediente, multiplicam-se nos processos de execução fraudes de toda sorte, amparadas, inclusive, por habeas corpus preventivos, que impedem ao juiz da execução a decretação específica da prisão civil de determinado depositário. Não é difícil compreender que o referido entendimento tem comprometido seriamente a efetividade do processo judicial.

É fato que a subtração, supressão, destruição, dispersão ou deterioração da coisa penhorada constituem o crime previsto no art. 179 do Código Penal Brasileiro. Possível seria, portanto, a efetivação da prisão do depositário infiel via processo penal. Ocorre, porém, que a prisão penal representa reprimenda, que somente pode ser executada quando do trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Qualquer prisão anterior ao trânsito em julgado somente se pode legitimamente verificar quando satisfeitos os requisitos específicos da prisão provisória, da prisão preventiva ou do flagrante delito. Não há “antecipação de tutela” no âmbito penal. O que pode ensejar a prisão processual é a demonstração efetiva de que há risco iminente à coletividade ou perigo de fraude à instrução processual penal – requisitos de difícil demonstração, quando o que se busca é a efetividade de um processo civil. Considerando os infindáveis instrumentos de defesa e a duração média do processo penal, conclui-se, claramente, que tal via não tem o condão de produzir a esperada eficácia do provimento judicial de execução civil.

A solução, portanto, passa por uma reformulação do entendimento dos princípios constitucionais que, na atual ótica do Supremo, impedem a prisão civil do depositário infiel. De fato, não há afronta alguma à dignidade humana em determinar que alguém seja preso porque, injustificadamente, se recusa a devolver algo que recebeu a título precário. Com efeito, prolongar indevidamente a posse de algo que não é seu é tomar para si um dos atributos da propriedade. É praticar furto da utilidade da propriedade. É essa a lógica que norteia, por exemplo, a execução da ação de despejo, a qual, apesar da violência material que representa, se mostra necessária, sob pena de negativa ao direito de propriedade.

O que o Supremo entende como direito fundamental agregado ao rol constitucional em virtude da Convenção Americana de Direitos Humanos, em face do § 3º do art. 5º, da Constituição Federal, trazido pela Emenda Constitucional 45/2004, poderia perfeitamente ser interpretado como norma “constitucional” inconstitucional, por ferir, no caso concreto, direitos fundamentais previstos no próprio artigo 5º. Sem dúvida, na medida em que a impossibilidade de prisão do depositário infiel torna inviável a execução civil, resta desrespeitada a garantia constitucional do respeito à coisa julgada e, numa acepção ampla, ao direito adquirido. Quando não inviabiliza, mas retarda a execução, o que se entendeu como “direito” constitui verdadeiro entrave à razoável duração processo, trazendo a lume a discussão quanto a se resta qualquer valor ao princípio da inafastabilidade da jurisdição.

Enquanto não se enfrentar com seriedade a questão, entendendo que não faz sentido um processo sem resultados, parcela significativa do que se faz no Judiciário resultará em um completo vazio. Se o Estado tomou para si o dever de solucionar conflitos, deve fazê-lo satisfatoriamente. A mudança de paradigma quanto ao que representa a “dignidade” do devedor é indispensável para tanto.

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Sobre desenvolvimento, deslizamentos e mortes

por Cláudio Ricardo Silva Lima Júnior

Em abril de 2010, mais de 200 pessoas foram soterradas e 47 morreram em um deslizamento de terra no Morro do Bumba, no Rio de Janeiro. Ao final, a constatação da causa da tragédia: as construções residenciais haviam sido realizadas sobre um antigo depósito de lixo. Em face da impropriedade do solo, o desabamento seria questão de tempo.

A cena se repete - agora com maior gravidade. Na última terça-feira, dia 11, um forte temporal atingiu o Estado do Rio de Janeiro, deixando mais de 500 mortos e milhares de desabrigados, principalmente na região serrana. Os municípios mais atingidos foram Nova Friburgo, Teresópolis, Petrópolis, Sumidouro e São José do Vale do Rio Preto. Houve interrupção nos serviços de água, luz e telefone, interdição de estradas e destruição de pontes. Bairros ficaram isolados. Equipes de resgate chegam com dificuldade às áreas afetadas. O cenário é de desespero, sofrimento e morte.

A perplexidade que toma conta de quem quer que acompanhe os fatos induz ao inevitável questionamento: até quando terá a sociedade de suportar um recorde após outro do poder mortífero da incompetência da administração pública? Até quando se governará pela mera contingência, sem se encarar o desafio de projetar um País verdadeiramente grande, digno do respeito da comunidade internacional?

Evidentemente, as tragédias que se repetem no Estado do Rio de Janeiro são reflexo do crescimento desordenado das cidades e da inoperância do Estado frente a questões cruciais de defesa social. E atente-se que se trata do segundo Estado mais rico da federação! É para além de qualquer dúvida que se faz urgente uma transformação radical na política urbana nacional. Enquanto se comemoram índices elevados de crescimento econômico, com projeções otimistas de que, em dez anos, estaria o País situado no grupo das nações mais ricas do planeta, o passado pobre cobra seu tributo, ceifando vidas e anos de suor e labor de quem perde tudo o que conquistou em poucas horas de um previsível temporal. De fato, é preciso mudar drasticamente a postura da administração pública frente ao fenômeno mais aparente do moderno desenvolvimento econômico, a saber, o fortalecimento da urbanização.

Com efeito, a sociedade brasileira não tolera mais a humilhação da exposição internacional decorrente da evidente incompetência dos sucessivos governos em planejar; não tolera mais ter de fazer as vezes do Estado, amparando vítimas de ocorrências normais da natureza, colocadas cuidadosamente pela mídia como "tragédias naturais", em face do apelo à solidariedade humana; não tolera mais a dor da morte, de pobres inocentes, desfavorecidos no sistema econômico capitalista, que se colocam em condições de risco pela necessidade humana de habitação, construindo em barrancos, sem qualquer segurança, por falta de opção, por simplesmente não terem para onde ir.

É preciso que o Executivo reconheça que, assim como, para alguns, de sorte a evitar determinados comportamentos, é necessária a reprimenda estabelecida pela lei criminal, para outros, é imprescindível a força cogente do Estado para o cumprimento de regras básicas de organização civil - em seu próprio benefício. Em uma mesma parcela da população de baixa condição econômica, enquanto alguns, por livre e espontânea vontade, jamais se instalarão em áreas de risco, buscando construir a vida, até mesmo, em outro Estado ou País, outros, por ausência da noção do perigo, por excessiva "coragem", ou mesmo pela imprudente conveniência em permanecer próximo a amigos e familiares, constroem casas humildes nas encostas de morros e na beira de rios, pondo em risco a própria vida a cada noite de sono plenamente dormida. Nesse cenário, necessário que o Estado interfira, inserindo nas políticas da ordenação urbana regras proibitivas da instalação em áreas de risco, seguidas de pesada fiscalização que assegure seu efetivo cumprimento - além, naturalmente, de políticas sociais que possibilitem a construção de uma vida digna, longe das regiões-problema.

A inércia do Estado em controlar a construção civil, tal como ocorreria caso o crime não fosse tratado e reprimido, acarreta a insegurança social e o verdadeiro caos em situações-limite. O crescimento desordenado das cidades é incompatível com a noção de desenvolvimento. O esperado desenvolvimento econômico somente se verifica com melhoria na qualidade de vida das pessoas. É preciso enfrentar a questão urbana com seriedade e consciência de seu papel destrutivo dos sonhos de riqueza desta nação. Se não se pode desfazer o passado, sendo necessário conviver com grandes populações já instaladas em áreas de risco (e de onde nem o Estado, nem ninguém, tem como transferir), é possível e necessário planejar e efetivamente cumprir um plano diretor a partir de agora. Somente assim se pode pensar em desenvolvimento.