quarta-feira, 31 de outubro de 2018

A Lei n.º 13.655/2018 e as alterações na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro: o novo regime de motivação das decisões judiciais e outras questões processuais nas esferas judicial e administrativa – percepções iniciais

por Cláudio Ricardo Silva Lima Júnior

Resumo: O texto examina as inovações trazidas pela Lei n.º 13.655/2018 à Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, que estabeleceram deveres adicionais de fundamentação e conteúdo para decisões jurídicas nos âmbitos administrativo e judicial que fixem a interpretação de valores abstratos ou conceitos jurídicos abertos ou indeterminados, notadamente no campo do direito público. É efetuada uma análise geral dos dispositivos, com indicação das disposições que foram objeto de veto e da aplicação que se pode esperar para os dispositivos à luz dos valores e demais previsões do ordenamento jurídico.

Palavras-chave: Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. Fundamentação das decisões judiciais e administrativas. Interpretação jurídica. Conceitos jurídicos abertos ou indeterminados. Ponderação de princípios.

Abstract: The text examines the innovations introduced by Law no. 13,655/2018 to the Law of Introduction to the Norms of Brazilian Law, which established additional duties of rationale and content for legal decisions in the administrative and judicial spheres that fix the interpretation of abstract or open or indeterminate legal concepts, notably in the field of public law. A general analysis of the devices is carried out, indicating the provisions that have been vetoed and the application that can be expected for the devices in the light of values and other provisions of the legal order.

Keywords: Law of Introduction to the Norms of Brazilian Law. Rationale of judicial and administrative decisions. Legal interpretation. Open or indeterminate legal concepts. Weighting of principles.

Sumário: Introdução. 1. Motivação das decisões judiciais, administrativas e de controle financeiro e orçamentário na aplicação de normas jurídicas de conteúdo aberto ou indeterminado. 2. Necessidade de indicação expressa das consequências jurídicas e administrativas da decisão que decretar a invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa. 3. Dever de consideração dos obstáculos e dificuldades reais do administrador público na interpretação de normas administrativas e regras para a aplicação de sanções a agentes públicos. 4. Dever de criação de regime de transição em decisões que fixem nova interpretação sobre norma de conteúdo indeterminado . 5. Irretroatividade de nova interpretação de cláusula geral para efeito de invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa. 6. Previsão vetada: ação declaratória da validade de ato público, de rito especial, com sentença de eficácia erga omnes. 7. Possibilidade de celebração de compromisso administrativo com o fito de eliminar irregularidade, incerteza jurídica ou situação contenciosa na aplicação do direito público. 8. Possibilidade de fixação de indenização por dano processual no bojo da própria decisão do processo administrativo ou judicial. 9. Responsabilidade pessoal do agente público por decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro. 10. Possibilidade de realização de consulta pública para a edição de atos normativos pela Administração Pública no âmbito dos três Poderes. 11. Estímulo à edição de súmulas administrativas, regulamentos, respostas a consultas e demais atos tendentes a reforçar a segurança jurídica. Conclusão. Referências.


Introdução

A Lei n.º 13.655, de 25 de abril de 2018, incluiu 10 (dez) novos artigos na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), Decreto-Lei n.º 4.657, de 4 de setembro de 1942, tendo por escopo introduzir “disposições sobre segurança jurídica e eficiência na criação e na aplicação do direito público”.

Dentre as inovações do novel diploma, pode-se destacar a instituição de normas expressas regulando a motivação das decisões jurídicas nas esferas administrativa, controladora e judicial quando da aplicação de normas de conteúdo aberto ou indeterminado, e, ainda, a interpretação de normas relativas à administração pública, as decisões interpretativas, as decisões que impliquem invalidação de atos, contratos, ajustes ou processos administrativos, a celebração de compromisso para eliminar irregularidade, incerteza jurídica ou situação contenciosa na aplicação do direito público, a fixação de compensação por dano processual, o estabelecimento da responsabilidade pessoal do agente público em caso de dolo ou erro grosseiro, dentre outras medidas tendentes a reforçar a segurança jurídica na criação e aplicação do direito público.

A norma ostenta evidente importância no cenário jurídico, com impacto significativo na atuação dos agentes públicos em geral, notadamente quanto à aplicação do direito público, na medida em que instituiu novos critérios de validade para a manifestação das diferentes autoridades, impondo novo ônus argumentativo para a densificação de valores jurídicos abstratos ou normas jurídicas de conteúdo indeterminado, cujo significado e efeitos são definidos à luz das circunstâncias do caso concreto.

O presente texto tem por objetivo o exame inicial das novas regras, buscando-se identificar as alterações que introduziu na ordem jurídica e a mudança de postura que se exige dos órgãos e agentes públicos no desempenho de suas atribuições.

1. Motivação das decisões judiciais, administrativas e de controle financeiro e orçamentário na aplicação de normas jurídicas de conteúdo aberto ou indeterminado  

O novo art. 20, da Lei de Introdução, passa a dispor que “Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão”, asseverando, ainda, que “A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas.” (BRASIL, 2018, p. 1)

Significa dizer que um novo requisito de validade para a motivação das decisões jurídicas que versem sobre normas de conteúdo aberto ou indeterminado é a “consideração das consequências práticas da decisão”, sendo recomendável aos juízes, membros de tribunais e demais agentes públicos que, na aplicação de princípios jurídicos ou valores do sistema normativo, façam constar expressamente da fundamentação a referência ao novo dispositivo legal da Lei de Introdução, efetuando o devido cotejo entre a solução proposta e as “consequências práticas da decisão”. Por consequências “práticas” devem ser compreendidas não apenas as consequências jurídicas, mas, também, as de ordem econômica, política e social, analisando-se os efeitos da decisão administrativa ou judicial em sentido amplo.

Evidentemente, as consequências que interessam ao legislador, ao ponto de interferirem na validade da decisão, inclusive judicial, não são, prioritariamente, os efeitos da decisão no plano fático individual, cuja parte interessada se encontra representada no processo, participa do embate dialógico do qual resulta a decisão e tem legitimidade para impugná-la na via recursal, mas, sobretudo, sua repercussão no âmbito coletivo, notadamente o impacto financeiro e orçamentário de decisões judiciais que interfiram na execução de políticas públicas, a exemplo da judicialização da saúde (v. g., condenação do Estado na obrigação de fazer consistente em realizar determinados procedimentos médicos ou no fornecimento de medicamentos de alto custo).

Ao que nos parece, a preocupação maior do legislador, ao exigir a consideração das consequências “práticas” da decisão funda-se, precisamente, em razões de ordem financeira e orçamentária, tendo em vista a aprovação recente, pela Emenda Constitucional n.º 95 (PEC do Teto dos Gastos Públicos), da política limitação de despesas nos órgãos e entidades da administração direta e indireta, nos três Poderes e nos três níveis da federação.

Nos termos do parágrafo único, quando se tratar de decisão que importe em invalidação de norma, ajuste, processo, ato ou contrato administrativo, deve o julgador, ainda, fazer referência explícita à “necessidade e adequação” da medida, cabendo efetuar um cotejo em face das “possíveis alternativas” à anulação ou ao reconhecimento da nulidade. Novamente, doravante, é de bom alvitre que o juiz ou administrador público faça menção expressa na fundamentação às referidas expressões e ao dispositivo legal em apreço, comparando os cenários nos quais é mantido ou excluído do ordenamento o ato viciado. 

Os dispositivos consagram no plano do direito positivo a técnica interpretativa da ponderação de interesses, defendida de há muito por Dworkin e Alexy e já trabalhada, para as decisões judiciais, no texto do Novo Código de Processo Civil. (MARMELSTEIN, 2018, p. 373-390) Nos termos do art. 489, § 1º, do NCPC, “Não se considera fundamentada” qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que: a) se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida; b) empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso; c) invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão; d) não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador; e) se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos; f) deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento. (BRASIL, 2015, p. 1)

No caso da previsão inserida no texto da LINDB, a norma se destina às decisões nas esferas “administrativa, controladora e judicial”. Por esfera “controladora”, entendemos que o legislador quis se referir ao controle administrativo, financeiro e orçamentário efetuado pelo Congresso Nacional, pelos Tribunais de Contas e pelos órgãos de controle interno de cada Poder, nos termos do art. 70, da CF/88, os quais, a nosso ver, integram o gênero mais amplo da atividade “administrativa”, pelo que sua menção se revelaria atécnica, porquanto, a rigor, desnecessária. (BRASIL, 1988, p. 1) Com efeito, não faria sentido que, com a expressão “controle”, tenha o legislador pretendido referir ao sistema de freios e contrapesos estabelecido na Constituição para a atuação harmônica entre os Poderes, vez que esse integra decisões de natureza administrativa, legislativa e jurisdicional, contemplando, por conseguinte, medidas de ordem política, cuja motivação sequer é exigida do agente público.

A razão de ser da norma é, como explicita a ementa da lei, fomentar a segurança jurídica, tendo em vista a existência de decisões que invocavam princípios ou normas jurídicas abertas ou indeterminadas de forma nitidamente deficiente, sem demonstrar as razões que autorizavam a aplicação do instituto no caso concreto, com o devido cotejo de interesses, detalhando-se o juízo de necessidade, adequação e proporcionalidade em sentido estrito.  No plano judicial, a inclusão de norma que regula a fundamentação na Lei de Introdução vem em reforço às regras de motivação constantes do NCPC, revelando que o alcance da norma não se limita às questões de direito público, mas a toda decisão que envolva a aplicação de conceitos jurídicos abertos ou indeterminados.


2. Necessidade de indicação expressa das consequências jurídicas e administrativas da decisão que decretar a invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa

Dispõe o atual art. 21, caput, da Lei de Introdução que “A decisão que, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, decretar a invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa deverá indicar de modo expresso suas consequências jurídicas e administrativas.” O parágrafo único estabelece que referida decisão “deverá, quando for o caso, indicar as condições para que a regularização ocorra de modo proporcional e equânime e sem prejuízo aos interesses gerais”, sendo certo que é vedado “impor aos sujeitos atingidos ônus ou perdas que, em função das peculiaridades do caso, sejam anormais ou excessivos.” (BRASIL, 2018 p. 1)

Ao decretar a nulidade ou anulação de ato ou contrato administrativo, pois, deve a autoridade julgadora explicitar as consequências jurídicas da decisão, notadamente no plano administrativo. Trata-se de novo ônus para o agente público que, a bem da segurança jurídica, não mais poderá decidir relegando a momento posterior a elucidação dos efeitos. Tal norma encontra-se em consonância com a anterior, que prevê o dever de consideração das consequências práticas antes da prolação da decisão.

Vale dizer: nos termos dos arts. 20 e 21, da LINDB, as consequências ou efeitos práticos da decisão administrativa ou judicial que versem sobre a anulação de atos públicos devem ser referidos tanto na fundamentação quanto no dispositivo do julgado.

Evidentemente, ambas as normas contemplam certo idealismo. Em casos complexos, e, mormente, naqueles com repercussão geral, aptos a alcançar uma multiplicidade de sujeitos de direito e, por vezes, toda a coletividade, é pueril esperar que a autoridade seja capaz de vislumbrar, de antemão, todos os possíveis efeitos da decisão. Assim como o legislador não consegue antever todos os fatos e circunstâncias passíveis de regulação jurídica, tanto que, precisamente por isso, apela ao uso de conceitos jurídicos abertos e indeterminados, não se pode esperar do aplicador e intérprete que seja capaz dessa façanha. Na prática, os novos artigos 20 e 21 do LINDB tentam transferir para o aplicador – e, sobretudo, para o Judiciário, que detém a última palavra sobre as interpretações – a responsabilidade pela insegurança jurídica, a qual, em verdade, é um problema que decorre da incompletude do ordenamento – questão espinhosa de cunho filosófico-jurídico, que atinge todos os sistemas jurídicos do mundo, não se revelando exclusividade do caso brasileiro. É ilusório pensar que, com uma simples “penada do legislador”, transferindo-se ao intérprete o ônus de antever as consequências da decisão, se possa solucionar o problema da segurança jurídica. Sem dúvida, a medida é louvável, porquanto representa um esforço no sentido de racionalizar as decisões e promover a cultura da segurança jurídica. Seria fantasioso, contudo, imaginar que, doravante, as decisões não mais produzirão impactos imprevistos. A pretensão de revelação antecipada dos efeitos da decisão, nesse sentido, equivale à expectativa de identificação totalizante dos fatos jurídicos pelo direito, revelada impossível após a ampla codificação do século XIX. A tentativa de regulamentação exaustiva da fundamentação pós-positivista conduz, pois, ao retorno da problemática vivenciada sob a égide da hermenêutica clássica, que, ao fim e ao cabo, resume-se ao problema da incompletude do ordenamento.

Nesse contexto, a única interpretação possível para os dispositivos é a de que a autoridade julgadora tem o dever jurídico de levar em consideração na fundamentação e explicitar no dispositivo os efeitos ou consequências práticas mais evidentes, entendidos como tais como os que decorrem diretamente da decisão, vinculando as partes e terceiros por consectário lógico do julgado, bem como os efeitos gerais à sociedade e ao Estado perceptíveis em seus aspectos essenciais pelo homem médio, além daqueles que, a despeito de não se revelarem aparentes, tenham sido suscitados pelas partes nos debates ocorridos no processo. Não há como esperar do julgador, magistrado ou administrador, uma visão abrangente da totalidade dos fatos sociais, inclusive porque, nas relações jurídicas de trato continuado e nos casos de formação de precedente administrativo ou judicial, os efeitos da decisão alcançam fatos futuros, cujas especificidades poderão contemplar circunstâncias impensáveis por ocasião da edição do julgado. Ainda no que se refere aos fatos presentes, porém, é impossível ao julgador-intérprete identificar, a priori, todos os possíveis efeitos de sua decisão.

3. Dever de consideração dos obstáculos e dificuldades reais do administrador público na interpretação de normas administrativas e regras para a aplicação de sanções a agentes públicos

A lei impõe, ademais, às autoridades encarregadas do julgamento de causas que demandem a interpretação de normas sobre gestão pública, o dever de considerar “os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados.” (BRASIL, 2018, p. 1) É o teor do caput do novo art. 22, da LINDB, o qual prevê, ainda, em seu § 1º que, “Em decisão sobre regularidade de conduta ou validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, serão consideradas as circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado ou condicionado a ação do agente”. (BRASIL, 2018, p. 1)

Tal norma, evidentemente, não pode servir de escudo para o administrador ímprobo, relapso ou negligente. Verifica-se, do texto legislativo, preocupação excessiva com a defesa de certas posições administrativas, como se as esferas administrativa e judicial, na apreciação da regularidade das condutas, já não atentassem para as circunstâncias que impõem, limitam ou condicionam o comportamento dos agentes públicos. O direito público possui vasto número de princípios próprios, muitos dos quais favoráveis ao administrador, tais como a presunção de veracidade e legitimidade dos atos administrativos e a supremacia do interesse público sobre o privado. Ademais, a boa aplicação do direito sempre exigiu que as especificidades de qualquer caso concreto, aí incluídos os relativos à gestão pública, fossem levadas em consideração quando da interpretação das normas incidentes, pelo que a nova disposição, a nosso ver, não parece acrescentar muito, soando mais como um apelo do Executivo pela prolação de decisões mais atentas à realidade do gestor público.

Em parte, o mesmo se pode dizer do § 2º, do referido dispositivo, segundo o qual, “Na aplicação de sanções, serão consideradas a natureza e a gravidade da infração cometida, os danos que dela provierem para a administração pública, as circunstâncias agravantes ou atenuantes e os antecedentes do agente.” (BRASIL, 2018, p. 1) Embora a previsão tenha o condão de estabelecer um novo requisito formal de validade para as decisões que aplicam penalidades a agentes públicos, no que tange à substância dos julgamentos, novamente, a norma pouco ou nada acrescenta, pois, do ponto de vista do conteúdo, tais circunstâncias já deveriam integrar o objeto da análise do julgador, como manifestação dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. Nos termos do art. 2º, da Lei n.º 9.784/99, a Administração Pública deve respeito aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência, cabendo, nos processos administrativos, a observância dos princípios da atuação conforme a lei e o Direito e da “adequação entre meios e fins, vedada a imposição de obrigações, restrições e sanções em medida superior àquelas estritamente necessárias ao atendimento do interesse público”. (BRASIL, 1999, p. 1) Ainda assim, é possível vislumbrar na norma certo grau de inovação, na medida em que, expressamente, traz para a esfera do direito administrativo sancionador conceitos nitidamente associados à aplicação da lei penal, como “agravantes”, “atenuantes” e “antecedentes”, impondo, ainda, o dever de o julgamento apreciar tais circunstâncias e pautar-se na “natureza” e na “gravidade” da infração cometida.

O § 3º estatui que “As sanções aplicadas ao agente serão levadas em conta na dosimetria das demais sanções de mesma natureza e relativas ao mesmo fato.” O dispositivo cria, como se vê, o dever de proceder-se a uma “dosimetria” na aplicação de sanções aos administradores públicos, atraindo, pela opção terminológica, a plêiade principiológica de aplicação da lei penal, que, consoante a jurisprudência construída nas últimas décadas, pauta-se por regras rígidas para a fixação de pena em quantidade superior ao mínimo legal. Estabelece, ademais, o dever de que sanções da mesma natureza e relativas ao mesmo fato sejam levadas em conta quando da fixação do quantum de determinada sanção.

Uma leitura apressada poderia sugerir que o dispositivo estaria a disciplinar o impacto dos “antecedentes” do administrador na quantificação de sanções por infrações da mesma natureza. Não é esse, contudo, o objeto do § 3º, pois a consideração dos antecedentes já foi determinada no § 2º e, neste momento, ao revés, fala-se em sanções já aplicadas “relativas ao mesmo fato”, o que afasta a compreensão de que se referiria a antecedentes, dado que os fatos em apreço são os “mesmos”. Aqui, a norma é protetiva do administrador e determina que, quando da fixação de uma sanção, deve ser abatido do quantum o valor das sanções já aplicadas em razão do “mesmo fato”, o que faz sentido quando se recorde que, no Brasil, vige a independência de instâncias. Assim, se um agente, por hipótese, comete ato ilícito com repercussão nas esferas administrativa, criminal e de improbidade administrativa, por consectário lógico, a indenização fixada nas esferas criminal e administrativa deve ser abatida de indenização da mesma natureza fixada, em função do mesmo fato, por exemplo, na esfera de improbidade administrativa (que abrange, entre as sanções previstas, a reparação civil).

A nosso ver, tal norma é extremamente problemática, pois a lei fala que o abatimento do quantum fixado nas demais esferas deve ocorrer durante a “dosimetria” da sanção, isto é, no momento de sua aplicação. Ocorre que, para que esse abatimento se pudesse dar de forma adequada, necessário seria que os quantitativos fixados em decisões anteriores fossem definitivos, o que significa, no âmbito judicial (criminal e de improbidade administrativa), que a decisão precisaria ter transitado em julgado, e, no âmbito administrativo, que estivesse prescrita a pretensão de revisão da decisão administrativa pela via judicial. No caso brasileiro, contudo, sabe-se que tais situações podem levar anos para sua verificação, tempo esse que, no mais das vezes, é suficiente para a prescrição da pretensão punitiva ou de reparação civil em algumas das demais esferas de atuação, ferindo de morte o princípio da independência de instâncias, cuja razão de ser é, justamente, permitir a punição do agente, assegurando a aplicação da lei e evitando a impunidade.

Em nossa perspectiva, o disposto no § 3º, do art. 22, da LINDB, não pode ser aplicado literalmente, devendo ser interpretado como um dever de consolidação das sanções aplicadas, a ser efetuado em sede de execução, após se terem tornado definitivas as condenações em todas as esferas de responsabilidade do agente (administrativa, criminal e de improbidade administrativa).

4. Dever de criação de regime de transição em decisões que fixem nova interpretação sobre norma de conteúdo indeterminado

Consoante o art. 23, da Lei de Introdução, incluído pela nova Lei n.º 13.655/2018, a decisão administrativa, controladora ou judicial “que estabelecer interpretação ou orientação nova sobre norma de conteúdo indeterminado, impondo novo dever ou novo condicionamento de direito, deverá prever regime de transição quando indispensável para que o novo dever ou condicionamento de direito seja cumprido de modo proporcional, equânime e eficiente e sem prejuízo aos interesses gerais.” (BRASIL, 2018, p. 1)

A norma autoriza e determina, tanto no âmbito administrativo quanto no judicial, em qualquer grau de jurisdição, a adoção da técnica da modulação dos efeitos da decisão que fixa no caso concreto o significado de conceitos jurídicos abertos ou indeterminados, prerrogativa prevista em lei, anteriormente, de forma expressa, apenas para o Supremo Tribunal Federal, em sede de controle concentrado de constitucionalidade. (BRASIL, 1999b, p. 1). Trata-se de uma das mais importantes inovações da reforma de 2018 na LINDB, na medida em que um poder anteriormente conferido apenas ao Supremo Tribunal Federal, a ser efetuado por decisão de 2/3 de seus membros, tendo em vista razões de “segurança jurídica e excepcional interesse social” (no art. 27, da Lei n.º 9.868/99), agora, é outorgado a qualquer juiz ou administrador público pelo simples fato de se estar diante da definição do conteúdo de uma norma dotada de vagueza conceitual. A previsão parte da premissa de que a concretização de princípios fundamentais, valores jurídicos ou normas jurídicas abertas e indeterminadas, por força da maleabilidade dos conceitos, exige tratamento semelhante ao do juízo de constitucionalidade, precisamente porque, em ambos os casos, é sempre necessário interpretar o ordenamento jurídico em sua integralidade, havendo que se ponderar valores contrapostos assimilados pela lei e pela constituição. É uma mudança de paradigma, o reconhecimento expresso pelo direito positivo da necessidade de utilização, em caráter geral, inclusive na esfera administrativa, de métodos de interpretação pós-positivistas, que pressupõem o dever de integração e criação do direito.

O texto legal não obriga o intérprete, contudo, a sempre fixar regime de transição por ocasião da definição de interpretação que imponha novo dever ou novas condições para o exercício de um direito, pois estabelece que isso deva ocorrer apenas “quando indispensável para que o novo dever ou condicionamento de direito seja cumprido de modo proporcional, equânime e eficiente e sem prejuízo aos interesses gerais.” (BRASIL, 2018, p. 1) O legislador incorre, como se vê, em postura recursiva, na medida em que utiliza conceitos jurídicos abertos e indeterminados para determinar um comportamento a ser efetuado pelo intérprete quando do tratamento de conceitos jurídicos abertos e indeterminados. O dever de fixar regime de transição ocorre somente quando for “indispensável” para que o cumprimento da nova interpretação se realize de modo “proporcional”, “equânime”, “eficiente” e sem prejuízo aos “interesses gerais”. Como o significado de tais expressões somente pode ser definido no caso concreto, na prática, a obrigação só existe quando o próprio intérprete a reconheça como existente, o que, por óbvio, não pode ser considerado propriamente uma obrigação, mas uma recomendação. A norma representa, portanto, mais do que uma imposição, uma autorização para que se defina regime de transição em casos de mudança interpretativa que estabeleça novos deveres ou condicionamentos de direitos.

Não se deve, contudo, desprezar a disposição, relegando-a apenas ao papel autorizativo. Sempre que o novo dever fixado em interpretação de conceito jurídico aberto ou indeterminado se revele de difícil concretização, por envolver altos custos para sua implementação, ou, ainda, quando a nova interpretação implicar consequências desproporcionais aos administrados, deve o intérprete reconhecer a validade de situações pretéritas, trabalhadas de conformidade com a interpretação anterior, e definir momento futuro para a aplicabilidade plena do novo entendimento, podendo fazer valer, desde já, novos requisitos que não se revelem extremamente onerosos aos seus destinatários. Como o legislador não tinha como prever todas as hipóteses em que exigível o regime de transição, e, ao mesmo tempo, acertadamente, entendeu não ser conveniente impor o dever de modulação dos efeitos em todos os casos que envolvam interpretação de conceitos jurídicos indeterminados – vez que, em alguns casos, razões de interesse público podem autorizar ser a nova interpretação aplicada de imediato – é de se esperar que se forme uma jurisprudência sobre a forma de aplicação da lei que determina o modo de fazer a jurisprudência.

O caráter cogente da norma que obriga o intérprete a fixar o regime de transição, ainda que trabalhado mediante conceitos que, em si mesmos, demandam interpretação no caso concreto, verifica-se do debate envolvendo o veto efetuado sobre parte do dispositivo. A Lei n.º 13.655/2018 incluía um parágrafo único ao art. 23 da LINDB, mas teve o seu texto vetado sob o argumento de que a previsão “reduz a força cogente da própria norma e deve ser vetado, de modo a garantir a segurança jurídica de tais decisões.” (BRASIL, 2018b, p. 1)  Rezava o pretendido parágrafo único que, se o regime de transição, quando aplicável nos termos do caput do art. 23, não estivesse previamente estabelecido, o sujeito obrigado teria direito de “negociá-lo com a autoridade, segundo as peculiaridades de seu caso e observadas as limitações legais, celebrando-se compromisso para o ajustamento, na esfera administrativa, controladora ou judicial, conforme o caso.”  O veto presidencial, fundado em manifestação dos Ministérios do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão, da Fazenda, da Transparência e em pareceres da Controladoria-Geral da União e da Advocacia-Geral da União, asseverou que, como o caput do artigo impõe a obrigatoriedade de estabelecimento de regime de transição em decisão administrativa, controladora ou judicial que preveja mudança de entendimento em norma de conteúdo indeterminado quando indispensável para o seu cumprimento, não faria sentido o parágrafo único prever um direito subjetivo de negociação da situação particular ao administrado quando tal norma não fosse cumprida, pois daria a entender que o vício da interpretação que não fixasse o regime de transição poderia ser suprido, enfraquecendo, por conseguinte, o caráter cogente da norma que impõe o dever de elaboração de regime de transição.

O veto, a nosso ver, se revelará, na prática, inócuo, pois, sendo demonstrado pelo administrado que a modulação de efeitos, no caso concreto, era “indispensável para que o novo dever ou condicionamento de direito” pudesse ser “cumprido de modo proporcional, equânime e eficiente e sem prejuízo aos interesses gerais”, e tendo e decisão interpretativa sido omissa na fixação do regime de transição, por óbvio, haverá direito subjetivo à fixação da norma transitória, ainda que particularmente, o qual poderá ser definido mediante ação declaratória, na via judicial. A proposta do texto vetado era permitir que tal direito pudesse ser exercido na via administrativa, mediante “compromisso para o ajustamento”, comportando, ainda, o diferencial da previsão expressa do direito subjetivo ao ajuste. A despeito da ausência de previsão que resultou do veto, não nos parece nem que tenha deixado de existir o mencionado direito subjetivo, nem que seja vedado à Administração celebrar acordo para a definição de regra de transição no caso concreto, caso solicitado pelo jurisdicionado mediante requerimento administrativo, respeitadas, naturalmente, as regras de hierarquia e competência das autoridades administrativas e as “limitações legais”. (BRASIL, 2018, p. 1)

5. Irretroatividade de nova interpretação de cláusula geral para efeito de invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa

A lei estabelece, também, o dever de que as novas interpretações sobre normas de conteúdo aberto ou indeterminado não retroajam para o efeito de invalidar atos administrativos praticados em consonância com a orientação da época em que foram editados (consagração do princípio tempus regit actum para a averiguação da validade dos atos públicos).  Dispõe o art. 24 que, “A revisão, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, quanto à validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa cuja produção já se houver completado levará em conta as orientações gerais da época, sendo vedado que, com base em mudança posterior de orientação geral, se declarem inválidas situações plenamente constituídas.” Esclarece o parágrafo único, ainda, que se consideram orientações gerais “as interpretações e especificações contidas em atos públicos de caráter geral ou em jurisprudência judicial ou administrativa majoritária, e ainda as adotadas por prática administrativa reiterada e de amplo conhecimento público.” (BRASIL, 2018, p. 1)

A norma não é de aplicação tão fácil quanto pode parecer, na medida em que a “jurisprudência judicial ou administrativa majoritária”, por vezes, não é um dado tão evidente, o que permite antever-se a existência de discussões e debates, inclusive no plano judicial, de questões voltadas à definição do que seja a orientação dominante, ao ponto de assegurar a irretroatividade da nova interpretação. Na esfera judicial, o sistema de precedentes vinculantes instituído pelo Novo Código de Processo Civil auxiliará na identificação do que seja a jurisprudência majoritária, podendo-se destacar como tais as orientações mais recentes fixadas em sede de controle concentrado de constitucionalidade (ADI, ADC ou ADPF), as decisões de controle difuso de constitucionalidade do STF no regime da repercussão geral, as decisões do STJ em sede de recursos especiais repetitivos, as decisões dos tribunais locais em Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR) ou Incidente de Assunção de Competência (IAC), as súmulas vinculantes, as súmulas de jurisprudência do STF em matéria constitucional e do STJ em matéria de direito federal e as orientações do plenário ou do órgão especial dos tribunais locais, nos casos em que a discussão se limite ao âmbito territorial da competência de um Estado federação. (BRASIL, 2015, p. 1) Já no campo administrativo, ter-se-á que levar em conta, como orientação dominante, as provenientes das autoridades administrativas de maior nível hierárquico, somente se cogitando do reconhecimento do valor jurídico da praxe reiterada de órgãos de hierarquia inferior quando ausente normativa específica sobre a matéria.

6. Previsão vetada: ação declaratória da validade de ato público, de rito especial, com sentença de eficácia erga omnes

A Lei n.º 13.655/2018 previa, através do que seria o texto do art. 25 do LINDB, a possibilidade de a administração, “por razões de segurança jurídica de interesse geral”, propor ação declaratória de validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, cuja sentença faria “coisa julgada com eficácia erga omnes”. O dispositivo previa que a ação tramitaria segundo o rito da ação civil pública, com participação do Ministério Público, que poderia se abster de contestar ou, até mesmo, aderir ao pedido declaratório da validade do ato público. A declaração judicial poderia abranger, além da validade em si, “a adequação e economicidade dos preços ou valores previstos no ato, contrato ou ajuste.” (BRASIL, 2018, p. 1)

O artigo foi vetado ao argumento de que a ação declaratória preconizada pelo dispositivo, cuja sentença teria eficácia para todos, podendo inclusive dispor a respeito de preço e valores, poderia acarretar na propositura de excessivo número de demandas judiciais injustificadas, tendo em vista a abrangência de cabimento da ação por “razões de segurança jurídica de interesse geral” o que, na prática, poderia contribuir para maior insegurança jurídica. Ademais, sustentou-se que, ainda que com o juízo de procedência da ação declaratória, a problemática persistiria em relação às decisões administrativas ou de controle anteriores à impetração da ação declaratória de validade, uma vez que a atuação judicial poderia se tornar instrumento para a mera protelação ou modificação dessas deliberações, representando, também, violação ao princípio constitucional da independência e harmonia entre os Poderes. (BRASIL, 2018b, p. 1)

Entendemos conveniente o veto, na medida em que os atos públicos gozam de presunção de veracidade e legitimidade, cabendo ao interessado o ônus de provar, no caso concreto, a desconformidade do ato estatal em relação à ordem jurídica. No que tange aos atos normativos federais, já existe previsão de ação judicial de fiscalização abstrata de sua validade e eficácia, que é a Ação Declaratória de Constitucionalidade – ADC, (art. 102, I, a, CF/88), admitindo-se, quanto aos estaduais e municipais, a propositura de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF (MENDES, 2011, p. 131), sendo certo que o potencial de atingimento do interesse coletivo encontra-se, no mais das vezes, precisamente, nos atos normativos. Ainda que determinados atos ou processos de viés concreto tenham grande relevância e alcance social, seja pela importância do objeto, seja pela expressividade dos recursos envolvidos, não se justifica a criação de nova modalidade de ação dotada de eficácia erga omnes com o fito exclusivo de afastar a discussão sobre sua legitimidade do ato administrativo, tendo em vista a possibilidade de propositura de ações de índole individual com esse objetivo.

7. Possibilidade de celebração de compromisso administrativo com o fito de eliminar irregularidade, incerteza jurídica ou situação contenciosa na aplicação do direito público

O art. 26 da LINDB estatui que, para “eliminar irregularidade, incerteza jurídica ou situação contenciosa na aplicação do direito público”, inclusive no caso de expedição de licença, “a autoridade administrativa poderá, após oitiva do órgão jurídico e, quando for o caso, após realização de consulta pública, e presentes razões de relevante interesse geral, celebrar compromisso com os interessados, observada a legislação aplicável, o qual só produzirá efeitos a partir de sua publicação oficial”. O compromisso, por expressa previsão legal, “buscará solução jurídica proporcional, equânime, eficiente e compatível com os interesses gerais”, “não poderá conferir desoneração permanente de dever ou condicionamento de direito reconhecidos por orientação geral” e “deverá prever com clareza as obrigações das partes, o prazo para seu cumprimento e as sanções aplicáveis em caso de descumprimento.” (BRASIL, 2018, p. 1) O inciso II do § 1º previa, ainda, que o acordo poderia “envolver transação quanto a sanções e créditos relativos ao passado e, ainda, o estabelecimento de regime de transição” (BRASIL, 2018, p. 1), mas teve seu texto vetado, por alegação de violação ao princípio da reserva legal e de ter o potencial de representar estímulo indevido ao descumprimento das previsões legislativas, visando a posterior transação. (BRASIL, 2018b, p. 1)

A lei inova pela previsão expressa da possibilidade de celebração de acordo administrativo com o fito exclusivo de sanar irregularidade na edição do ato, algo que já existia no que tange a atos que representassem potencial dano ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico, quando da participação de alguns dos entes legitimados para a ação civil pública, em relação aos quais já era autorizada a celebração de Termo de Ajustamento de Conduta – TAC, nos termos do art. 5º, § 6º, da Lei n.º 7.347/85. (BRASIL, 1985, p. 1) Agora, a Administração resta autorizada a celebrar compromissos voltados a sanar qualquer “situação contenciosa na aplicação do direito público”, podendo fazê-lo inclusive com particulares, desde que não importe em “desoneração permanente de dever ou condicionamento de direito reconhecidos por orientação geral.” Note-se que não pode o administrador, por meio do referido compromisso, promover isenções, afastar obrigações acessórias ou relativizar condicionamentos a direitos de forma “permanente”, podendo, contudo, fazê-lo em caráter temporário, em função da adequação da interpretação às circunstâncias do caso concreto, com a finalidade de evitar a necessidade de solução judicial. Se vedado estivesse à Administração promover qualquer desoneração ou afastar qualquer condicionamento, ainda que em caráter temporário, conteúdo algum poderia ser objeto do compromisso celebrado pelo administrador, tornando a norma insuscetível de aplicação prática.

O dispositivo vem em reforço à interpretação que conferimos ao art. 23, em relação ao qual, a despeito do veto efetuado quanto ao parágrafo único, entendemos possível à administração celebrar compromisso individual voltado à definição de regime de transição que não tenha sido fixado em interpretação de aplicabilidade geral, quando presente situação na qual o regime de transição era obrigatório. Agora, novamente, o inciso II do § 1º do art. 26, que dispunha expressamente que o acordo poderia prever “o estabelecimento de regime de transição”, foi vetado, mas isso não impede que a Administração inclua em seu compromisso o referido regime, haja vista a imposição efetuada pelo caput do art. 23. Vale dizer: se o estabelecimento do regime de transição era obrigatório – conforme afirmado pelo próprio Poder Executivo, na mensagem na qual explicita as razões do veto, trata-se de norma “cogente”, destinada não apenas à esfera judicial, mas também à administrativa –, então, tendo o Estado sido omisso na fixação do mencionado regime quando da interpretação em caráter geral, por óbvio, haverá direito subjetivo do particular ao estabelecimento da regra de transição, podendo a administração rever o seu posicionamento quando da apreciação de requerimento administrativo nesse sentido, no bojo do qual deve ser deferido o regime provisório. Ante o princípio da autotutela dos atos administrativos, a administração tem o dever de anular os seus próprios atos, quando eivados de vício de legalidade, e de revogá-los por razões de conveniência e oportunidade (art. 53, da Lei n.º 9.784/99). Sendo a fixação de regime de transição, nos casos especificados no art. 23, da LINDB, um dever legal, sua omissão, quando devida a previsão, importa em ilegalidade, que deve ser suprida pela esfera administrativa, podendo ser efetuada tanto em caráter geral, quanto individual, por se tratar de direito subjetivo do administrado. (BRASIL, 2018, p. 1; BRASIL, 1999, p. 1)

O efeito prático do compromisso individual que reconheça o dever de estabelecimento de regime de transição será a revisão da interpretação geral, com aplicabilidade erga omnes da regra transitória, tendo em vista que a multiplicação de processos individuais, que decorreria de um determinado precedente administrativo, implicaria, à evidência, a alteração ex officio da interpretação geral pela Administração, que não tem interesse na repetição desnecessária de atos administrativos. Nesse sentido, em que pese seja evidente a possibilidade de celebração de acordo individual (note-se que a lei o admite inclusive para os casos de “expedição de licença”, que é ato concreto, voltado a um administrado em particular), parece-nos que a intenção do legislador foi que, nos casos que tenham repercussão geral, no sentido de envolverem uma multiplicidade de interessados, o compromisso fosse celebrado já em caráter coletivo, pois, nos termos do art. 26, além da oitiva do órgão jurídico, exige-se, “quando for o caso”, a realização de “consulta pública”, para, presentes “razões de interesse geral”, ser celebrado compromisso com os “interessados”, havendo eficácia jurídica na opção proposital do legislador pela colocação do termo não no singular, mas no plural.

Consoante se extrai do inciso I, do § 1º, do art. 26, novamente, o legislador se utiliza de conceitos jurídicos abertos ou indeterminados para regular o ato que pretende evitar a ambiguidade decorrente da interpretação de conceitos jurídicos abstratos, evidenciando a dificuldade – e mesmo a impossibilidade – de fixação, a priori, de parâmetros rígidos e presumivelmente claros para a solução de questões jurídicas que envolvam a aplicação de normas de ordem pública. Isso porque as alegações de “irregularidade, incerteza jurídica ou situação contenciosa na aplicação do direito público” decorrem, no mais das vezes, da incidência de princípios ou de valores normativos de conteúdo incerto, cuja densificação admite múltiplas acepções, conduzindo a conflito interpretativo. Quando o legislador afirma que o compromisso deve contemplar solução jurídica “proporcional”, “equânime”, “eficiente” e compatível com os “interesses gerais”, retorna à incerteza jurídica que deu origem ao problema, na medida em que não há como saber, de antemão, o que tais expressões deverão significar no caso concreto, não se podendo afirmar, por conseguinte, que as partes entrarão em acordo quanto a esse significado, perspectiva que seria, no mínimo, ingênua. Em decorrência, a norma tem mais o condão de explicitar que o compromisso celebrado afasta a possibilidade de alegação futura de violação aos mencionados preceitos do que o de fixar uma diretriz para a solução em si, a qual será alcançada não pela densificação dos conceitos em apreço, mas pela fixação dos efeitos práticos a que as partes venham a aderir de comum acordo.

8. Possibilidade de fixação de indenização por dano processual no bojo da própria decisão do processo administrativo ou judicial

O art. 27, caput e parágrafos, estatui que a decisão do processo, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, “poderá impor compensação por benefícios indevidos ou prejuízos anormais ou injustos resultantes do processo ou da conduta dos envolvidos”, devendo ser motivada e proferida exclusivamente após manifestação das partes sobre o seu cabimento e valor, cabendo a celebração de “compromisso processual” entre os envolvidos voltado a prevenir ou regular a compensação. (BRASIL, 2018, p. 1)

O dispositivo impacta com maior relevância na esfera administrativa, pois, no âmbito judicial, já havia institutos voltados à composição do dano processual, como a indenização por litigância de má-fé (arts. 79 a 81, art. 142 e art. 536, § 3º, NCPC) e a multa por ato atentatório à dignidade da Justiça (art. 77, §§ 1º e 2º,art. 161, parágrafo único, art. 334, § 8º, art. 772, II, art. 777 e art. 903, § 6º, NCPC), os quais, por expressa disposição legal, deveriam ser liquidados nos mesmos autos da ação principal (art. 777, NCPC). No plano administrativo, contudo, previsão semelhante não existia, de modo que, agora, pode o administrador fixar o montante da indenização, de modo a evitar prejuízos “anormais” ou “injustos” resultantes do processo ou da conduta dos envolvidos. (BRASIL, 2015, p. 1; BRASIL, 2018, p. 1)

 O “compromisso processual” a que se refere o § 2º, à evidência, é prévio à ocorrência do dano, visto que a lei o admite para “prevenir” ou “regular” a reparação pelo dano moral ou material decorrente do processo. (BRASIL, 2018, p. 1) Não se trata, portanto, da simples transação para a composição do dano processual, mas de um negócio processual envolvendo a regulação da conduta das partes no curso do processo, à semelhança do que já ocorre no âmbito judicial pelas regras definidoras dos atos de litigância de má-fé e de atos atentatórios à dignidade da Justiça (note-se que a lei fala em compromisso “processual”, e não em compromisso para a composição do “dano processual”). Trata-se de instituto que visa a desestimular a prática de atos incompatíveis com a boa-fé e o dever de cooperação das partes no curso do processo administrativo, visando à solução da crise de direito material na esfera administrativa de modo efetivo e consentâneo com a verdade dos fatos, em atendimento ao princípio constitucional da eficiência e da razoável duração do processo (art. 5º, LXXVIII c/c art. 37. caput, CF/88).

9. Responsabilidade pessoal do agente público por decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro

Em que pese a jurisprudência já admitisse a responsabilização nesses casos, o art. 28 da Lei de Introdução passa a dispor que “O agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro.” (BRASIL, 2018, p. 1) A interpretação sistemática, levando em conta o novo regime de motivação das decisões judiciais e administrativas e o dever de fixação de norma de transição nos casos em que obrigatório, instituído pelos novos dispositivos da LINDB, leva à conclusão de que, por “erro grosseiro”, deve ser compreendida: a) a omissão do agente quanto à consideração das consequências práticas da decisão em caso de julgamento com base em valores abstratos (art. 20, caput), inclusive com demonstração da necessidade e adequação da medida imposta, em face das possíveis alternativas (art. 20, parágrafo único); b) a indicação expressa das consequências jurídicas e administrativas em caso de invalidação do ato público (art. 21, caput); c) a consideração das dificuldades e obstáculos reais do gestor público, no caso de decisões que envolvam normas relativas à administração pública (art. 22); d) a desconsideração da interpretação vigente à época da edição do ato administrativo invalidado, com violação ao princípio tempus regit actum (art. 24); e, por fim, e) a celebração de compromisso administrativo voltado a eliminar irregularidade, incerteza ou situação contenciosa na aplicação de direito público com a concessão de desoneração permanente de dever ou condicionamento reconhecidos por orientação geral (art. 26). Em todo caso, porém, devem ser levadas em consideração as dificuldades e impossibilidades teóricas e práticas ao atendimento dos referidos requisitos pelas autoridades julgadoras nas esferas administrativa e judicial, consoante já referido nos comentários acima efetuados em relação aos novos requisitos impostos pela LINDB com a reforma introduzida pela Lei n.º 13.655/2018.  

Por medida de segurança jurídica, e para resguardar a autonomia dos agentes públicos incumbidos de decidir as questões jurídicas no âmbito administrativo e judicial, a responsabilização por “erro grosseiro”, nas hipóteses acima elencadas, somente se pode verificar quando, a despeito de expressamente provocada a se manifestar relativamente à alegada omissão, a autoridade se negar a incluir expressamente o elemento indicado na motivação do julgado, o que, no caso do processo judicial, somente ocorre quando silente a autoridade judicial após a propositura de embargos de declaração e, no âmbito administrativo, quando não suprida pelo administrador a omissão apontada em pedido de reconsideração ou requerimento administrativo inicial ou suplementar, indicando expressamente a omissão que se entenda haver ocorrido, o que pode ser efetuado, inclusive, perante os advogados públicos ou outros agentes incumbidos da edição de pareceres técnicos. Isso porque, ante a complexidade inerente ao ato de julgar e o grande número de processos existentes nos diferentes níveis de julgamento nas esferas administrativa e judicial, é humanamente impossível decidir, sob a contínua pressão por celeridade, sem que, jamais, algum pormenor venha a passar despercebido, sendo que a falibilidade humana, nesse ponto, é o fundamento reconhecido universalmente para a instituição do duplo grau de jurisdição nas diferentes esferas de atuação do Poder Público em todas as nações civilizadas e nos principais organismos internacionais.

Se a parte interessada, a despeito de formalmente cientificada da decisão, não aponta a omissão do julgador quanto a qualquer das novas exigências impostas pela Lei de Introdução, mas, ao revés, prefere provocar a superior instância pela via recursal, eventual reforma ou invalidação do julgado não permite a condenação da autoridade por “erro grosseiro”, sob pena de instituir-se uma responsabilização por aspectos próprios do processo decisório, tanto que instituído regime permanente de revisão da decisão, o que fragilizaria a autonomia funcional do julgador, constituindo meio de intimidação para o livre exercício da jurisdição. Se o sujeito interessado, por sua vez, deixa de recorrer da decisão, produzindo a sua preclusão e inalterabilidade no âmbito administrativo ou judicial, novamente, não há que se falar em “erro grosseiro” da autoridade, que, a despeito da ocorrência de eventual equívoco, agora, não mais tem a faculdade jurídica de alterar o que foi decidido (diferentemente do que ocorre com os atos administrativos em geral, que podem ser modificados a qualquer tempo, em função do princípio da autotutela).

Vale dizer: no âmbito do processo, seja ele administrativo ou judicial, o instituto da preclusão impõe restrições à correção de vícios decisórios, razão pela qual a responsabilidade pela decisão equivocada tem de ser compartilhada entre julgador, sujeitos interessados e todos os demais agentes que participem do processo. Não por outro motivo o sistema encontra-se estruturado em diferentes níveis hierárquicos de julgamento, com previsão geral da possibilidade de revisão do que foi decidido, tanto pela própria instância prolatora da decisão quanto pelas instâncias recursais. A eventual omissão do julgador quanto a requisitos de fundamentação, por vezes complexos e de difícil verificação, tal como instituídos nos novos dispositivos da LINDB, não pode ser validamente utilizada para caracterizar “erro grosseiro” quando as próprias partes interessadas – as quais, melhor do que qualquer outro sujeito, podem visualizar os aspectos relevantes da discussão – se mantiveram silentes quanto a eventuais pontos de interesse.  Até mesmo nos casos em que a decisão envolva questão urgente, em que seja inviável a revisão por recurso, é preciso interpretar restritivamente e cum grano salis o conceito de “erro grosseiro” em relação à autoridade julgadora ou encarregada da edição do parecer técnico, que se encontra pressionada pela situação de fato, e, em tudo, fica adstrita à narrativa e aos elementos de prova trazidos pelo autor da demanda, não se podendo cogitar de sua responsabilização quando não expressamente apontada na petição inicial ou no requerimento administrativo a consideração dos aspectos aplicáveis dentre os integrantes das novas disposições da Lei de Introdução.

O referido temperamento à literalidade do texto legal é indispensável ao salutar funcionamento do sistema jurídico, pois, do contrário, os agentes públicos encarregados das decisões nas esferas administrativa ou judicial sofreriam evidente intimidação em caráter geral quanto à edição de julgamentos contrários à Administração Pública. Sempre que a situação exigisse a invalidação de atos públicos submetidos à sua apreciação, restrita estaria a liberdade do agente público encarregado da decisão, ante o temor de ser arbitrariamente responsabilizado por suposto “erro grosseiro” consistente na omissão ou equívoco quanto à aplicação dos extensivos requisitos legais para a fundamentação da medida imposta, instilando-se no julgador a propensão a decidir sempre em favor da validade do ato público, o que não se pode admitir no Estado Democrático de Direito. Se, por um lado, é necessário estimular a segurança jurídica e a adequada motivação das decisões judiciais, por outro, não se pode privar os juízes, administradores e advogados públicos da necessária autonomia no exercício de sua atividade profissional, indispensável para o adequado funcionamento do sistema jurídico e para a defesa dos valores constitucionais, inclusive democráticos, em face do possível arbítrio dos detentores do poder político estatal ou da ocorrência de fraudes de qualquer sorte na condução das questões de Estado. 

A responsabilidade pela segurança jurídica não pode ser relegada integralmente ao aplicador e intérprete da norma, pois, como já referido, decorre de um problema filosófico-jurídico associado à incompletude do ordenamento. É, portanto, algo muito mais amplo e que extrapola, em muito, a mera deficiência na fundamentação da decisão. A segurança jurídica, tal como a justiça, é um valor jurídico e um ideal a ser perseguido por todos os que operam o Direito e o processo, desde o encarregado da postulação inicial até a autoridade incumbida da decisão em última instância. Não se pode exigir dos julgadores mais do que têm condição de ofertar, devendo-se desconfiar de previsões legislativas que, a pretexto de propiciar segurança jurídica, restringem a autonomia e a liberdade de agentes públicos encarregados de decisões com potencial de invalidar atos ilegais ou inconstitucionais do Poder Público.

Nessa ordem de ideias, adequado o veto efetuado ao § 2º, do art. 26, que instituída a possibilidade de se requerer autorização judicial, em procedimento de jurisdição voluntária, para a celebração de compromisso com o fim de “excluir a responsabilidade pessoal do agente público por vício do compromisso, salvo por enriquecimento ilícito ou crime.”  (BRASIL, 2018, p. 1) A uma, porque não se deve interpretar amplamente a responsabilidade do agente público na celebração do compromisso, devendo-se proceder ao temperamento acima delineado, à luz das dificuldades inerentes ao processo interpretativo e, a duas, porque, tal como assinalado nas razões do veto, haveria, no caso, uma esdrúxula interferência do Poder Judiciário na edição de um ato administrativo, comprometendo a forma de controle dos atos do Executivo pelo Judiciário instituída pela Constituição segundo a conformação atribuída pelo texto constitucional ao princípio da separação de Poderes. (BRASIL, 2018b, p. 1)

O texto aprovado pelo Legislativo continha 3 (três) parágrafos adicionais ao caput do art. 28, os quais, contudo, foram vetados. O § 1º dispunha que não se consideraria erro grosseiro “a decisão ou opinião baseada em jurisprudência ou doutrina, ainda que não pacificadas, em orientação geral ou, ainda, em interpretação razoável, mesmo que não venha a ser posteriormente aceita por órgãos de controle ou judiciais.” (BRASIL, 2018, p. 1) O veto assinalou que “A busca pela pacificação de entendimentos é essencial para a segurança jurídica. O dispositivo proposto admite a desconsideração de responsabilidade do agente público por decisão ou opinião baseada em interpretação jurisprudencial ou doutrinária não pacificada ou mesmo minoritária. Deste modo, a propositura atribui  discricionariedade ao administrado em agir com base em sua própria convicção, o que se traduz em insegurança jurídica.” Entendemos que o veto, no caso, não produzirá o efeito almejado, pois o conceito de “erro grosseiro”, tal como defendido acima, não pode ser trabalhado na perspectiva da jurisprudência dominante, que, por vezes, não é objeto de fácil constatação. Ademais, é preciso resguardar a autonomia interpretativa do agente, a quem incumbe, inclusive, interpretar o significado da própria jurisprudência. Atribuir responsabilidade pessoal pela interpretação é temerário e restringe a liberdade do agente público incumbido do dever de decidir, revelando-se postura arbitrária em favor da manutenção dos atos do Poder Executivo. Ao menos no que tange às decisões do Judiciário, tal interpretação seria flagrantemente inconstitucional, pelo que deve ser rechaçada.

Dispunha o § 2º que “O agente público que tiver de se defender, em qualquer esfera, por ato ou conduta praticada no exercício regular de suas competências e em observância ao interesse geral terá direito ao apoio da entidade, inclusive nas despesas com a defesa,” estabelecendo o § 3º que, “Transitada em julgado decisão que reconheça a ocorrência de dolo ou erro grosseiro, o agente público ressarcirá ao erário as despesas assumidas pela entidade em razão do apoio de que trata o § 2º deste artigo.” (BRASIL, 2018, p. 1) A Presidência da República vetou os dispositivos ao argumento de que criavam direito subjetivo ao apoio da entidade na defesa do agente público sem estabelecer “exclusividade do órgão de advocacia pública na prestação”, podendo impor a cada entidade “dispêndio financeiro indevido, sem delimitar hipóteses de ocorrência de tais apoios nem especificar o órgão responsável por esse amparo, o que poderia gerar significativos ônus sobretudo para os entes subnacionais.” (BRASIL, 2018b, p. 1)

Nota-se, pois, que o veto não se fundou na inadequação ou impossibilidade de atuação do órgão de advocacia pública na defesa do agente, mas, tão somente, na problemática financeira que poderia decorrer da escolha, pelo agente, de um ente privado para a sua defesa. O veto reforça a ideia de que a responsabilidade do agente deve ser interpretada restritivamente, não se podendo cogitar da inauguração de uma era de “caça às bruxas” com a finalidade exclusiva de sancionar agentes cujo intento exclusivo é atuar com regularidade na aplicação do direito. O crime, a fraude, o dolo ou o erro efetivamente grosseiro devem, de fato, ser objeto de responsabilização, mas o lapso, o equívoco ou o deslize justificado pelas circunstâncias, notadamente nos casos em que a parte não aponte ao julgador a sua ocorrência, não podem ser validamente imputados ao agente incumbido da decisão, com a pesada sanção pelo ressarcimento de quantias, por vezes vultosas, decorrentes dos julgamentos envolvendo a complexa aplicação do direito público, sob pena de instaurar-se grave cenário de instabilidade e temor que impeça o livre exercício da jurisdição.  

10. Possibilidade de realização de consulta pública para a edição de atos normativos pela Administração Pública no âmbito dos três Poderes

De acordo com o art. 29, “Em qualquer órgão ou Poder, a edição de atos normativos por autoridade administrativa, salvo os de mera organização interna, poderá ser precedida de consulta pública para manifestação de interessados, preferencialmente por meio eletrônico, a qual será considerada na decisão.” (BRASIL, 2018, p. 1) Nos termos do § 1º, deve ser publicado ato de convocação que materialize a consulta pública, contendo minuta do ato normativo e fixando prazo para contribuições. O § 2º estabelecia o dever de publicação, preferencialmente por meio eletrônico, das contribuições e de sua análise, mas teve seu texto vetado por inconveniência, na medida em que “poderia tornar extremamente morosa e ineficiente a sistemática por parte dos órgãos ou Poderes, ou mesmo retardar sua implementação, indo de encontro ao interesse público e recomendando, assim, o veto do parágrafo.” (BRASIL, 2018b, p. 1) 

11. Estímulo à edição de súmulas administrativas, regulamentos, respostas a consultas e demais atos tendentes a reforçar a segurança jurídica

Por último, o art. 30, introduzido à LINDB pela Lei n.º 13.655/2018, estatui que “As autoridades públicas devem atuar para aumentar a segurança jurídica na aplicação das normas, inclusive por meio de regulamentos, súmulas administrativas e respostas a consultas”, asseverando que referidos instrumentos deverão ter “caráter vinculante em relação ao órgão ou entidade a que se destinam, até ulterior revisão.” (BRASIL, 2018, p. 1) Trata-se, como se vê, de recomendação à edição de atos que sedimentem entendimentos sobre matérias de direito público, com o fito de favorecer a aplicação uniforme da lei, prestigiando a segurança jurídica.

No âmbito administrativo, a determinação de imposição do “caráter vinculante” pouco acrescenta, na medida em que o escalonamento hierárquico dos órgãos e agentes administrativos já implica o dever de obediência aos atos normativos provenientes dos níveis superiores da burocracia estatal. Já na esfera judicial, a determinação importa evidente inovação, dado que a vinculação a orientações interpretativas não ocorre, ainda, em caráter geral, relativamente a todo e qualquer precedente, mas apenas àqueles elencados no art. 927, do Novo Código de Processo Civil. O dispositivo, portanto, reforça, no plano judicial, a noção de um sistema de precedentes, na medida em que incentiva a adoção da técnica da vinculação em caráter geral. A tendência, nesse contexto, é a formação, de futuro, de um sistema em que se adote a vinculação precedencial plena, tal como já ocorre na maioria dos países de common law, em que vige a regra do stare decisis, postura que, na prática, já vem sendo adotada pelos operadores jurídicos, para os quais as decisões do STF e do STJ, ainda que em sede de ações originárias ou não dotadas de eficácia formalmente vinculante, representam orientação jurisprudencial importante e precedente judicial a ser seguido pelas instâncias ordinárias da magistratura.

Conclusão

As diversas alterações introduzidas pela Lei n.º 13.655/2018 na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, alegadamente voltadas à satisfação do princípio da segurança jurídica, atribuem pesada responsabilidade ao administrador e juiz na solução de questões de direito público, fixando normas rígidas de fundamentação da decisão jurídica e impondo deveres de abordagem de certos conteúdos no dispositivo, tais como “consequências práticas” do ato decisório ou “regime de transição” para minimizar os impactos negativos das novas interpretações. Optou-se, ainda, por prever a responsabilização pessoal de agentes públicos em caso de “erro grosseiro” na edição de decisões ou opiniões técnicas, sem que se tenha, contudo, procedido a um detalhamento razoável e proporcional do que possa integrar o campo de aplicação da referida expressão, a qual, contudo, pela concomitância junto às novas exigências de fundamentação, somente pode ser entendida, na intenção do legislador, como a omissão na abordagem dos novos requisitos exigidos pela LINDB para a fundamentação e o dispositivo das decisões.

A estratégia adotada, contudo, não se revela adequada. As normas buscam transferir integralmente ao aplicador e intérprete o ônus pela insegurança jurídica, que, em verdade, decorre de um problema filosófico-jurídico associado à incompletude do ordenamento. A segurança jurídica, tal como a justiça, é um valor e um ideal a ser alcançado pelos sistemas jurídicos, e sua busca esbarra em problemas muito mais amplos, que extrapolam, em muito, a simples questão da fundamentação das decisões judiciais ou administrativas. O próprio legislador, ao instituir certos deveres de fundamentação e de conteúdo, ao tentar regulamentar a interpretação de conceitos jurídicos abertos ou indeterminados, viu-se na necessidade de utilizar conceitos jurídicos abertos ou indeterminados, relegando, novamente, ao intérprete, o poder de definir, no caso concreto, o significado da regra que se destinava a reger o processo de interpretação. Isso se dá porque a previsão rígida e engessada de situações já se revelou, desde o século XIX, medida fadada ao fracasso, ante a impossibilidade de o legislador antever toda e qualquer situação passível de regulação pelo direito, o que conduziu, sobretudo após a 2ª Guerra, à passagem dos métodos hermenêuticos clássicos para a interpretação pós-positivista, que reconhece haver poder criativo centrado nas mãos do intérprete. Se, por um lado, é preciso instituir elementos aptos a conter a discricionariedade e a permitir o máximo de previsibilidade na aplicação do direito, não se pode esquecer o fato de que interpretar, por um imperativo lógico e filosófico, é um poder, tanto que, em última instância, chega a constituir um braço autônomo da atuação do Estado.

A responsabilização pessoal de agentes públicos encarregados da prolação de decisões ou pareceres técnicos nos âmbitos administrativo e judicial por supostos erros na aplicação da lei somente pode validamente ocorrer quando, efetivamente, possam ser considerados “grosseiros”, assim entendidos quando, a despeito de expressamente provocada, a autoridade se mantiver omissa quanto à indicação dos pontos de interesse. Do contrário, estar-se-ia a responsabilizar administradores e juízes por aspectos inerentes ao processo decisório, o que é inadmissível, e a restringir a liberdade no exercício da jurisdição, instilando nas autoridades a tendência por decidir sempre em favor da Administração Pública, ante o temor inerente à responsabilização por questões decorrentes de suas decisões, o que é inaceitável no Estado Democrático de Direito.

Responsabilizar pessoalmente juízes e administradores pela opinião ou pela interpretação no exercício da jurisdição é medida que beira a censura, devendo-se desconfiar de propostas que, a pretexto de garantir a segurança jurídica, restringem a liberdade de agentes públicos encarregados da invalidação de atos do Poder Executivo, que, de um modo geral, podem revelar-se contrários à lei, à Constituição ou a valores caros ao sistema jurídico, inclusive protetivos de interesses de minorias circunstanciais, ou, ainda, ser fruto de fraudes ou outras violações graves à ordem jurídica. O sistema recursal existe, precisamente, para que a jurisdição possa ser exercida com o máximo de liberdade possível, não se podendo restringi-la pela imposição ao julgador do temor pela pesada responsabilidade civil nos casos em que sua perspectiva, na defesa das liberdades e dos valores constitucionais, inclusive democráticos, sejam eventualmente consideradas “erro grosseiro” pelas instâncias superiores, mormente quando existe, para as partes, o direito de rever a decisão mediante o recurso pertinente, ou ainda, de provocar a autoridade para que supra eventual omissão que repute existente.

A segurança jurídica é um valor a ser perseguido por todos os que integram o processo, não podendo ser transferido o ônus pela incompletude do ordenamento, exclusivamente, às autoridades encarregadas da prolação da decisão. Não há como exigir dos juízes, administradores, advogados públicos e demais autoridades incumbidas da edição de opiniões técnico-jurídicas que solucionem, no Brasil, um problema que é universal, compartilhado que é por todas as nações civilizadas estruturadas como Estado de Direito.  É irrazoável e arbitrário, por exemplo, exigir que tais autoridades prevejam todas as consequências práticas eventualmente decorrentes de suas decisões, ou que antevejam todas as possíveis alternativas à invalidação de um ato administrativo, como propugnado, de forma pueril e idealizada, por alguns dos novos dispositivos da Lei de Introdução. O texto precisará ser interpretado à luz dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, havendo que se esperar o que a jurisprudência há de dizer a respeito do assunto, sendo certo, contudo, que a interpretação literal da maioria dos dispositivos há de ser reputada inconstitucional, sobretudo, por violar a necessária liberdade do processo interpretativo, indispensável à concretização da justiça.

Referências

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